Eu estava na Escuridão (ainda/de novo) quando me deparei com aquilo a poucos passos de mim. A princípio, parecia mais um amontoado de trapos imundos que de algum modo conseguia se destacar mesmo tão mergulhado em trevas como estávamos, mas pude distinguir uma silhueta humanóide em meio a todos aqueles andrajos. De imediato, um forte e inexplicável repúdio tomou conta de mim ao me dar conta daquela presença e tal sensação só fazia se intensificar conforme o tempo lentamente passava.
A forte impressão que aquilo passava era de ser algo desprezível, uma coisa sem valor descartada após perder sua utilidade, tal qual uma fralda geriátrica ou um saco de vômito após o uso; muito provavelmente sequer deveria de fato ter existido, para começo de conversa; sim, era isso e muito mais que vinha em meu pensamento e, sem que eu desse por mim, comecei a xingar aquela coisa ali sentada, trêmula e encolhida em um escárnio de abraço em si mesma. A súbita tentativa de extravassar não adiantou: o ranço se converteu em violência física e após as agressões gratuitas e inclementes, me vi enforcando aquele corpo fétido recoberto por andrajos, que se debatia fracamente, praticamente entregue aos caprichos coléricos de quem lhe removia o ar e a vida.
Foi então que, no auge do desatino, pude enxergar os olhos de minha vítima, mesmo por baixo de toda aquela sujeira e hematomas. Havia beleza, súplica e lágrimas naquele olhar, o que me fez afrouxar o aperto tenaz de meus dedos o suficiente para que eu pudesse ouvir uma única (ou talvez última) pergunta imersa na mais genuína tristeza: "por quê me odeita tanto...?"
Meu coração disparou como talvez nunca o tivesse feito antes. Eu conhecia aquela voz. Sem entender nada e ainda asfixiando a figura imunda, perguntei o quê ela era, ao passo que, quase sem forças ou fôlego, a frase "O quê não... Quem. Eu... Sou Anônimo(a).
O sufocamento parou. O tempo também. Aquele era meu nome. Aquela era minha voz. Aquela coisa perante mim, tão suja, ferida, fragilizada e quase destruída tinha o mesmo nome que eu. Não, mais que isso: ERA eu. Como? Como era possível?!
Anônimo(a) se aproximou de mim e, com as mãos lânguidas em meu rosto, moveu os lábios de modo a projetar sua voz não somente aos meus ouvidos, mas principalmente ao meu coração:
Eu sei que as coisas tem sido ou são muito difíceis, às vezes até mesmo cruéis.
Eu sei que que você tem dúvidas, medos e arrependimentos.
Eu sei o quanto seus fracassos e omissões custaram e ainda vão custar.
Eu sei porque eu estive lá o tempo inteiro.
Então, Anônimo(a), mesmo que alguém, alguns ou até mesmo todos os outros te julguem ou condenem,
Te traiam ou decepcionem,
Te machuquem ou humilhem,
Te desprezem ou abandonem,
Cuspam nos seus esforços,
Defequem no seu sofrimento,
Ou simplesmente ignorem ou rejeitem por completo sua existência,
Eu sempre estive e sempre estarei com você.
Então eu te peço... Eu te imploro...
Por favor, me perdoe
Por favor, me aceite
Por favor, me ajude
Por favor... Me ame...
E assim Anônimo(a), com toda a dificuldade e emoção do mundo, me abraçou em um pranto silencioso, todavia potente que me fez estremecer e marejar os olhos sem que, em um primeiro momento, eu sequer conseguisse reagir. Mas então eu ouvi sua (ou seria minha? Talvez a nossa...) voz sussurrar na medida em que eu fechava meus olhos em uma tentativa de não me render igualmente ao choro:
Eu sei o peso do que estou te pedindo... Mas, se fizer isso com o tempo, não prometo que tudo vai acabar bem, mas prometo que você vai conseguir ir muito mais longe e mais alto... E talvez, com muita sorte e muito esforço... Seja muito, muito feliz um dia... Não hoje, nem em breve, mas um dia... E eu também quero e vou estar lá com você.
E também por você...
Quando abri o olhar marejado, percebi que era eu quem estava no chão, na imundície e com o corpo maltratado, ferido e em vestes maltrapilhas, abraçando-me com uma força e um carinho que sequer julguei que existiam (ou pudessem de fato existir) em mim.
A escuridão ainda me rodeava. Porém...
Eu me levantei.
Eu me limpei.
Eu me abracei.
E por fim eu chorei, mas desta vez de felicidade, pois depois de toda a solidão, desprezo, desilusão e sofrimento...
Finalmente eu me encontrei.