O entardecer de outono cheirava a abóboras recém-cortadas: rostos assustadores eram entalhados nas cabeças espalhadas pelos quintais das casas, rodeadas por aranhas de plástico e pequenos monstros mascarados. Os jardins se preparavam para o Halloween em Dimsdale, e em duas semanas as crianças sairiam pelas ruas da pacata vizinhança de Riftmore, fantasiadas e esperando que seus vizinhos tivessem bons doces em suas casas.
— Anda, Kevin!
Elliot chamava o melhor amigo com as mãos em volta da boca, em formato de concha, para que ele pudesse ouvi-lo melhor do andar de cima. Estava parado em frente ao gramado da casa dos Lawrence para que pudessem ir até aquele lugar, onde planejavam ir desde o início do ano.
— Calma, Elliot, meu Deus — Kevin saiu pela porta da frente, empurrando seu pequeno cachorro para dentro antes de pisar sobre a grama. Ajeitou o boné azul dos Yankees, abotoou a jaqueta escura e cumprimentou o amigo com um bater de mãos: — Bora?
— Bora.
Debaixo do braço, Elliot ajeitou seu Tabuleiro Ouija. Tinham encontrado a peça no fundo do ático da casa dele, pouco antes do Natal do ano anterior, coberta de poeira e dentro de uma caixa de papelão repleta de bugigangas inúteis. Naturalmente, os adolescentes surrupiaram o objeto e por mais de dez meses haviam matutado sobre como deveriam estreá-lo.
— Sabe, o Dawson disse que já entrou lá uma vez, mas que o cheiro era tão ruim que eles tiveram que sair — Kevin comentou enquanto atravessavam a rua para o lado direito, onde ficava a casa de Elliot.
— Eles quem? Ele e o Martin?
— E o Paul disse que foi também, o que eu duvido.
Folhas trazidas pelo vento do bosque que cercava a vizinhança caíam sobre a calçada e tingiam o paralelepípedo cinza de alaranjado, vermelho e amarelo. O aroma áspero dos bordos no jardim da casa de Elliot flutuava junto à suave brisa de outono, que serpenteava pelo meio dos dois garotos lado-a-lado na rua deserta. O sol já começava a se pôr e, ao longe, piava uma coruja solitária.
Bastava caminhar o restante do quarteirão para chegar até a casa número cinco, escondida no final da rua sem saída, apagada pelo abandono. Em menos de um minuto Elliot e Kevin estavam diante da estrutura velha e desgastada, rodeada por lendas obscuras desde que suas famílias haviam se mudado para Riftmore.
A casa número cinco não era como as outras casas da vizinhança: ao invés de trazerem os requintes da modernidade em sua arquitetura, tinha um design simplista. Era retangular e sua fachada era feita de pedras cinzentas, já opacas e desgastadas pela erosão da chuva e do vento. Acima do grande conjunto de portas duplas de madeira maciça, pendurava-se um elegante busto de Atena, intocado pelo tempo ou pelo sol. Nem mesmo o musgo havia ousado nascer por cima do mármore branco onde esculpiam-se as altivas feições helênicas da deusa, que agia como guardiã daquela casa há muito abandonada.
Do telhado esburacado e sem nenhuma telha para resguardar o andar de cima, brotava uma grossa hera verde que descia pelas paredes pétreas e vingava pelas inúmeras rachaduras ao longo da fachada, preenchendo-as quase que por completo. O jardim, ao contrário da hera, estava morto: apenas mato e ervas-daninhas cresciam por cima da grama alta, em cujas folhas compridas pousavam grilos e besouros. Os galhos do bordo vermelho entravam pelas janelas quebradas pelo vandalismo, e no degrau sob a soleira da porta prosperavam uma colônia de cogumelos vermelhos, com grandes pintas brancas.
O portão estava aberto, desguarnecido há muito tempo, quando alguns garotos mais velhos, vizinhos de Elliot e Kevin, decidiram quebrar as correntes e os cadeados que ainda protegiam o interior da casa número cinco. Eles, porém, não haviam ousado entrar lá — segundo a história que haviam contado naquele mesmo dia, barulhos estranhos vinham de dentro da casa, junto de um cheiro nada agradável.
O medo os calou em seu trajeto até a porta. Kevin foi atrás, munido de um pedaço de pau — um graveto — que achara no caminho, para se defender de qualquer perigo que pudesse atacá-los pelas costas. Elliot ia na frente, com o tabuleiro bem seguro nos braços, apertado junto ao peito, e uma apreensão que fazia seus ombros se encolherem e seus pés pisarem devagar, um prenúncio de pavor que fazia até o último fio de cabelo em seu corpo se arrepiar por completo.
