"É este o problema com a bebida, pensei, enquanto me servia dum copo. Se acontece algo de mau, bebe-se para esquecer; se acontece algo de bom, bebe-se para celebrar, e se nada acontece, bebe-se para que aconteça qualquer coisa. "
Charles Bukowski
— Bom dia doutor, se é que se pode chamar de bom. É, isso mesmo, Roberto Matias de Souza, 53 anos. É claro que é com Z, quem diabos escreve Souza com S? Ei, cadê aquela belezinha que me atendeu ontem? Na certa assustei ela não foi? Fazer o quê né... esse barril não tem mais o charme de antigamente quando eu era sequinho. Mas sério, não dá pro senhor adiantar logo isso e me deixar ir pra casa? Eu digo o que você quiser se liberar a perícia. Vai uns 50 conto só pra firmar a amizade? 150? Não? Ah merda...Tá bom, tá bom, lá vai meu depoimento...
Sei o que tá pensando, mais um desses coroas viciados que não aguentam o tranco da vida... Pois é doutor, não sou o único, caso queira saber. A gente vê muita merda e ganha pouco demais pra isso. Muitos colegas de farda estouraram os miolos por menos, bem menos. Pois é... na vida existem os fodões e os fodidos, e logo, ao escolher ser professor ou no meu caso, policial, faz de mim um fodido em dose dupla. Ah... eu devia ter ficado fazendo o trabalho interno na Civil, umas papeladas aqui, umas assinaturas ali... Mas não! O meu eu estúpido de 20 anos atrás queria ser herói, resolver as coisas, mudar o mundo, impressionar uma loira das coxas grossas...
Mas certo, vamos ao que interessa. Quando eu comecei a ver aquelas coisas? Foi no caso... da freira do Carmo, é esse mesmo! Céus... foi o pior natal da minha vida. Você sabe, eu sou meio amargurado, não ligo pra esse negócio de religião nem essas viadagens de árvore e o velho barrigudo de vermelho... Só gostava mesmo da ceia e de tomar umas biritas até cair numa puta ressaca no dia seguinte. Era dia 25, eu já devia estar indo pro bar do Lindomar quando recebi a maldita ligação da minha chefe...
— Te liguei 5 vezes Roberto! Nem venha com desculpas, sei que tá por aí de bobeira. Não tem ninguém na DP e recebemos um chamado. Vai ter que ser contigo. Suicídio, uma freira no convento do Carmo.
— Quê?! Tá de sacanagem comigo Patricia? Porque não manda o abestalhado do Artur?
— Ele tá de licença médica, gênio. O que você anda fumando?
— Ah é mesmo... Mas porra, justo hoje? Já tinha comprado até uma vodka. Vou querer uma promoção depois dessa.
— Promoção o cacete, você chega todo dia cheirando a cachaça. Agora anda logo que a imprensa já já chega por lá.
...
Enfim, lá fui eu com meu celtinha numa baita má vontade e meio encucado. Afinal, achei que suicídio fosse coisa do capiroto. Uma freira não faria isso, faria? Ou talvez ela só estivesse muito infeliz, eu não conseguiria me imaginar fazendo voto de castidade. Com certeza também iria preferir morrer. Mas eu não tô tirando com a mortes dos outros não. Não sou esse tipo de cara, na verdade essas coisas me assustam, nunca me acostumei 100%. Acho que sou desse jeito porque senão ficaria louco ou morria de vez também.
Já vi de pertinho o que essa tal de depressão faz com as pessoas, doutor. É horrível, ninguém devia subestimar isso. Mas continuando...
Eu não sei se Deus me odeia, mas suspeito que sim. Neste caso a recíproca é verdadeira, porque toda vez que eu entro nessas igrejas antigas, quando vejo os santos me olhando... Sinto um calafrio terrível!Que coisa ridícula, quem já se viu um marmanjo desse com medo de estátuas... Mas enfim, quando cheguei lá, já havia uma aglomeração de curiosos e jornalistas papa desgraça.
A princípio, era um enforcamento. Ela jazia no quarto, pendurada sobre a grade da janela enquanto a área era isolada e os peritos vasculhavam o cômodo perfeitamente bem organizado e limpo, exceto o corpo, não havia nada fora de seu lugar. Coletei alguns depoimentos das outras feiras. O de sempre, quando a encontraram, se viram algo de estranho, se alguém entrou no quarto... Todas as evidências diziam que ela havia tirado a própria vida. Mas com o tempo na polícia eu desenvolvi uma espécie de intuição, que quando algo estava errado, eu sabia. Quando a merda fedia eu podia sentir. E aquilo doutor, aquilo fedia.
Me demorei mais um pouco no quarto, passei os olhos na estante de livros religiosos e peguei discretamente a Bíblia embaixo do travesseiro.
Dei uma palavra ou duas com a imprensa enquanto o corpo seguia pro IML. Ver os pais chorando a perda era de partir o coração. Pra mim era a pior coisa desse trabalho, a vítima se vai mas os que ficam sofrerem a perda pra sempre. Tem coisas que não deveriam ser desenterradas, meu pai dizia: ver, ouvir e calar. Mas eu era teimoso como uma mula, e se a voz na minha cabeça dizia pra ir mais fundo nesse caso, com certeza eu iria, mesmo que tivesse mexendo num vespeiro maldito.