A rapidez com que a mente agora perturbada do investigador Saulo trabalhava contrastava com o relativo cuidado de sua busca no interior aquela casa medonha no subúrbio de Mauá: estava convencido de que o Satanista do Horóscopo tinha feito dali o seu esconderijo. Conforme caminhava o mais rapida e prudentemente possível com sua arma em punho, lembrava com horror dos corpos mortos e mutilados que começaram a ser encontrados na região paulistana no início da penúltima semana de Dezembro, a começar pelo de uma jovem prostituta do signo de Áries chamada Madeleine, que teve a cabeça, os braços e as pernas deixados dentro de uma igreja de modo a formar um crucifixo invertido perante o altar.
Dali em diante, de uma forma que desafiava a compreensão tanto da Polícia quanto a da própria popolução em geral e deixava toda a Imprensa brasileira em polvorosa, nos dias seguintes mais corpos foram surgindo nos locais mais inusitados possíveis daquela cidade de nome peculiar, cada um com algum membro faltando e nunca sendo o mesmo entre os cadáveres. Como cada um deles era de um signo diferente e diretamente sequencial ao da pessoa morta anteriormente, logo fizeram disso a única conexão entre as vítimas, que com exceção da primeira, eram todos homens com características distintas entre si. Todas elas havia sido dadas como desaparecidas há cerca de alguns meses, com intervalos irregulares entre um sumiço e outro.
As autoridades estavam sem pistas, incluindo Saulo, que naquela noite estava à paisana e recebeu uma denúncia de alguns moradores do bairro acerca daquele local e seu estranho habitante, mas se viu obrigado a entrar em ação quando tanto ele quanto boa parte da vizinhança escutaram urros infantis lancinantes vindos de dentro da casa, o que fez com que ele pedisse reforço policial antes de invadir o recinto. E foi naquela véspera de Natal, ao adentrar naquele insidioso local, que o robusto homem da lei teve a mais absoluta certeza de que havia encontrado o esconderijo do criminoso brasileiro mais nótorio do momento.
A habitação parecia ser bem maior por dentro do que por fora e já na entrada deparou-se com uma cozinha cuja pia exibia resquícios de sangue em boa parte de sua superfície, incluindo marcas escarlates em forma de mãos nos puxadores do armário. Na mesa forrada com uma mortalha cor de ébano havia uma espécie de ceia com pratos feitos a base de aranhas, escorpiões e serpentes, bem como algumas frutas venenosas dispostas de modo a enfeitar o nefasto banquete. As velas pretas e vermelhas davam o sinistro toque final àquela dantesca montagem que arrepiou o investigador por inteiro, juntamente con o odor nauseabundo que literalmente violentou suas narinas e não mais as abandonou a partir dali.
Ao percorrer seu trajeto em busca da localização dos prantos alucinados que ouvira à pouco, Saulo passou pela sala, onde com horror e asco vislumbrou uma pequena árvore de Natal confeccionada a partir de uma ossada humana remontada de modo a formar a grotesca decoração, com os ossos das costelas fazendo as vezes dos galhos, as hastes ósseas das pernas formando o tronco juntamente com os ossos dos braços e tendo como funesta estrela o crânio parcialmente fraturado na testa. No lugar do tradicional pisca-pisca, um insólito cordão feito com intestinos contendo globos oculares cuidadosamente acoplados no extenso orgão recobrindo aquele escárnio de árvore natalina. E, como se tudo isso não fosse o bastante, ao invés de bolinhas coloridas, havia sacos escrotais dependurados em cada ponta dela. Coroando a inacreditável depravação, no lugar dos tradicionais presentes em torno dela, havia frascos transparentes cheios de formol com fetos abortados flutuando levemente no líquido claro em seu interior.
Saulo já estava suando frio e com a boca seca, pois jamais em toda a sua vida havia se deparado pessoalmente com uma inumanidade de tais proporções. Todavia, engoliu o choque inerente à situação e, ignorando totalmente o banheiro próximo dali, seguiu pelas escadas cujo corrimão se encontrava igualmente decorado com aquela paródia doentia de pisca-pisca, subindo até o piso superior do local sempre com a arma em punho. Foi então que ouviu uma voz de timbre rouco e maligno lhe dizendo do quarto no fim do corredor "Saulo, Saulo, por que me persegues?"*, seguida de uma breve e demente gargalhada que lhe gelou a alma. O valente investigador de imediato presumiu que o assassino tinha algum sistema de monitoramento na casa, mas como diabos ele sabia seu nome?
