Floco de Neve se Afogou na Banheira
As Flores Selvagens
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 04/10/21 11:47
Gênero(s): Drama Reflexivo
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 49min a 66min
Apreciadores: 2
Comentários: 2
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Palavras: 7963
Não recomendado para menores de dezoito anos
Notas de Cabeçalho

Olá, florzinhas!

Eis que venho postar (finalmente) meu texto (talvez o) mais trágico na Academia. Originalmente escrito em 2018, como uma fanfic que se passava na capital da Coreia do Sul, algumas adaptações feitas ao longo dos anos e chegamos nesta versão mais recente. Esse texto encontra-se também postado na minha página pessoal no Tumblr.

ALERTA DE GATILHO! Este texto contém cenas de morte, suicídio, mutilação, consumo de drogas e outros conteúdos sensíveis, esteja ciente antes de continuar a sua leitura.

Boa leitura!

Capítulo Único Floco de Neve se Afogou na Banheira

Porcelana branca ficou vermelha, enquanto a neve se afoga nas suas artérias.

Quando eu lhe conheci você era aluno do último ano, de saco cheio da escola e daquela gente podre que enchia a sua sala de aula.

Eu tinha acabado de passar por outra frustração do tamanho de um rinoceronte e fui derramar as mágoas e as dores numa festa da faculdade. Saí daquele lugar totalmente tonto, eu mal conseguia andar. Devo ter passado duas ou três horas sentado numa guia de calçada, esperando o efeito perturbador da bebida parar de fazer minha cabeça rodar e meus pés pisarem um no outro toda vez que eu andava.

De repente eu ouvi algumas vozes altas, e por trás delas alguém choramingando. As vozes pareciam rir. Eu tentei olhar, mesmo que tudo parecesse torto e deturpado quando eu tentava ver. Um grupo de três garotos passava andando do outro lado da rua, enquanto alguém parecia estar deitado na calçada, deixado para trás. Eu não entendi nada, era uma confusão sem fim na minha cabeça.

Se fosse hoje, eu reconheceria aquele choramingo e aqueles gemidos de dor em qualquer lugar.

Eles continuaram mesmo depois dos garotos irem embora, então eu percebi que eram de quem estava lá no chão, jogado no cimento frio da calçada. Tentei atravessar a rua aos tropeços. Naquele momento eu conheci o melhor remédio para porres e ressacas que eu poderia encontrar.

Assim que me abaixei ao seu lado, eu vi os cortes do seu rosto, evidentemente vindos de socos e pontapés, pois eles desenhavam os ossos sob a pele branca. Seus gemidos aumentaram quando eu toquei sua testa úmida de suor e suja de sangue seco por conta de um corte na linha dos seus cabelos — que segundo você, vieram de uma das brigas daquela noite.

Você tinha as mãos segurando os joelhos, deitado numa posição fetal como se aquilo fosse lhe proteger de algo — tolamente acreditei naquele momento que fosse o vento frio gelando seus joelhos pelos rasgos na calça jeans. Pouco tempo depois eu descobriria que aquela posição nada mais era do que um trauma. Você sempre foi uma criança em algum lugar aí dentro, Yuki. Você ainda era parte de algum útero imaginário que você criou para a sua própria proteção emocional.

Sua vida já tinha se perdido de alguma forma muito antes de eu aparecer. No entanto, desde aquele dia, eu achei que poderia lhe salvar.

— Ei, cara, tudo bem? — eu tentei dizer, mas provavelmente isso saiu muito enrolado para você entender. Outro choramingo de dor e você apertou os olhos fechados, como se algo lhe doesse mais naquele instante.

Fiquei ali parado pensando no que poderia fazer. Você poderia me bater por tentar levantá-lo, porque poderia doer ainda mais, ou eu poderia tropeçar com você nos ombros, pois eu mesmo não me aguentava de pé. Porém, como eu sempre lhe disse, você curava meus porres.

Tentei levantar você e carregá-lo nos ombros até algum lugar onde pudéssemos sentar. Eu devo ter pego em algum ponto muito machucado, pois lembro de uma lágrima discreta descer o seu rosto quando comecei a erguê-lo do chão. Não foi difícil como eu pensei, pois você não se negou a ser ajudado e tentou levantar-se conforme eu o puxava. Eu só percebi que estava carregando um cara ainda maior que eu nos ombros, quando lhe coloquei de pé e joguei seu braço nos meus ombros.

Carreguei você até a esquina e só então eu percebi onde tinha ido parar depois de tanto andar bêbado. Era idiota e inconsequente levar um estranho que aparentava ter brigado com uma matilha de lobos para dentro da minha casa, mas eu o fiz. Mais duas quadras e estávamos subindo as escadas escuras do prédio.

Coloquei você sobre o sofá da sala meio deitado, meio sentado, apoiado sobre as almofadas furadas e que eu nunca tinha lavado. Tentei forçar minhas memórias sobre tombos e machucados de bicicleta, quando minha mãe cuidava dos meus joelhos e cotovelos rasgados.

Peguei tudo que me veio à mente: algodão, curativos, curativos… É, minha memória estava um lixo, Yuki. Eu apareci com uma montanha de curativos e algodões — não sei porque tinha algodão na minha casa, mas essa parte eu vou ignorar —, pensando com o que limpar os seus cortes. O jeito foi usar água morna com sabão mesmo, amigão, sinto muito por aquilo. Ou era isso ou alguma garrafa de vodca que iria acabar vazia com dois bêbados na sala e um deles ainda estaria todo esfarrapado, sem curativo algum.