Elliot foi o primeiro a entrar na casa: o piso de madeira mole e empoeirado, apodrecido pelo tempo e pelas goteiras do teto, rangeu sob seus pés. Atrás dele, logo em seguida, veio Kevin, que sussurrou, exasperado:
— Uau, aqui é gigante! — Admirado pela imensidão da grande antessala, ele andou até o meio, onde se estendia um grande tapete de cores outrora brilhantes, mofado e rasgado em diversas partes. — Será que quem morava aqui era rico?
O buraco no teto, logo acima da cabeça de Kevin, deixava a luz do sol entrar e iluminava sua silhueta no interior escuro do casarão. Elliot via-se cercado pela escuridão, pela poeira e pelo cheiro de mofo. Olhou para os lados, um tanto desorientado, e em engoliu em seco, ignorando a pergunta de Kevin:
— Onde a gente vai jogar?
— Que tal lá em cima?
— Nem fudendo — Elliot rebateu depressa, apavorado pela ideia de ter que subir a escadaria repleta de buracos e degraus amolecidos pelo mofo. Kevin cruzou os braços, contrariado, e assim que ergueu as sobrancelhas, numa indagação silenciosa, o amigo entregou-lhe outra sugestão: — Que tal nessa sala?
A sala ao lado era iluminada por um único raio de sol vindo da janela na parede adjacente à porta da frente. O vidro sujo e opaco fora rompido pelos galhos selvagens de um bordo vermelho, a única árvore que restara no jardim da casa número cinco. Sem dizer uma palavra, Kevin apenas seguiu o melhor amigo em passos cautelosos até a grande sala frontal. Debaixo de seus pés, o piso de madeira rangia e estalava, e conforme entravam no cômodo, um cheiro repulsivo de carne podre enchia suas narinas, um odor terrível, perfurante.
— Que porra… — murmurou Kevin, de nariz tapado. Abancou-se debaixo da janela, onde a luz era mais abundante, e esperou o amigo tirar o tabuleiro da caixa. — Cara, parece que alguém morreu aqui.
Elliot sentou-se na frente de Kevin, com as costas voltadas para a escuridão, de onde vinha o aroma pútrido de decomposição. Antes de colocar as mãos sobre o indicador de madeira, buscou os olhos do amigo:
— Você promete que não vai ficar de gracinha? Os espíritos podem ficar bravos e a gente só vai se…
— Vou ser cem por cento honesto, sem pegadinha.
Kevin pôs os dedos das mãos em cima da peça de madeira e Elliot espelhou seu gesto. Por cima do silêncio da casa número cinco, soavam suas respirações pesadas. Um rato correu no andar de cima. A brisa do entardecer soprou para longe as folhas da calçada. No fundo do bosque, piou uma coruja solitária.
— Tem alguém aí?
Novamente, o silêncio. O ponteiro não se moveu.
— Oi, tem alguém aqui? — foi a vez de Kevin perguntar.
De repente, uma pressão externa envolveu os antebraços de Elliot, empurrando suas mãos na direção do topo do tabuleiro. No centro do pequeno buraco circular, enquadrada com perfeição, estava a palavra “SIM”.
— Qual o seu nome? — Quis saber Kevin, num sussurro amedrontado.
Uma força sobrenatural guiou os dedos dos garotos pelo tabuleiro; a peça de madeira deslizava pela tábua devagar o suficiente para que eles conseguissem memorizar as letras ditadas pelo indicador, que soletrava:
B… R… U… N… O…
— Bruno? — Elliot ergueu uma sobrancelha.
— Você veio nos fazer algum mal, Bruno? — Kevin perguntou, e, num instante, o Olho de Hórus moveu-se para a palavra “NÃO”. — Ah, graças a Deus…
O ar saiu dos pulmões de Elliot num suspiro aliviado, que tirou de cima de seus ombros um peso gigantesco. Kevin voltou a perguntar para o tabuleiro, num tom de voz mais alegre, mas ainda assim trêmulo:
— Você morava aqui? Essa é a sua casa?
O ponteiro de madeira se moveu lentamente, até parar com o visor de vidro fosco por cima da palavra “SIM”.
— Existem outros seres aí com você?
"NÃO"
— Não?
Kevin o interrompeu:
— Então, hã, que tipo de espírito o senhor é? Tipo um fantasma?
Novamente, a força movimentou as mãos dos amigos, soletrando:
D… E… M… O… N… I… O…
Um calafrio congelante percorreu o corpo de Elliot. Como quem toca em brasa, largou o indicador e buscou os olhos do amigo. O ar sumiu de seus pulmões, e seu coração pareceu parar de bater por um instante.
Num piscar de olhos, Kevin foi jogado para trás, acertando as costas na parede empoeirada atrás de si. O tabuleiro virou de cabeça para baixo e a peça desapareceu na escuridão do quarto. Com violência, Elliot foi empurrado contra o chão e, em seguida, sentiu seu corpo ser levantado bruscamente no ar. Seu grito foi cortado quando atingiu o chão, e o nome de Kevin foi a última coisa que escapou de seus lábios antes de ser esmagado contra o piso de madeira por uma força sobrenatural.
