Eu nunca fui realmente insano, exceto em ocasiões em que meu coração foi tocado.
Edgar Allan Poe
24/12/XX
23h00
A neve cai, cobrindo toda a extensão do terreno. A paisagem ao redor da casa é composta apenas por grandes árvores e pinheiros que, cobertos de neve, agora se confundem com a brancura do local. A cabana é grande o suficiente para tornar desnecessária uma caminhada lá fora. A grande árvore de Natal, já enfeitada, está disposta perto da lareira de tijolinhos vermelhos, com quatro meias penduradas e repletas de chocolate. Olho ao redor da cabana, o piso de madeira, grandes vigas expostas que dão um ar de acolhimento ao lugar e o calor da lareira.
Volto a minha atenção para a grande janela de vidro, enquanto observo a neve cair lentamente, um disco de Natal antigo que encontrei na cabana toca ao fundo. Demora muito para que a música comece a repetir na mesma estrofe. Last Christmas, I gave you my heart. But the very next day, you gave it away. Retiro o disco e me sento no sofá novo, pensando que tudo parece potencialmente assustador à noite, como agora.
Subo lentamente as escadas e vou até o quarto à direita no extenso corredor escuro. Vejo três corpos, não tão pequenos como da última vez que estivemos aqui, há um ano, cobertos na enorme cama de casal com um edredom branco com desenhos geométricos. Sorrio com a cena, mas não por muito tempo, pois logo minha cabeça começa a doer.
07h10
A manhã nasce nublada e melancólica. A nevasca continua a cair. Saio do quarto e caminho até as escadas, mas paro assim que percebo que o mesmo disco de ontem está tocando. Coloco meu pé no primeiro degrau, mas ainda com receio, desço a escada de madeira. "Devem ser as crianças", digo para me tranquilizar. Continuo agora menos preocupada, mas, ao chegar ao andar inferior, percebo que não há ninguém. Caminho até o toca-discos e novamente retiro o grande disco de lá, jogando-o no fogo aceso da lareira, que logo o consome. Talvez eu apenas tenha me esquecido de tirá-lo do toca-discos ontem.
Quando eles descem, o café da manhã já está pronto, e eu já engoli uma quantidade razoável de pílulas, apenas para aliviar a dor de cabeça – é o que digo a mim mesma. Os três meninos me olham de forma estranha, desviando o olhar para minhas mãos. Mordo minha língua instintivamente, pensando que talvez tenham visto as pílulas. Saio da cozinha o mais rápido que consigo, deixando-as sobre a enorme mesa de madeira.
20h28
A noite começa a se estender, deixando a paisagem mais sombria. Percebo que as crianças estão quietas hoje, como sempre são – quase não falam. Suspiro e balanço a taça de vinho na minha mão. Embaixo, vejo o pó das pílulas se dissolver. A melhor combinação possível. Já sinto meu cérebro enviando comandos elétricos ao meu corpo; o êxtase me consome e, ao mesmo tempo, sinto-me em paz comigo mesma e com as outras coisas que aqui não me perturbam. É como se existíssemos apenas eu e as crianças, e este fosse nosso refúgio secreto, onde ninguém seria capaz de nos encontrar.
O celular começa a vibrar em cima do sofá, tirando-me do estado de êxtase. Pego-o rapidamente, antes que as crianças vejam, e leio a mensagem que aparece na tela de bloqueio: Traga-os de volta.
Ao invés de responder, viro a taça até não restar uma única gota, enquanto os vejo pendurarem três pequenos bonecos em forma de esqueleto na árvore de Natal.
25/12/XX
19h00
Retiro o peru do forno e o coloco na mesa. A mesa está completa agora. Por um instante, tudo parece perfeito; até mesmo me permito um breve sorriso. Mas logo sou arrastada para a realidade quando o celular vibra na bancada de madeira. Pego o smartphone e vou em direção à sala. A lareira ainda está acesa. Jogo o aparelho ali, e as chamas o consomem rapidamente. Hoje, nada pode dar errado. É o dia da ceia.
Chamo os meninos, mas não os vejo descer. Decido subir as escadas e, ao tentar abrir a porta do quarto, percebo que está trancada. Bato devagar na madeira escura, mas não recebo resposta. Tento novamente, sem sucesso. Pego a chave reserva da casa e volto. Destranco a porta e encontro as crianças encolhidas na cama, implorando para não descerem. Mas hoje é a ceia de Natal.
XX/XX/XX
Chego finalmente à porta da cabana. Coloco a lenha ao lado e seguro o machado. Apesar da neve forte, precisei cortar lenha para a lareira, que agora deve estar fria.
Abro a porta principal e, de súbito, percebo que devo estar na cabana errada. O chão está sujo, coberto de poeira e rastros vermelhos. Uma árvore de Natal decrepita ameaça cair. Dou um passo à frente, mas o piso de madeira range. Apesar de a cabana ser velha, assemelha-se muito à minha. Ouço o som do mesmo disco da minha cabana tocando. Aproximo-me da vitrola e vejo um disco chamuscado e quase derretido tocando. Estico a mão para retirá-lo, mas me assusto ao perceber que minhas mãos estão cheias de bolhas, com a carne à mostra. Deixo o machado cair da mão direita, que começa agora a arder, mas me forço a pegá-lo novamente. Como não percebi isso antes?
Afasto-me dali, indo em direção à cozinha. Vejo a mesa posta e prendo a respiração quando o fedor dos alimentos em decomposição me atinge. As larvas dançam pelo que antes parecia ser um peru, bolo de trufas agora gosmento e alguma carne que se assemelha a um coração. Resisto à tentação de vomitar ali mesmo. O machado pende em minha mão. Olho para o chão e vejo um rastro de sangue que segue desde a porta até onde estou. Percebo que vem do machado. Solto-o imediatamente, assustada.
O zunido das moscas fica alto ao meu redor. Sem conseguir me segurar, vomito na mesa. A gosma da comida agora se confunde com o líquido amarelado que jorra da minha boca. Respiro fundo e me viro em direção à escada. Subo os degraus lentamente, sem pressa de ver o que pode estar lá em cima. Talvez seja apenas uma cabana abandonada.
As tábuas rangem sempre que eu piso. Abro a porta da esquerda e vejo um cômodo vazio, com as janelas tampadas com madeira, como se nunca tivesse sido habitado. Paro em frente ao quarto à direita e, ao abrir a porta, encontro uma cama grande no centro. Embaixo de um cobertor grosso, algo faz um volume visível. Apesar da escuridão, tento me aproximar, mas percebo que dali vem o som das moscas e um cheiro de putrefação ainda mais intenso. Viro o rosto em direção à porta aberta, tentando respirar melhor. Com o rosto ainda voltado para a porta, estendo a mão em direção à cama, retiro o cobertor e, ao olhar para trás, vejo que, além da ceia, há algo mais em decomposição.