Você fazia caretas de dor a cada corte que eu tentava limpar, puxando o ar profundamente, tentando suprimir outro gemido ou grito. Até ali, seus olhos mal se abriam, por um momento me questionei se você era cego. Seus braços me mostraram antes mesmo de eu lhe conhecer um dos seus problemas — o problema que terminou com tudo no fim das contas; os dois braços pareciam um desenho de criança tentando fazer um gramado; uma verdadeira manga de camisa listrada, mas o tecido era a sua própria pele. Foi ali que eu comecei a perceber que na minha frente chorava uma mente conturbada e suicida.

Mas foi quando eu cheguei nos cortes do seu rosto que eu finalmente conheci as íris castanhas de Yuki. As linhas dos socos demarcando os seus ossos do maxilar já estavam secas, mas certamente arderam bastante quando eu passei o primeiro algodão sobre elas, fazendo você abrir os olhos quando eu lhe toquei o rosto a primeira vez. O olhar mais perdido, caótico e ininteligível que eu tinha encontrado em toda a minha vida

Algum tempo depois eu descobriria o porquê, mas naquele momento sua concentração me assustou. Eu continuei limpando os ferimentos no seu rosto, inclusive o que estava no alto da sua testa, e você não despregou os olhos de mim um só segundo. Seguiu meus movimentos com toda a atenção do mundo, como um filho observando a mãe. E, de fato, você era uma criança; um menino observando alguém que lhe parecia um adulto em posição de mãe.

— Obrigado. — foi tudo que você conseguiu sussurrar, baixinho como um garoto assustado falando no ouvido, escondido do monstro, sob as cobertas.

Aquilo me assustou. O único som ali eram os meus movimentos, o som da água morna quando eu mergulhava o algodão, os rangidos do sofá quando eu me apoiava no estofado para limpar outro corte, as solas do meu tênis contra o chão de madeira. De repente sua voz cortou o ar frio do apartamento. Minha reação fez você ficar encolhido daquele jeito por receio? Eu parecia bravo por você falar?

Espero que não, Yuki. Porque eu só fiquei surpreso mesmo. Minha única reação foi parar o que eu estava fazendo e olhar para você. Eu demorei um pouco para voltar a raciocinar, mas lhe acenei em resposta, tentando mostrar que tudo bem.

Aquele foi um longo dia.

— Já está amanhecendo. — me levantei carregando o máximo de coisas que pude com as duas mãos e os dois braços — Está com fome?

A sua reação para essa pergunta sempre foi a mesma. Você levantou os olhos para mim, me olhando como se tentasse achar a veracidade na minha pergunta; buscando saber se eu de fato perguntava se você tinha fome ou se só estava tentando ser gentil. Depois de encontrar sua resposta sobre isso, você esticou-se num sorriso tímido, mas que já mostrava as covinhas, e terminava tudo acenando com a cabeça, desviando os olhos com vergonha.

— Tem um mercado aqui perto, vamos lá comprar algo para você comer.

Nós saímos de casa e fomos caminhando até o mercado que havia na mesma rua. Seu olho roxo ficava escondido sobre a franja de fios negros e lisos, principalmente quando você andava com a cabeça abaixada, olhando os seus pés levantarem e abaixarem, dando passos sobre a calçada.

As mãos escondidas nos bolsos da calça me diziam que você ainda estava recuado em seu mundo, afastado mentalmente do estranho que levava você ao mercado para que pudesse comer. Engano meu. Você só estava em busca de palavras — e tentando passar pelos muros da vergonha.

— Qual… — você parou quando eu olhei para você, que andava alguns passos atrás de mim, levantou os olhos entre os fios de cabelo e então levantou a cabeça olhando para mim diretamente — Qual o seu nome?

— Abel. — tentei dar um sorriso simpático para não piorar a sua sensação desconfortável — E você é?

— Yuki. — tirou uma das mãos do bolso e passou pelos cabelos que não lavava tinha dias — Obrigado pela ajuda, eu…

— Não precisa explicar se não quiser. — coloquei a mão direita sobre o seu ombro — Tudo bem.

O silêncio se instalou entre nós, apenas cortado pelos sons dos nossos passos.

Yuki tornou-se a criança mais feliz do mundo ao entrar no mercado. Você queria simplesmente todos os doces que encontrava pela frente, toda vez pensando se trocava o que tinha em mãos pelo que acabara de ver.

Você saiu de lá encantado com a sua caixa de cereais em forma de estrela. Pegamos leite e algumas outras coisas para que eu pudesse fazer comida depois. Não sabia o que exatamente poderia acontecer dali em diante, então achei melhor comprar ingredientes para um almoço duplo.

E foi carregando sacolas e lendo a embalagem do cereal que você decidiu tirar algo de dentro do peito.

— Era a terceira briga no mesmo dia. — você disse enquanto parávamos para atravessar uma rua e foi interrompido por um ônibus que passou em frente a nós dois — Eu fui expulso de onde morava e fiquei vagando pelas ruas… Faz cinco dias.

Tudo que consegui fazer foi continuar olhando para a frente enquanto caminhava com tantas sacolas em mãos. Como alguém é expulso de casa e vive cinco dias andando na rua, aparentemente sem um centavo? Que tipo de família expulsa de casa um garoto que nem terminou o colégio?

É, Yuki. Eu não sabia ainda.

Nós subimos as escadas, dessa vez sem você estar pendurado nos meus ombros, e entramos no apartamento. Eu coloquei as sacolas sobre a pia da cozinha e fui até a sala onde você tinha simplesmente empacado. Os seus olhos estavam vidrados num enorme pôster que havia colado na parede, o qual mostrava o mapa das constelações vistas daqui da Terra.

