PARTE I
Harold era um adolescente comum, mas tinha um defeito: não sabia amar ninguém além de si mesmo, embora não acreditasse em sua própria incapacidade afetiva e tentasse de todas as formas disfarçar este fato. O garoto morava em uma pequena vila, junto ao seu pai viúvo e seu irmão mais novo, no cume de uma alta montanha que se findava em um vale frio e escuro.
Certa manhã, seu pai lhe pediu para ir à floresta colher amoras, pois era a data da morte de sua mãe. Todos os anos, nesta data, o bom senhor preparava uma torta de amora deliciosa, receita que aprendeu com sua falecida e amável Scarlet, para relembrar os bons momentos em que viveram juntos. Harold, estava sentado na relva debaixo de uma acácia lendo um fantástico livro de aventura, quando recebeu o pedido. O garoto acenou com a cabeça de forma afirmativa, mas não queria parar de ler sua história. Foi então que ao ver seu pequeno irmão brincando com as ovelhas, ocorreu-lhe uma ideia. Caminhou até ele e disse:
- Venha David, vamos à floresta colher algumas amoras para o papai. Hoje é o dia em que ele irá nos preparar a deliciosa receita de torta de amora que mamãe nos deixou.
O pequeno David, amável como sempre, aceitou de prontidão embrenhar-se em meio à floresta junto ao seu irmão para colher as rubras frutinhas. Após chegarem à uma distância em que seu pai não poderia vê-los, Harold parou, e percebendo isto David fez o mesmo. O jovem sentou-se em um tronco velho e chamou seu irmãozinho para perto de si, dizendo:
- Querido David, eu gostaria muito de lhe ajudar a colher as amoras, mas estou me sentindo fraco e enjoado. Acho que o café da manhã não me caiu bem. Mas papai precisa delas. Esta torta é a única coisa que restou da mamãe, se ele não a preparar todos os anos é capaz de morrer de tristeza. Por isso, você mesmo terá de buscar as amoras sozinho.
- Oh Harold, fico tão triste em vê-lo doente. Espero que logo esteja bem. Fique tranquilo. Irei buscar as melhores amoras desta floresta. - E dizendo isto, o irmão mais novo partiu mato afora em busca das mais belas frutas que pudesse encontrar.
Naquele momento Harold sentiu-se triste e culpado por estar enganando seu irmão, mas não passou muito tempo até justificar-se com uma de suas velhas desculpas. Sentou-se nas folhas secas espalhadas pelo chão, encostou-se em uma enorme árvore, cruzou suas pernas e voltou ao seu livro.
Alguns minutos depois ouviu um grito desesperador vindo do fundo da floresta, era a voz de seu irmão. E mal havia se levantado quando escutou o som de um tiro. Logo, começou a correr desesperado, rumo ao grito que o apavorava. A única coisa que passava em sua mente era o quão bravo e triste seu pai ficaria, caso seu irmão se machucasse ou pior, morresse.
Não demorou muito até encontrar o pequeno David, encolhido, chorando e tremendo junto aos braços do reverendo Becket, que em uma de suas mãos segurava uma enorme espingarda. Ao lado do pastor, o cadáver de um grande lobo recém abatido por um tiro, estirava-se na relva.
O homem olhou furioso para Harold.
- O que passa pela sua cabeça, rapazinho? Como pôde deixar seu irmão mais novo andando sozinho por esta perigosa floresta? Você perdeu o juízo? Se não fosse eu a encontrá-lo, teria virado comida de lobo.
Harold nada disse, e de seus olhos verteram lágrimas de arrependimento.
- Não brigue com ele pastor! Harold está passando mal. Por isso não veio colher as amoras comigo. E nós precisamos delas para que papai não morra de tristeza por tanta saudade da mamãe. Somente por isso ele me permitiu caminhar sozinho pela floresta, ele nunca me deixaria em perigo.
O bondoso homem olhou para David com imensa admiração e espanto, pela pureza que habitava em seu coração.
- Não David - disse Harold em baixo tom - eu não estou doente. E não, papai não morrerá de tristeza se não fizer esta torta, pois ele sabe muito bem onde mamãe está. A verdade meu irmãozinho é que eu menti para você.
David não disse nada, somente abaixou sua cabeça e chorou. Mas para a surpresa de seu irmão, e do rev. Becket, em poucos segundos ele a levantou, enxugou suas lágrimas e disse:
-Eu te perdoo.