- Você não tem para onde fugir! Saia daí devagar com as mãos para cima! - bradou o policial, firmando o aperto de sua mão na empunhadura da pistola cromada ao avançar alguns passos rumo ao cômodo de onde viera a voz.
A porta dupla do enorme quarto foi se abrindo vagarosamente, fazendo um rangido que mais parecia o lamento de alguma alma condenada ao Inferno e, mesmo à distância, Saulo pôde visualizar com terrível perfeição o cenário mais horripilante de toda a sua existência: no lado esquerdo do local (que aparentemente consistia em uma área ampla sem mobílias nem janelas), existia uma manjedoura revestida de pele humana e cheia de dedos no lugar de palha, rodeada por algumas cabeças de bois, bodes e galos. Por cima do amontoado de falanges decepadas era possível ver o corpo inerte de um bebê com um diminuto punhal fincado em cada uma de suas cavidades orbitais, bem como um maior transpassando seu peito. Um par de lágrimas instantaneamente se formou nos olhos de Saulo, pois era nítido pelos brados anteriores do infante que sua morte não foi imediata e só Deus sabia o que aquele psicopata poderia ter feito antes de finalizar tão monstruoso ato.
Na parede mais ao fundo, pregado em uma cruz metálica invertida existente nela, se encontrava um corpo construído com as partes faltantes das pessoas encontradas mortas durante toda a semana, recriando uma versão Frankstein e andrógena de Jesus Cristo devido aos seios e vagina do torso utilizado pelo maníaco na construção do cadáver, que ainda sangrava tanto pelas costuras grosseiras quanto pelas perfurações oriundas de sua coroa de espinhos e apodrecia de olhos fechados perante seu "criador". Mesmo lutando contra a náusea física, mental e espiritual que toda aquela situação lhe imputava de modo esmagador, Saulo mantinha sua arma apontada para a abominável figura de manto negro ajoelhada entre ele e o defunto crucificado logo atrás e acima dele.
Um misto heterogêneo de sentimentos se apossara do homem da lei enquanto observava atônito todo aquele cenário que mais parecia fruto de um granfe delírio ou uma alucinação demoníaca. Ódio. Repulsa. Assombro. Medo...? Não, era mais do que isso: um pavor crescente ameaçava rasgar suas convicções em pedacinhos, pois era como se cada célula em seu corpo implorasse para que se evadisse daquele lugar o quanto antes. Embora a pessoa de manto e capuz estivesse desarmada e sob a mira de sua Glock, Saulo sentia em seu âmago como se fosse ele quem estivesse correndo um imenso risco de morte. Contudo, ver o pequenino coração esmagado do bebê diante daquele sujeito alto de tez escura e rosto completamente oculto pelo tecido lhe demoveu daquele estado emocional conflitante e o fez reagir de acordo com a potencial ameaça perante ele.
- Seu monstro filho da puta! O quê foi que você fez?! Que porra tudo isso, hein?! Começe a falar, seu arrombado! - vociferou o investigador, mais que desejoso em mandar aquela abominação para o Inferno descarregando toda a sua munição ao menor sinal de reação dele.
- Porque eu odiei tanto o mundo que dei o meu Filho Unigênito, para que todo o que dele duvidar não só pereça, mas sofra na pira eterna.** - respondeu o homem ajoelhado, exibindo as mãos encharcadas com o sangue fresco e infantil enquanto começava a se levantar lentamente.
- Não se mova, seu satanista desgraçado! Fica parado ou juro por Deus que meto uma bala em você para cada pessoa que você matou para fazer toda essa insanidade do caralho! - ameaçou Saulo, movendo o cão da arma em um estalo seco que pareceu ressoar no recinto.