— Que tal se você tomar um banho enquanto eu preparo algo para comermos? — disse enquanto apoiava um dos ombros no batente da porta da cozinha, vendo você admirado com os potinhos e riscos naquele papel gigante.

Depois de alguns segundos, ainda vidrado, você saiu do transe e concordou com a minha sugestão.

— Venha, vou pegar uma toalha e algumas roupas para você. — ouvi seus passos seguirem-me pelo corredor — A porta no final do corredor é o banheiro. Cuidado para não escorregar na banheira depois de usar o sabonete, ela parece de gelo às vezes. — apontei a porta entreaberta no final do apartamento enquanto entrava no meu quarto.

Você parou ali, no meio do corredor, olhando para a porta branca e o pouco de azulejo rosa que se podia ver lá dentro.

— Aqui. — eu voltei, colocando uma montanha que incluía uma toalha, uma camiseta, uma calça e uma escova de dentes sobre as suas mãos — Comprei a escova agora no mercado, não se preocupe. — pisquei com o olho direito e voltei para a cozinha, enquanto você pareceu não se mover.

Imagino, pelos sons que não ouvi, que você continuou ali parado por alguns minutos, pensando algo que eu nunca vou saber. Tenho medo de que naquele momento você tenha começado a planejar como tudo acabaria um dia.

Ouvi o chuveiro abrir e parei de prestar atenção no que você poderia estar fazendo, focando na comida que eu precisava fazer, pois eu mesmo estava ouvindo o estômago aqui dentro clamar por algo.

O som da água caindo cessou e alguns minutos depois você estava de volta à cozinha. Ainda tinha hematomas evidentes, mas me fez arregalar os olhos. Os cabelos molhados tinham sido bagunçados pela toalha, provavelmente quando você tentou secá-los. Parecia que o Yuki do mercado tinha indo pelo ralo e havia uma outra pessoa na minha frente.

Uma pessoa bem mais bonita; além de bem cheirosa, com certeza.

Porque Yuki tinha cheiro de saudades. E eu ainda posso sentir. Tanto o cheiro como as saudades.

— Quer ajuda? — você se projetou para cima das panelas no fogão, fechando os olhos e puxando o ar para sentir o perfume da comida — Isso parece ótimo… Qual a sua idade? — jogou o olhar para mim, esperando uma resposta.

— Sou de 93. — disse sem me virar, mantendo os olhos sobre os legumes que fatiava a fim de não fatiar meus dedos junto.

— Irmãozão! — e naquele momento eu derreti. Quando virei a cabeça na sua direção, dando atenção ao seu tom de voz alegre, eu o vi pela primeira vez.

O sorriso largo e vivo brilhou ao meu lado dentro daquela cozinha. Eu fui feliz por poder vê-lo mais vezes depois. Obrigado.

— Posso chamá-lo de Abby? — disse enquanto puxava uma das cadeiras da cozinha para se sentar, observando eu acenar em concordância.

Não prestei mais muita atenção no que você fazia, mas era possível ver sua concentração observando o que havia no cômodo. Hoje temo que sua mente estivesse apenas buscando a gaveta que poderia solucionar seus problemas. Ou talvez apenas se questionando sobre a fila de suculentas que havia na janela. Sinceramente, prefiro acreditar na segunda opção.

Com a comida pronta, você me observou colocar as coisas na mesa. Quando estávamos prontos para comer, seus olhos voltaram àquele olhar de criança de mais cedo.

— Posso comer o cereal primeiro? — você podia tentar disfarçar, mas eu vi aquele bico pidão no seu rosto.

— Ah… Pode, claro. — eu não sabia bem o que responder, aquilo pareceu estranho.

Mesmo que a casa fosse minha e nós ainda fôssemos estranhos, quem pegou o cereal foi você, ele era seu. Aquilo foi esquisito para mim. Eu ainda não sabia de coisa alguma.

Você foi até o armário e pegou a caixa colorida, depois buscou o leite na geladeira e colocou tudo numa tigela, seguindo o que eu dizia sobre onde cada item estava. Voltou para a mesa com a tigela cheia de estrelinhas boiando no leite.

Deveria ter um buraco sem fundo no seu estômago, porque você devorou aquela tigela, uma segunda tão cheia quanto, e ainda comeu o que eu havia preparado. Saímos da cozinha e eu fui até o meu quarto para colocar roupas mais confortáveis. Não demorou muito eu voltei para a sala, mas dei de cara com algo totalmente diferente do esperado.

Foi sem avisar, sem nenhum sinal ou alerta, que a criança aí dentro decidiu se jogar no chão também dentro de você e chorar. Yuki literalmente vazava pelos olhos, soluçando dolorido quando o pulmão forçava a inspiração.

— Eu não me lembro de como ela era, eu… — soluço — Eu só lembro de esperar no parque até a madrugada, quando apareceram alguns guardas e me levaram de lá. — parou para respirar — Dias depois eu estava naquela casa sem graça, vivendo com outras crianças. — mais um soluço — Eles me expulsaram de lá tem cinco dias, porque eu passei da idade.

O que antes eram soluços e choro, virou um desespero sem fim quando você abraçou os joelhos, encolhido sobre o sofá. Eu só entendi de quem você falava quando percebi que você fitava a foto sobre a estante da sala, onde eu aparecia ao lado da minha mãe.

— Eu não lembro do rosto dela, Abel. Eu sou um péssimo filho. — você enterrou o rosto entre os joelhos — Ela me abandonou porque eu sou um péssimo filho. — um soluço mais profundo — Eu não conheço minha mãe.

Eu ainda estava prostrado na porta da sala, vendo tudo aquilo acontecer sem ter uma reação. Eu só conseguia olhar para a foto e pensar o que eu faria ou seria se eu não conhecesse minha própria mãe.