Harold desatou em prantos. Mas Becket sacudiu-lhe o corpo e disse que não deveria chorar, mas assumir a responsabilidade pelo o que fez e nunca mais repetir terrível façanha. O pastor levou-os para casa e contou tudo ao pai. Com tremenda dor e alívio, o senhor abraçou o filho mais novo e agradeceu a Deus por não ter levado sua amada criança. Mas com semblante amargo e vergonha no coração, olhou para Harold e ordenou-o que fosse para seu quarto, e de lá não saísse até o anoitecer.
PARTE II
Naquela noite, não houve torta. Mas todos cearam juntos. Ao reunirem-se na mesa redonda, o pai segurou a mão de seus dois filhos e disse:
- Meus filhos, como eu os amo. Amo de todo o meu coração. Daria minha vida por vocês. David, meu filho amado, como estou feliz em ter você aqui para cear comigo esta noite. Mesmo sem a torta de amora, meu coração está contente, porque vocês estão comigo. Sua mãe está sorrindo e cantando em pastos verdes, neste momento. Eu sinto a falta dela, mas ela está em um lugar muito melhor do que estamos. São vocês o meu maior tesouro.
Após ouvir estas palavras, Harold se sentiu estranho. Pois apesar de todo o ocorrido não sentia a mesma coisa que o pai. O único sentimento que havia em seu coração era tristeza, tristeza por não comer a deliciosa torta de amora. Acontece que ao decorrer do tempo, trancado em seu quarto, todo o arrependimento e dor em seu coração cicatrizaram. Ficou o resto da tarde lamentando, pois por sua própria culpa não comeria a deliciosa torta.
O pai orou, agradecendo pelo alimento e pela presença dos filhos e após o amém, todos comeram. Embora não houvesse sobremesa para o fim do jantar, o senhor havia matado um peru bem gordo para comemorar a vida junto aos filhos. Findou-se o jantar e todos estavam cheios. Mesmo assim, Harold não conseguia parar de pensar na torta de amora. Já David estava cansado após um dia tão longo e difícil, então pediu a benção de seu pai e foi dormir. Harold já estava se levantando da mesa quando o bom senhor disse com carinho e repreensão:
- Sente-se meu filho, tenho algo a falar com você. Eu preciso lhe contar o que acontece com aquelas pessoas que só pensam em si mesmas, pois um terrível e amargo fim as espera, e tenho medo que você seja uma dessas pessoas. Existem demônios que rondam por nosso mundo, que vivem à nossa espreita, ansiosos em devorar a vida dos homens. Em todo tempo eles investem contra nós para se alimentar de nossa carne, beber o nosso sangue e devorar o nosso espírito. Mas os heróis da noite, guerreiros celestiais e invisíveis, não permitem que eles nos devorem, e nos protegem destes terríveis predadores. Mas filho, escute bem o que lhe direi. Aqueles que só amam a si mesmos, não têm a proteção dos heróis da noite. Pois estas pessoas recusam a sua ajuda, e se aventuram sozinhas em busca de satisfazer apenas os seus desejos. Elas caminham para o seu próprio fim, como um louco que por desejar riqueza e poder, invade a caverna de um dragão furioso em busca de ouro, e é carbonizado pelas chamas impiedosas de suas narinas. Portanto meu filho, engula o teu ego e viva para amar, não amar como um hedonista, mas amar como um amigo.
O garoto não entendeu muito bem o que o pai estava dizendo, ao que parecia ele estava preocupado com seu filho e desejava que ele fosse menos egoísta. Harold não teve o que dizer senão:
- O senhor tem razão pai. Peço-lhe perdão.
- Tudo bem, meu belo rapaz. Só não pense que irá ficar sem castigo. Amanhã terá de cortar lenha o dia todo.
Harold fez uma careta e virou-se em direção ao seu quarto. Seu pai riu e lhe deu a benção. Naquela noite, o rapaz não conseguiu dormir. Estava muito nervoso, pois não comera sua desejada torta de amora. Ocorreu-lhe então outra ideia. Decidiu ir à floresta sozinho para buscar amoras e tentar reproduzir a receita de sua falecida mãe. Calçou um par de botas, vestiu um casaco, pegou a faca de seu pai e caminhou floresta adentro sem que ele ou o irmão percebessem.