Nos segundos seguintes em que o tempo parecia desacelerar e, em contrapartida, a pulsação cardíaca do policial mantinha-se em uma velocidade alarmante, a mente dele fervilhava com as informações antigas se misturando com as descobertas novas, pois agora tudo fazia sentido: a verdadeira conexão entre as vítimas eram seus nomes, que coincidiam com os nomes dos Apóstolos (excetuando Madeleine, que decerto estava substituindo Judas): de fato, foram doze mortes confirmadas até ali. E a julgar pela decomposição do corpo, fazia pelo menos três dias que aquela versão hedionda de Messias havia sido disposta no quarto. Estava mais do que claro que tudo fazia parte de algum particularmente elaborado e aberrante ritual satânico a ser realizado especificamente no Natal.
Subitamente a figura encapuzada ergueu os braços, segurou a própria cabeça dizendo em um tom de voz que mal beirava ao humano "a ti entrego os nossos espíritos"*** e, perante o olhar incrédulo do investigador, ela quebrou ruidosamente o pescoço com um movimento célere e rude, o baque seco do seu corpo caindo no chão meio que ecoando no quarto na medida em que Saulo inutilmente se movia em sua direção. Foi só então que, sem surpresa alguma, constatou que o cultista estava dentro de um pentagrama desenhado com sangue no piso, tendo uma vela preta fumegando em cada ponta. Ao longe, já ouvia as sirenes da Polícia se misturando às doze badaladas da meia-noite: era chegado o Natal.
Foi então que, ao levantar os olhos para mirar o cadáver crucificado de ponta-cabeça, um incrédulo Saulo viu que o morto despedaçado o encarava de volta com um sorriso de malevolência tal que o policial sentiu toda a sua coragem se esvair de seu corpo junto com o jato de urina que manchava suas calças. Enquanto recuava sem tirar os olhos daquela cena absolutamente irreal, os ouvidos do investigador foram assolados pelo choro estridente da criança apunhalada na manjedoura, podendo até mesmo discernir o som dos movimentos dela ao se espernear selvagemente ali dentro, enquanto as cabeças dos animais emitiam seus ruídos característicos de modo errático e ensandecido. Não suportando mais tal loucura, Saulo se virou para fugir mais rápido que pudesse, apenas para se deparar com o corpo do cultista totalmente em chamas. Enquanto o contornava desesperadamente rumo à porta, o policial ainda ouviu o corpo composto de pedaços lá atrás exclamando com uma voz que soava como se uma dúzia de pessoas falassem em uníssono "Está consumado!"**** conforme uma versão instrumental malignamente distorcida de Jingle Bell começou a tocar baixinho aparentemente em toda a casa.
Na medida em que Saulo corria, o fogo se alastrava em uma velocidade vertiginosa pelo imóvel, como se fosse algo vivo, infernal e faminto a devorar tudo em seu caminho. Com todo o horror do mundo, o investigador ainda viu os olhos que decoravam as vísceras no corrimão sangrarem e se moverem como se observassem aquela fuga alucinada antes das chamas fazerem com que elas explodissem, cada um deles emitindo um grito de morte diferente durante o destrutivo processo.
Na sala, a árvore de Natal se movia como se fosse autônoma, enquanto os fetos se agitavam e colidiam vigorosamente contra os vidros de seus receptáculos. Com a temperatura do ambiente anormalmente mais e mais elevada, o investigador passou em uma marcha desenfreada pela cozinha, onde literalmente teve de atravessar uma horda de animais peçonhentos e enlouquecidos que atacavam e devoravam uns aos outros e alguns até a si mesmos antes e durante o ardor das chamas sobre todos eles.
Saulo irrompeu pela porta da frente meros instantes antes das labaredas alaranjadas serem violentamente expelidas logo atrás dele pela saída, janelas e até mesmo por parte do telhado, como que dando as boas vindas às viaturas que cercavam o local. O investigador permaneceu caído no asfalto, sentido a consciência se desvanecendo em um ritmo tão acelerado quanto seus próprios batimentos cardíacos, sua visão ficando tão turva quanto sua alma na medida em que, antes de desmaiar, ainda pôde ouvir o Filho Daquele Homem dizendo em sua mente com sua inumana voz coletiva:
- E este evangelho do reino será pregado em todo o mundo, em testemunho a todas as nações, e então virá o fim.*****
E certamente depois daquele amaldiçoado Natal assim seria, em nome de outro Pai, de outro Filho e de um Espírito Profano...
Amém.