— O que as mães fazem?

Você me tirou do transe quando perguntou isso. Fui até o sofá e sentei ao seu lado. Eu olhava para o chão tentando achar uma resposta.

— Eu nunca soube o que as mamães fazem. Eu via as crianças na escola darem presentes no dia das mães, chegarem com lancheiras cheias e arrumadas. Elas vinham cheirosas e com marquinhas de beijo na bochecha. Contavam sobre o que suas mamães faziam de comida, ou como elas contavam histórias legais antes de dormir. Algumas mamães tinham voz doce e cantavam para as crianças dormirem. — seus olhos castanhos e cintilantes pelas lágrimas me engoliram de repente, focados em mim — O que a sua mamãe faz?

O mundo começou a cair quando eu entendi que você não tinha sido expulso de casa, mas de um orfanato.

Aquele foi um longo dia, Yuki. Eu passei o resto dele tentando absorver tudo que ouvi de você. Passamos horas e horas no sofá. Eu sentado e você deitado com a cabeça sobre a almofada no meu colo, contando todos os seus anos de vida entre sorrisos e soluços.

Você me explicou desde o orfanato e o seu desconhecimento sobre qualquer tipo de afeto, até o seu asco pela escola da qual você fugiu e o consequente vício em drogas, automutilação, depressão e tentativas de suicídio — que vieram antes ou talvez depois da sua dependência, nem mesmo você sabia.

É óbvio que aquilo tudo me assustou e que fiquei com medo de ter uma pessoa assim dentro da minha casa. Mas eu não tinha frieza suficiente para lhe mandar porta a fora depois de tudo que ouvi e vi na minha sala.

Fiz seus curativos mais uma vez e arrumei o sofá para que você pudesse dormir. Literalmente, você dormia como uma criança. Retirei-me para o meu quarto e adormeci rápido também. Ao menos ainda não teria aulas no dia seguinte.

Foi no meio daquela madrugada que você e eu fizemos nossa primeira visita ao hospital juntos. Eu acordei com o barulho de coisas caindo e espalhando pelo chão como bolinhas de gude; simultaneamente um forte som de impacto contra o chão, como se algo muito pesado caísse do teto.

Quando abri os olhos na direção do som, vi a luz no corredor passar pela fresta sob a porta do quarto. Num impulso de adrenalina pulei por cima da cama e abri a porta. Haviam comprimidos de algum remédio velho, que eu não tomava havia décadas, espalhados pelo chão, e eles aumentavam de quantidade conforme eu seguia com o olhar até o banheiro, de onde a luz vinha.

E lá estavam as suas pernas esticadas sobre o piso frio. Você tinha tentado mais uma vez. Engoliu o máximo de comprimidos que pôde e caiu duro no chão do banheiro, deixando que o restante dos remédios se espalhassem pelo corredor.

Naquela primeira vez eu não chorei, Yuki.

Apenas arrastei você como pude até o carro. Descobri que não deveria ter deixado você comer tudo aquilo de manhã, nem mais ainda no almoço, e muito menos antes de ir dormir.

— Pela orelha de Vincent Van Gogh! Você está pesando o dobro de ontem ou eu estou sóbrio demais?

Levei-o até o hospital — e, felizmente, lá alguns enfermeiros carregaram você. Perdi a noção do tempo naquelas cadeiras de espera. Eu dormi, acordei, andei em ziguezague pelos corredores, enquanto você estava enfiado em alguma sala onde eu não pude entrar por longas três horas.

Você estava completamente entubado quando me permitiram entrar no quarto. Eu não sabia bem o que fazer. Você ainda era um desconhecido para mim de certa forma.

Mas naquele momento era eu o único conhecido que você tinha. E que decidiu ficar ali.

Nunca contei para você, Yuki, mas além de curar ressacas, você também me fazia agir de formas que eu nunca agiria normalmente — e talvez isso fosse bom… Muito bom. Eu não tinha derramado uma lágrima sequer, mas empurrei a poltrona até mais perto e sentei ao seu lado.

Antes que eu pudesse perceber estava segurando a sua mão, como se aquilo pudesse lhe dizer que o cara estranho que cozinhou para você estava ali do seu lado. Mesmo que tudo indicasse que você ainda permanecia inconsciente, você apertou minha mão, como que respondendo alguma coisa que eu estava pensando — e tornando tudo ainda mais bizarro.

Pouco antes de outro dia amanhecer eu passei em casa para buscar algumas coisas. Eu pretendia pegar apenas um casaco, o carregador do celular e algum livro para ler. Enquanto pegava as chaves do carro, prestes a sair, eu avistei meu caderno de desenhos, a borracha e a lapiseira.

Havia todo tipo de desenho naquele caderno. Desde de plantas, paisagens e animais, até coisas mais eróticas e abstratas. Escorregando a mão por cima da mesa, peguei o caderno e o estojo completo com os lápis de cor também. Dali parti de volta para o hospital.

Enquanto você esteve apagado, você foi todos os Yukis que pude imaginar. Astronauta, cowboy, super-herói, pirata, piloto de avião, detetive. E por último, você foi apenas Yuki. O desenho que se resumia a um rosto triste, de olhos inchados, com roxos e cortes. Mas aquilo não me agradou.

Eu não o via mais como apenas um rosto triste e cheio de hematomas. Você tinha um lado alegre lá dentro. Um lado vivo e esperançoso que pude sentir quando me perguntava coisas sobre o mundo e a vida que você não conheceu por ter se trancado num quarto de orfanato.