De canto de olho, viu o amigo ser arrastado para o breu, para dentro da escuridão, onde seus berros desesperados, de repente, findaram-se com um ruído alto, molhado e enjoado. Algo caiu no chão, e o cheiro de sangue empesteou o quarto.
Elliot fez força para se levantar, mas foi empurrado novamente e lançado contra a parede como uma inútil boneca de pano. Seus membros esticavam-se até o limite; pernas e braços, dedos e mãos, abriam-se, pregados à alvenaria da casa por uma pressão esmagadora, que apertava seu corpo e espremia seu peito, tornando difícil respirar.
Uma silhueta então apareceu no canto do quarto, como se sempre estivesse ali, de pé, caminhando devagar até o garoto esticado. Perto das pernas da criatura, empilhavam-se silhuetas indiscerníveis, de formatos variados, repletas de apêndices e extensões sem sentido. Envoltas pelo escuro, era difícil dizer do que se tratavam, mas o cheiro de sangue embebido no aroma sulfúrico de carne podre denunciava: eram corpos partidos e desfigurados, desmembrados e dilacerados.
— Ei, Elliot… — Uma voz doce cantarolou seu nome, pronunciando cada sílaba como se as saboreasse. A silhueta se aproximava a passos leves, num caminhar lento e hipnótico. De repente, estavam frente a frente, e ele cantou para Elliot mais uma vez: — Está feliz em me ver?
A luz vinda das janelas quebradas finalmente o tocou, apreensiva, e Elliot encarava, mortificado, aquela criatura diante dele — um menino da sua idade. Ele tinha cabelos pretos como o véu da noite, de aparência leve e macia. Quando as sombras terminaram de desnudar-lhe o rosto de feições belas, elas revelaram grandes talhos verticais em ambos os olhos, que desciam, pretos, até sua mandíbula, como lágrimas escuras tatuadas em sua pele branca. Na cabeça, o menino tinha um grande par de chifres curvos e penas de pássaro cresciam em seus braços e mãos almofadadas.
— Por favor… Me deixa ir embora… — implorou Elliot. Sua voz embargada pelo choro soara como o lamúrio de um animal estrangulado. — O que você fez com o Kevin?
Ao ouvi-lo, seu enorme sorriso abriu e abriu, rasgando seus lábios até as orelhas, revelando fileiras e fileiras de dentes pontudos e afiados. O abismo vazio de seus olhos negros fitou Elliot demoradamente. Olhá-lo lhe inspirava pavor, a vontade crua de correr pela própria vida, sem olhar para trás. No entanto, algo mantinha sua cabeça parada e todos os seus membros no mesmo lugar, esticados contra a parede como o Homem Vitruviano. Quanto mais o olhava, mais seu rosto tomava outras formas, liquefazendo-se em faces de horror e agonia.
Um tentáculo grosso e de aparência viscosa saiu das costas dele e ramificou-se em dois, mais finos e enrolados como as gavinhas de uma parreira. Elliot berrou quando eles rastejaram pela pele de seu braço, indo por dentro de sua blusa e de seu casaco, rasgando-os como papel. Seus gritos não cabiam mais no quarto quando sentiu outros tentáculos invadindo seu corpo, dessa vez pela calça. As gavinhas maiores enrolavam-se em seus membros e os puxavam para fora do corpo, enquanto as menores entravam em Elliot, empurravam seus órgãos, agarravam suas entranhas, esmagavam suas veias.
— Kevin não era como você — A voz doce tornou-se um sussurro áspero e grave, monótono e sem emoções. — Perfeito.
Os tentáculos encontraram a boca de Elliot e a adentraram com violência, sem deixá-lo gritar. Percorreram seu esôfago e foram até seu estômago, esmagando-o de dentro para fora, perfurando-o, rasgando-o. Sentiu vontade de vomitar. Elas estavam dentro dele. Rastejando dentro dele. Tentava fechar a boca, apertar os lábios, tossir. As gavinhas o seguravam aberto e desciam grossas até sua garganta, sufocando-o.
De repente, outro tentáculo igualmente oleoso apareceu de trás do demônio, balançando como uma cauda canina. A violência rompeu as costuras de seu jeans, o tecido de sua cueca e, de uma só vez, empalou-o. Sem forças para gritar, Elliot chorou. O braço viscoso percorreu seus intestinos, furou-os e buscou o coração frenético, que ainda batia atrás da caixa torácica apertada pelo abraço das gavinhas. Dor. Que embaçava sua vista. E fazia seu corpo inteiro tremer, molhado de suor e urina. Era a dor.
Quis gritar por socorro. Quis pedir por misericórdia. Quis chamar por Deus.
Estava preso nos olhos do demônio quando ouviu a mesma voz doce de antes lhe dizer, num arrulho apaixonado:
— Ficaremos juntos para toda a eternidade — O tentáculo dentro de Elliot espremeu seu coração. — Só você e eu.