À noite, a floresta era muito mais assustadora. Não andou muito até começar a ouvir uivos misturados com o som das árvores chacoalhadas pelo vento. Ouvia-se o canto de cigarras e até mesmo o sibilar das cobras. Algumas vezes deu de frente com morcegos que pendiam dos galhos. Era um cenário apavorante, mas Harold estava determinado a buscar suas amoras. Entretanto, as frutas pareciam ter simplesmente sumido da floresta, e em sua busca o garoto se embrenhou cada vez mais fundo através das árvores, até que de repente começou a ouvir um riso baixo e maléfico soando ao seu redor. Ao ouvi-lo, Harold ficou paralisado, e por cerca de cinco minutos não se moveu. Com muito custo criou coragem e disse:
- Quem está aí? - O riso não parava e estava cada vez mais próximo - Ei, se revele! Quem está aí?
Foi então que sentiu em seu esquerdo ombro o toque de uma mão magra e enrugada com unhas enormes. Ao virar para trás deparou-se com uma bruxa. De sua corcunda aos pés, sua altura era de dois metros. Harold nada disse, estava em estado de choque.
- “Quem está aí?” - Disse a bruxa sorrindo - Sou eu, a sua senhora, a sua dona. E você meu lindo rapaz, é o meu novo escravo. Irei levá-lo a minha cabana, e me servirá até que eu me canse de você.
O garoto foi amarrado com um tipo estranho de corda orgânica, e levado cativo até os aposentos da velha bruxa. Ao chegar na cabana, cerca de duas horas da manhã, Harold foi colocado em uma gaiola de coruja, era ali que deveria dormir. Como é de se imaginar ele não dormiu naquela noite, mas chorou até o amanhecer, pois o amor ao seu próprio prazer o havia levado ao cativeiro.
PARTE III
Na manhã seguinte, Harold foi atarefado de construir um fogão de tijolos, cortar lenha e picar e preparar o assado da bruxa. Espantou-se ao ver que o prato do dia era o lobo que o rev. Becket havia matado na manhã anterior. Ele não havia sido limpo como deveria, ou conservado adequadamente com sal, mas já estava fedendo e atraindo dezenas de moscas. Após muito esforço e suor, Harold terminou de fazer suas tarefas e o almoço foi posto à mesa. A bruxa devorou todo o lobo, que não parecia nada apetitoso, deixando apenas uma pata para o menino, mas ele não quis comer.
Após o término da refeição a bruxa foi dormir e disse:
- Quando eu acordar quero ver esta casa totalmente limpa. Eu irei passar o dedo no chão, e caso esteja empoeirado eu irei devorá-lo esta noite.
Harold, apavorado, fez tudo conforme ela o havia ordenado, não deixando nenhum grão de poeira no piso da casa. A bruxa acordou e como havia prometido passou o dedo no chão: nenhuma poeira havia. Ela ficou muito irritada, pois não havia planejado nada para o jantar, senão o infeliz rapaz. Ela não acreditava que ele conseguiria cumprir as tarefas. Naquela noite, a bruxa não ceou.
No dia seguinte, as tarefas foram as mesmas. Harold devia construir um novo fogão de tijolos, cortar lenha nova e picar e preparar uma nova carcaça de animal, trazida pela bruxa na madrugada. À tarde, devia limpar novamente a cabana, e caso houvesse alguma poeira, viraria churrasco. Novamente, ele conseguiu concluir as tarefas, e mais uma vez a bruxa não ceou.
Foi assim durante os próximos quatro dias. No terceiro dia, o garoto estava tão faminto que foi obrigado a comer carne podre, caso contrário morreria. A bruxa estava muito irritada, pois estava passando todas as noites sem cear. Ela finalmente aceitou o fato de que Harold sempre conseguiria cumprir suas tarefas. Foi então que teve uma ideia:
- Maldito escravo, tens me enfraquecido, pois todos os dias tens me roubado a ceia deixando-me sem forças. Darei a você uma última tarefa, caso a complete, estarás livre para voltar à sua casa. Mas caso fracasse - deu uma pausa para gargalhar - serás levado ao inferno pelos deuses do submundo e sofrerás eternamente.
Embora Harold tenha ficado apavorado com a parte de ser condenado eternamente ao inferno, ficou animado só por ouvir a palavra “livre”. Eis que a tarefa foi dada:
- No vale negro, aos pés da montanha, existem deliciosas frutas chamadas eros. Dizem que são tão gostosas que são capazes de nos levar ao êxtase. E eu preciso de sentir este prazer, prazer que me têm sido roubado pela excelência de seu árduo trabalho. Mas se me trouxer uma destas frutas, serás livre. Entretanto, antes de partir para sua derradeira aventura precisa saber de uma coisa. Aquele vale é a terra dos demônios. Eles são criaturas de três metros de altura, com uma magreza raquítica e asas enormes, compostas por ossos e pele. Seus dentes são enormes e afiados e sua principal refeição são seres humanos, principalmente aqueles que só amam a si mesmos. Eu e você seríamos um prato perfeito para eles. Caso não queira cumprir esta tarefa serás devorado agora mesmo.