Hoje percebo que guardei você aqui dentro durante seu silêncio involuntário num hospital. Não foi enquanto você sorria ou chorava com a cara na almofada no sofá, mas enquanto eu lembrava disso, olhando você num sono sem hora para acordar, totalmente mergulhado em apitos de aparelhos hospitalares.

Foi transformando você em todas as suas versões a cada página que eu virava no caderno de desenho, que eu aprendi a apreciar a versão viva e real na minha frente. Abel é um cara estranho, você sabe. Ele cria afeto nas horas mais inconvenientes — por exemplo, quando você está a um pulo de entrar em coma.

Quando eu penso parece que isso durou meses, mas na verdade você acordou cerca de quarenta horas depois de ser internado. E eu conheci o sorriso mais contagiante desse mundo quando você acordou.

— Abby! — crianças não nasceram para ficarem presas a camas de hospital, elas são muito agitadas, assim como você era, quase arrastando todos os tubos e acessos que tinha no corpo.

— Olá, Yuki. — me aproximei — Cuidado, vai acabar puxando alguma coisa, você tem que ficar deitado. — disse empurrando seu peito para baixo, fazendo-o deitar.

— O que aconteceu? Eu não me lembro de nada… — os olhos castanhos novamente tomavam conta de mim.

— Você engoliu metade de um pote de remédios e desmaiou no banheiro. — disse voltando a me sentar na poltrona — Você tentou…?

Sem resposta. Pelo menos não verbal. Seus olhos ficaram tristes, a cabeça abaixou e sua visão mirava os seus pés na ponta da cama. Aquilo era uma resposta.

— Não ficou feliz por comer bem e poder conversar? — inspirei fundo e desviei o olhar para o chão — Porque tentou outra vez?

— Não quero ser um peso na vida de alguém. — seu tom de voz diferente mostrava claramente que quem falava agora era o Yuki crescido, que vivia arranjando brigas por aí na rua — Não quero que me ajudem por pena, nem atrapalhar a vida dos outros.

— Você não é nada disso, estou aqui porque quero. E não tenho pena. Simplesmente estou preocupado. — levantei segurando o caderno de desenhos ao lado do corpo — Mas, se você quiser, eu vou embora. — coloquei o mesmo sobre o armário ao lado da cama e saí do quarto.

Quando voltei você estava chorando abraçado no caderno. Não faço ideia do que lhe fez chorar, mas pela sua reação ao me ver foi algo bom.

— Desculpe. — disse enxugando as lágrimas que ameaçavam cair.

— Tudo bem, apenas… Prometa que não vai mais tentar aquilo. — eu lhe estiquei o braço direito, mostrando o mindinho.

Você acenou com a cabeça e apertou o meu mindinho com o seu, oficializando sua promessa.

Eu deveria ter detalhado melhor, certo? Não tentar mais aquilo era simplesmente não tentar se entupir de comprimidos a fim de morrer. Você tinha mil e um outros jeitos de tentar chegar ao seu objetivo.

Não posso culpá-lo por quebrar a nossa promessa. A culpa foi minha por não perceber que não havia salvação alguma nela; por acreditar tanto num apertão de dedinhos; por acreditar tanto que eu seria o suficiente para manter você aqui.

Você me dizia que eu acreditava em coisas demais… E uma delas era você.

Minhas aulas durante a semana fizeram com que eu visitasse-o apenas durante a noite, para por fim você me implorar para dormir no hospital e não deixá-lo sozinho. Felizmente, em uma semana você foi liberado e estava livre das roupas de que deixavam sua bunda aparecendo.

— Yuki, preciso falar com você. — disse enquanto descíamos os andares de elevador.

— Diga, Abby. — você parecia despreocupado, um pouco distraído, como uma criança. Não havia medo em sua mente agora, pensando sobre como iria viver, como iria comer ou onde iria morar. Crianças não se preocupam com isso.

— Para onde você pretende ir?

— Ahn? — você acordou de repente de seu estado inerte — Como assim?

— Você precisa comer, dormir, sobreviver. O que pretende fazer? Para onde você vai agora? — por mais que eu quisesse guardar você dentro de uma caixa e protegê-lo de toda a dor que sentiu e sentia, eu não podia simplesmente fazer o que eu desejava. Você era um homem livre como qualquer outro.

Livre e perdido. A porta do elevador se abriu e você saiu em disparada, correndo em desespero. Certamente eu tinha dado um gatilho infeliz à sua memória, que fez com que você voltasse ao seu estado de pânico, sem rumo, rodopiando em seus pensamentos confusos e conturbados.

Você saiu do hospital para a rua. E eu não tive outra opção senão correr atrás. Ignorando todos os semáforos, você acelerou pela avenida, esbarrando e pulando todo mundo no seu caminho. Eu podia estar metros atrás, mas conseguia sentir que as lágrimas já escorriam desenfreadas pelo seu rosto.

Mais um semáforo e eu quase perdi você, Yuki. Eu quase perdi você pela segunda vez.

Eu nem mesmo sabia que podia pular daquele jeito, mas eu saltei e lhe joguei na outra calçada, tirando você do meio da rua. As pessoas nos observavam assustadas, e eu lhe observava ofegante, apavorado com tudo que tinha acabado de acontecer. Aquilo deve ter doído bastante por conta dos roxos que você já tinha. Desculpe.

Na hora seguinte você ainda tremia, em choque com as cenas que lhe passavam pela cabeça — e imagino eu, eram misturas de ver os carros vindo velozes na sua direção mais cedo, com os dias no orfanato e na escola, e as dores todas que você já sentiu pela solidão.

