– Sabe, não ter memória alguma dos meus vinte e poucos anos me faz ter várias perguntas. Há tempos queria saber... Que estou curioso... – Hemmet mexeu-se inquieto, desviando o olhar para além da claridade, mirando ressabiado o escuro ao redor do acampamento. Inseguro como sempre ficava antes de perguntar algo pessoal. – Como era... Vocês já tiveram... Algum sonho de infância?
Wendel virou o rosto. Liam murmurou um monossílabo. Ambos claramente não queriam responder. O moreno amnésico então olhou para mim.
– Bem... – Curvei os lábios em um sorriso torto, castando sombras ao erguer-me sobre a fogueira.
A Sol nasce todos os dias, caminhando até o ocaso, galopando no céu azul e deixando brancas de claridade as nuvens macias, coloridas lá adiante. Sua luz ofusca mesmo a noite, quando outro astro brilha pleno, o Lua refletindo a claridade infinda da estrela enquanto avança noite afora, correndo até sua trilha mergulhar também no horizonte longínquo.
E todo novo dia, ascende a Sol, novamente no céu. E desce, e vem o luar aceso, ambos raiando... Infernais como sempre.
Faça chuva, neve, ou vento... Não importa o que se passa, nossa dupla luminosa sempre subirá, certo? Esses dois globos, em maratona intermitente, correm eternos assim como o tempo nunca para, e todos vivem suas vidas piamente crendo que assim será para sempre. Mas... Com base em quê?
Nada garante a presença da Sol. O Lua não confirma compromisso. Ademais, ambas as majestosas presenças vero estão constantemente em desespero. E não seria para menos: já andam exauridos por serem perseguidos, séculos a fio, sem cessar. Os gigantes lobos divinos, Skoll e Hati, seguem sempre em seu encalço, jamais permitindo um momento de descanso, exceto, talvez, se a escolha for o leito da morte certa entre seus dentes.
Não há meios para salvá-los ou forma alguma de acalmar seus corações. A agonia incomensurável crescerá junto da urgência pela vida, o instinto de sobrevivência tão natural às entidades quanto é para nós, até chegada ser a hora do previsto destino. O instante vindouro, inevitável, terminal, nas quais as últimas energias serão derenadas pelos dentes em seus pescoços, Skoll partindo a carne quente da estrela deusa, Hati brindando sangue prateado.
O sucesso da caçada derrubará cortinas negras sobre o mundo, como uma peça de teatro macabra terminando... Mas suas patas não cessarão.
Esse átimo eterno, do qual só nos será permitida a escuridão, é apenas o início do fim.
Pensem. Nao é a Sol senão nossa luz e o Lua aquele responsável por puxar nossas marés? Naturalmente, pois, os lobos descerão dos céus, e sob as patas de Skoll fogo rugirá, brilhante como o astro, rasgando em brasas feridas colossais nos continentes, e quando as patas de Hati tocarem o chão, trarão consigo frias ondas dos mares, e em seu interior, toda a escuridão desconhecida emergirá com elas.
Nuvens de fumaça lesiva subirão do choque térmico recorrente enquanto os irmãos lobos correrem lado a lado, rondando a terra em júbilo, iniciando o fim dos tempos. Fenrir, seu pai, os responderá, orgulhoso, finalmente arrebentando Gleipnir, e logo não mais estarão sozinhos.
Com a súbita elevação dos oceanos, verdadeiros monstros que fazem do sangue gelado de Ymir seu lar engolirão vivas as pessoas e suas casas, Vaetts e elfos enfrentando o mesmo destino que os deuses e os homens. A serpente que envolve o mundo cravará suas presas em Thor; épicas batalhas serão desenroladas a cada segundo, mas a humanidade não as verão, engasgando-se em petróleo, perfurados pelos próprios escombros, ruínas provenientes da destruição de tudo aquilo que um dia já tolamente se orgulharam. Cegas afundarão nas profundezas das águas sob o céu negro, cegas fecharão os olhos contra o clarão de imensas colunas de chamas alimentadas por Surt, cegas cairão com os olhos ardendo, envoltas por verdadeiras jaulas de espessa fumaça ácida. Crianças chorarão suas lágrimas sobre o sangue de seus pais enquanto estes recebem o fim que merecem.
Descerto aqueles que não morrerem esquartejados pelo mar de Hati serão tragados vivos pelas chamas de Surt ou asfixiados pela pressão nefasta de Skoll. O horror perturbará eternamente os últimos minutos de vida dos que ainda não pereceram.
Creio que breve será, no Ragnarok, para que todos estejam mortos. Não tardará para tornarem-se apenas matéria, a alma do navio de Hel e do Pai do Caos. Assim terminaria o ciclo.
– ...
– ...
– ...Admito que não 'tava esperando uma resposta agonizante dessas. – Do outro lado da fogueira, vi o corpo largo de Hemmet estremer enquanto baixava meus braços, o silêncio seguindo minha narração enquanto os três piscavam, me encarando. Ele riu com seu sorriso vazio, aprochegando-se do calor.
– De fato, traria um leque no mínimo exacerbado de formas excruciantes para morrer. – Wendel exibia um semblante austero, quase pétreo entre a luz do fogo e a negritude da noite, mas, eu sabia, escondia uma vontade soturna de sorrir. Vi quando deixou de se conter, o canto da boca erguendo levemente ao ouvir o ponderar baixinho de Liam: – Seria merecido mesmo.
Tentando conter seu próprio riso moralmente condenável, Hemmet coçou a barba, abismado. – Porra, gente, isso tudo... Soa horrível.
– Horrível, Hemmet? Horrível? – Sem controle, gargalhei sentindo um lodo negro de emoções misturadas na garganta. Tomei-lhe a garrafa de cerveja das mãos, ignorando seus insultos e protestos imediatos conforme virava o restante do conteúdo. Ainda sorria sem alegria nos olhos quando o respondi, sincero, do fundo da minha alma, certamente com o que eram os olhos de um maníaco.
– Era minha maior esperança, desde os sete.