Harold não tinha escolha senão partir em sua jornada. Para que tivesse ao menos alguma chance de completar sua tarefa, a bruxa lhe deu um grande pedaço de pão e uma taça de vinho antes de partir. Após se alimentar sentiu-se mais forte e disposto. Antes mesmo de chegar ao vale começou a sentir um cheiro terrível de sangue, que foi ficando cada vez mais forte até chegar ao pé da montanha e contemplar a negra floresta à sua frente. Lá embaixo não existia dia, apenas noite. Harold lamentou mais uma vez por ter sido tão idiota.
As folhas das árvores, assim como seus troncos, eram negras como carvão, tornando impossível de se enchergar um palmo à frente de seu nariz. Por isso, antes de entrar na floresta escura, o menino acendeu uma tocha e entrou na mata impiedosa. Diferente da floresta das montanhas não se ouvia o chacoalhar das árvores, nem o som de animais, mas apenas gritos de dor e sofrimento, além do terrível cheiro de sangue, sangue humano. Harold, apavorado, andou cerca de dez minutos até finalmente conseguir ver algo brilhando no alto de uma árvore. Quando chegou mais perto percebeu que se tratava de uma fruta, vermelha como sangue, brilhante como o fogo. Era uma fruta linda e agradável aos olhos, mas não estava ao seu alcance. O fruto do pecado, como era chamado, estava pendurado a sete metros do chão. Ele decidiu escalar a árvore, afinal aquela fruta era o único ingresso para sua liberdade. Mas ao chegar em uma altura adequada para colhe-la, o jovem escorregou. Teria torcido o pescoço, não fosse o seu cinto que se agarrou a um galho deixando-o pendurado de cabeça para baixo, como uma fruta.
Alguns segundos após o seu escorregão, viu outra coisa brilhando à sua frente, eram duas esferas grandes e espichadas, elas estavam se aproximando progressivamente. A luz piscou e Harold percebeu que se travava de olhos. Era um demônio. Ele era horrível, assim como a bruxa havia descrevido, mas pior. O diabo abriu suas asas, cuja envergadura somava um total de seis metros de comprimento, estendeu suas mãos e segurou a cabeça de Harold tirando-o do galho e levando-o para perto de seu rosto. Antes de devorá-lo, arrancou com facilidade suas roupas e mutilou o seu corpo com suas afiadas garras.
Pobre Harold. Com sua insensatez usou o seu irmãozinho, como uma simples ferramenta para colher amoras e satisfazer os seus desejos. Mas agora ele estava sendo usado pela bruxa como uma ferramenta para traze-la prazer e êxtase. E ele mesmo, como uma amora retirada de um galho, estava vertendo rubro sangue, enquanto o demônio chupava seus próprios dedos ensanguentados. Neste instante, Harold lembrou-se de tudo o que seu pai havia lhe dito, e como poeta cantou:
Ó miserável pecador
Tu merecestes esta amarga morte
Pois como a bruxa impiedosa
Usou a amada criança
Para fins perversos satisfazer
Ó amado David, quão gracioso és tu
Teu amor não tem limites
É mais forte que a morte
Ó papai, quão misericordioso és tú
Que mesmo levando teu filho à beira da morte
Me amaste como o ama
E é por isso que em meu derradeiro adeus quero dizer
Eu os amo
No exato momento em que Harold pronunciou estas palavras, nada se viu ou ouviu, senão um vulto prateado e brilhante e o tinir de uma espada cortando os braços do demônio, fazendo com que o garoto, com o corpo mutilado, caísse. Mas antes que pudesse tocar o chão, dois braços firmes e fortes o segurou e o deitou na relva. A única coisa que o garoto conseguiu contemplar antes de sua simcope foi um homem vestido com uma capa branca e pesada chocando sua espada contra o pescoço do diabo, decapitando-lhe e derramando seu negro sangue.
Quando Harold acordou, estava deitado em sua cama, e não havia nenhum ferimento em seu corpo. Sentado à beira de seu leito estavam seu pai, seu irmão e o rev. Becket que o esperava despertar.