Levei você até uma cafeteria que eu costumava ir, quentinha e aconchegante, tentando fazer você se sentir confortável. Quando voltei carregando o seu chocolate quente e o meu, sentei ao seu lado e, com muito esforço contra o meu lado um pouco seco e distante, abracei você, tentando parar suas tremedeiras e soluços. Você continuou inquieto por algum tempo, mas se acalmou lentamente enquanto eu o mantinha entre os braços.

Você precisava de um lugar para morar; você já tinha passado da idade de sair daquele orfanato e vivia perambulando por aí, perdido num remoinho que começou lá atrás, num garoto sem mãe, esquecido em algum canto do parque de diversões.

— Vamos para casa, tudo bem? — passei uma das mãos pelos seus cabelos enquanto você ainda mantinha o rosto escondido na minha jaqueta.

Quando você acalmou-se o suficiente para tomar o seu chocolate, tentei conversar com você sobre ficar em casa e morar lá pelo menos por algum tempo, procurar um emprego ou tentar terminar o colégio. Eu não sei até que ponto você ouviu, até onde você concordou, mas voltamos juntos para o apartamento naquele dia depois de esvaziarmos nossas canecas.

Aquela semana que se seguiu foi corrida. Eu precisava produzir uma pintura para o concurso da faculdade daquele ano — e meu lado competitivo queria no mínimo ficar no terceiro lugar, porque era meu último ano na graduação de artes e eu tinha de sair daquela universidade de peito estufado, se não eu não me chamaria Abel. O colecionador de prêmios do curso de Artes Visuais precisava fechar tudo com chave de ouro, participando do concurso com uma pintura inigualável.

Você me fez dezenas de perguntas sobre cada item e ferramenta que tinha no estojo e na caixa de pintura. Observava o cavalete e a tela em branco com os olhos arregalados, repetindo como era legal e que eu desenhava muito bem. Pena que pintura nunca foi o meu forte.

Enquanto eu debatia comigo mesmo o quanto o maldito pincel me odiava e sobre o que diabos eu ia pintar, você me perguntou se você podia desenhar no caderno. Ainda imerso nos pensamentos sobre a tela eu apenas acenei, lhe apontando onde o caderno estava.

Yuki pegou caderno, lapiseira e borracha; foi até um pedaço da sala onde batia sol, quase exatamente atrás do cavalete. Deitou-se de bruços no tapete, abriu o caderno e começou a desenhar. Era uma criança perdida no mundo da imaginação, rabiscando algo que eu ainda não conseguia entender.

Obrigado, garotão. Você foi a inspiração daquela pintura — mesmo eu só tendo terminado ela depois de você ter terminado de respirar.

Cada novo dia com você em casa parecia mais calmo, mesmo com as suas recaídas e choros. As coisas pareciam estar dando certo para você. Ainda não estava pronto para voltar ao colégio, mas saiu algumas tardes em busca de algum lugar para trabalhar.

Porém as suas reviravoltas tinham sempre o mesmo passo a passo. Você melhorava, mostrava-se mais disposto, mais calmo, se distanciando de todo o sofrimento que guardava no peito, para então desabar tudo de uma só vez. Você espera o jardim ficar florido para então colocar fogo nele.

Às vezes me pergunto se isso não foi arquitetado pelo seu lado rebelde que gostava de contrariar tudo que eu dizia. O Yuki que sempre discordava, como diziam suas estrelas aquarianas.

Você me deu um bom dia animado. Comeu e me deu um abraço, dizendo que iria passar a manhã procurando emprego, passando em alguns comércios que você já tinha visto. Fiquei feliz pelo seu ânimo, pela sua expectativa. Um segundo abraço e você se despediu, saindo pela porta. Foi bom ver você daquela forma, melhorando cada vez mais.

Foi bom até eu voltar para casa naquela noite. Pois eu era o único que havia voltado, Yuki. O único.

Eu não dormi. Eu passei a madrugada em claro, sentado no sofá, olhando na direção da entrada, com os ouvidos atentos. Esperei você chegar, mas nenhum sinal de que você estava prestes a abrir a porta.

O sol e os passarinhos acordaram, e eu me resumia a bocejos, olheiras e sono. Nada de Yuki, nada de “Oi” ou “Voltei!”. Nada de nada.

Nada de absolutamente nada por sete dias. Sete longos dias.

Eu fui até alguns hospitais tentar encontrar você; talvez tivesse acontecido algo. Passei por alguns dos lugares onde sabia que você tinha buscado por emprego. Eu até mesmo passei horas e horas sentado naquela mesma calçada de quando lhe conheci.

Eu voltei para casa arrasado. Arrastei meus pés até o prédio totalmente contra a minha vontade, que no fundo era de me jogar no chão e ali ficar. Entrei em casa, tirei os sapatos e me atirei no sofá.

Fui acordar não sei quantas horas depois, com o som do interfone tocando. Andei até a janela, pois era extremamente estranho um interfone tocar às quatro e tantas da madrugada. Tudo que vi de lá de cima foram dois homens andando, afastando-se do edifício, e alguém sentado na escada da entrada. Sentado? Mais para largado.

Eu desci correndo pelas escadas até a entrada, abri a porta e deparei com o velho Yuki desacordado e cheio de hematomas. Porém, dessa vez, ele parecia mais magro, pálido e triste. Quando tentei levantá-lo vi algo escrito no seu braço. Era o endereço de casa escrito em letras tremidas e apressadas.

Coloquei você na minha cama e cobri com uma ou duas cobertas. Você tremia como se fosse um milho de pipoca na panela esperando para estourar. Depois descobri que aquilo não era frio, era efeito de todos os entorpecentes que corriam nas sua artérias e veias.

Sentei no chão do quarto, encostado nas portas do armário, observando você dormir, por vezes se mexendo como se tivesse tendo os piores pesadelos possíveis. Angustiado por vê-lo assim, eu não me aguentei. Eu não chorava desde o enterro do meu pai, mas aquilo era horrível de ver, Yuki.

Você parecia não comer desde a nossa última refeição juntos; pálido como um defunto, os braços marcados, a pele arroxeada novamente. Aquilo me fazia sentir uma dor inexplicável lá dentro, querendo unicamente que você despertasse, comesse, tomasse banho. Eu sentia uma adrenalina intensa me gritando para ir até a cama passar as mãos pelos cabelos negros e abraçá-lo outra vez, depois de tantos dias de desespero.

Mas tudo que consegui fazer com a maldita adrenalina que percorria a corrente sanguínea, foi levantar e ir até a sala. Lá eu sentei no sofá, escondendo o rosto entre as mãos, bufando e suando, sentindo o corpo ferver de dentro para fora. Os cotovelos sobre os joelhos, eu abri as mãos e meus olhos miraram diretamente nela. A foto que fez você desabar em choro naquele dia, agora parecia apenas piorar tudo.

Um ataque de fúria.

Eu levantei do sofá num salto, enraivecido sem saber nem mesmo porquê. Chutei o banco que usava para pintar, que estava no canto do cômodo que eu separava para meus trabalhos da universidade. Eu mirei a pintura doce e suave que estava apoiada no cavalete. Minha concorrente para o concurso daquele ano era harmoniosa e passava calma. A calma que eu não tinha, que eu desconhecia totalmente naquele momento.

O ódio vindo de algum lugar lá no fundo, irradiou pelos poros da minha pele, fazendo-me pegar a tesoura e rasgar o quadro por completo, fatiando a imagem infantil de um Yuki feliz, desenhado à luz do sol.

Infelizmente, o Yuki deitado na cama do quarto estava longe de ser o da tela. E aquilo me apertava o coração de uma forma que eu não sabia explicar. Eu sofri tudo o que a mãe que você não teve não sofreu em todos aqueles anos, chorei pelos filhos que não terei, paguei por completo meus pecados cometidos até ali, todas as lágrimas que fiz meus pais derramarem por minha causa nos anos rebeldes do colégio.

Era sufocante, Yuki. Era sufocante, era amargo como café, como chá preto sem açúcar. E eis aí o ingrediente secreto.

Hoje lembro-me daquele amanhecer e me repito a frase de meu pai em um de seus momentos mais poéticos e filosóficos. Ele uma vez me disse que nada é mais inspirador para o homem, se não a dor emocional. E foi entre lágrimas e desejos por gritar a raiva que me corroía que eu pintei uma segunda tela.

Quem visse o início da pintura diria que eu faria uma linda paisagem invernal, com flocos de neve caindo do topo da tela. Ilusão.

Tão ilusório que me senti bloqueado a continuar. Minha ideia de fazer os flocos de neve navegarem na corrente sanguínea de alguma artéria, parecia muito surreal para uma tela. Eu não tinha ideia de como começar, então larguei mão do pincel e fui até a cozinha. Tomei um pouco de água, tentando acalmar finalmente os meus nervos que ainda tentavam me enfurecer.

Quando acordou, você estava confuso, mas entendia que tinha chego em casa por ter rabiscado o endereço no próprio braço, já sabendo que acabaria apagado, semi morto, em algum canto, enquanto todos os “flocos de neve” dominavam seu sistema nervoso.

Enquanto tentava comer — interrompido por uma tosse, que parecia lhe queimar os pulmões —, você me contou sobre suas roupas completamente úmidas por ter passado dois dias debaixo da chuva, sobre as crises de pânico quando percebia que tinha voltado aos buracos de onde acreditou ter saído — que incluíam gritos agonizantes, se debatendo no chão sujo de algum lugar abandonado, rodeado de outros viciados em estado igual ou pior, lágrimas que pareciam não ter fim, seguidas de cortes por todo o corpo feitos com as unhas, que você não cortava tinha algum tempo.

Depois de comer, enchi a banheira e fiz você tomar um banho quente. Vestido com roupas limpas, você se sentou numa cadeira em frente à pia do banheiro. Tentei meu melhor ao cortar seu cabelo, procurando tirá-lo de cima dos seus olhos. Limpei seu rosto do início de barba que começava a aparecer.

Lembro-me de estar saindo do banheiro, depois de terminar tudo, para buscar a vassoura e limpar o chão forrado de fios de cabelo, quando você segurou minha camiseta ainda sentado, e me abraçou na cintura, mergulhando o rosto no tecido branco com estampa e começando outro choro dolorido e soluçante, pedindo desculpas. Eu nada disse, apenas coloquei as mãos sobre os seus cabelos que ainda não estavam completamente secos e esperei que você aliviasse o que lhe doía o peito.

Fiz mais alguns curativos nos seus braços e, depois de comer, sentei no sofá para ler um livro. Você logo apareceu na sala, deitando-se como naquele primeiro dia, com a cabeça sobre uma almofada no meu colo. E lá você adormeceu, calmo, sereno, em paz

Procuramos os tratamentos de desintoxicação e reabilitação naquela semana. Você estava com medo dos médicos e do que poderiam fazer com você, mexendo as pernas sem parar enquanto aguardávamos sermos chamados para a sua consulta. Sem pudor ou vergonha, eu lhe dei a mão como no hospital naquela madrugada, a fim de lhe mostrar mais uma vez que havia alguém ali do seu lado e que tudo ficaria bem.

Durante a consulta eu me mantive calado, tentando fazer com que você contasse tudo para o médico e o psicólogo que lhe analisavam na sala, do seu próprio jeito e ponto de vista. Ouvi coisas que me assustaram, que eu sequer imaginava que poderiam ter lhe acontecido antes de eu encontrá-lo jogado na calçada. Seu grande medo de ser internado se tornou realidade, mas prometi visitá-lo o máximo de vezes possível, de acordo com o que o tratamento lhe permitisse.

Deram-me notícias de algumas vezes em que você surtou, teve recaídas fortes da depressão, por conta dos seus traumas com abandono e solidão. Tentei aparecer mais vezes e passar mais tempo com você durante os horários de visita, a fim de acalmá-lo quanto a isso, reforçando que eu estava ali para ajudá-lo como você me pediu. Cheguei a ler livros para você dormir, como você disse que as mamães fazem. Dei de presente um caderno novo, totalmente seu para desenhar e colorir como quisesse. Seu sorriso foi um ótimo remédio para a minha preocupação naquele momento, mesmo que suas tentativas de automutilação por vezes retornassem.

Recebi um e-mail do coordenador do concurso de que eu tinha apenas duas semanas para enviar a obra pronta para concorrer naquele ano. Eu estava ansioso e ao mesmo tempo feliz, apesar de ainda não saber bem como terminar a pintura. Não havia feito mais nada depois daquela manhã onde pintei flocos de neve no topo da tela. Eu tinha de terminar.

Eu estava voltando da faculdade, cansado depois de organizar todo o ateliê. Tudo que eu queria era chegar em casa, tomar um banho, trocar de roupa e ir lá ver como você estava. Porém não precisei ir muito longe para vê-lo, Yuki.

Tudo acabou tão rápido; foi como se eu piscasse e você não estivesse mais aqui. Tudo que eu vi foi a porta do apartamento aberta, ao chegar no terceiro andar do prédio; avistei a penúltima porta do corredor, fazendo com que uma energia estranha tomasse meu corpo, questionando se eles tinham liberado você para passar o final de semana em casa. Mas tudo começou a ficar estranhamente frio e suspeito, quando reparei que as chaves ainda estavam na fechadura para o lado de fora.

Minha pressão pareceu despencar da Torre de Tóquio naquele segundo.

Entrei apressado no apartamento, mas queria ser silencioso, com medo do que poderia de fato estar acontecendo ali. Eu abri a porta, ignorando totalmente a ideia de fechá-la ou de tirar as suas chaves do lugar onde estavam. Dei passos cuidadosos pelo piso de madeira da sala, passando pela porta da cozinha e parando na entrada do corredor.

Se a minha pressão já tinha caído, Yuki, naquele momento ela simplesmente entrou mais fundo na terra. Meu coração parou, mesmo que eu pudesse ouvir o som e sentir a horrível sensação da veia pulsante na minha garganta.

Meu olhar foi tomado pelo espelho do banheiro, exatamente no final do corredor, passando pela porta e pelo piso azulejado. O espelho que não apenas refletia minha expressão pálida de quem sentia o coração falhando e os sentidos fraquejarem, mas que tinha coisas escritas a tinta, com um pincel sujo com marcas de dedo na mesma cor que as letras do espelho esquecido em cima da pia.

Obrigado por ter sido meu lar

— Yuki, você não… — eu simplesmente não queria acreditar naquela possibilidade, mas ela era tristemente a verdade. Eu não me lembro do caminho entre sala e banheiro, foi rápido demais, pavoroso demais, confuso demais.

Eu lhe chamei, mas você já não estava naquele corpo. Não havia mais como mexer os lábios, nem vibrar cordas vocais. O coração já não tinha vida. Não tinha mais nenhum Yuki ali dentro para sorrir para mim.

O mundo parou naquele instante. As luzes do teatro, onde nós poderíamos ser Romeu e Julieta, se apagaram de uma só vez. Eu me dividi entre ler o que você escreveu no espelho e me jogar na banheira e tentar abraçar o seu corpo gelado. Enterrei meu rosto entre os seus cabelos, clamando seu nome sem saber o que mais eu poderia pedir ou dizer. Minha mente apenas repetia e repetia seu nome infinitas vezes, implorando que aquilo não fosse real.

A vida se parece mais com um filme quando nos vemos fazer o que antes só aparecia na tela da televisão. Eu era agora aquele cara triste, desesperado, agarrado num corpo morto, sem vida, repetindo “não” como se minhas negativas com voz de choro fossem mudar o que aconteceu.

— Não, não, não… — abracei mais forte, mergulhando mais as mãos na água vermelha, sentindo os ossos das suas costelas sob a pele — Não, Yuki, não…

Não. Apenas não, Yuki. Apenas não. Infelizmente, sim.

Meu rosto estava completamente úmido e vermelho, meus olhos já ardiam de tanto chorar, mas eu não soltei você; soltá-lo era como deixá-lo ir, e eu não queria. Eu ainda precisava de você aqui, desenhando na fresta de sol, sorrindo e balançando os pés; devorando caixas de cereal e sumindo com galões de leite em minutos. Chorando no sofá e sorrindo largo quando eu afagava seus cabelos.

Quando voltei a olhar ao redor pude ver que a água avermelhada era derramada da banheira conforme eu soluçava e escorregava mais para dentro dela, agarrado a você, beijando-lhe os cabelos entre os meus soluços que contraiam os pulmões. Talvez tivesse algumas lágrimas misturadas na água, mas elas já tinham perdido calor; e o vermelho da água não era xampu, era o oxigênio deixando os pulmões e a hemoglobina deixando as artérias completamente vazias.

Seus braços dentro e fora da banheira já não tinha mais o que derramar. Os cortes profundos na pele tinham vazado toda a vida que você tinha, tornando a porcelana branca num vermelho sangue, cruel, frio e enferrujado. O calor da hemoglobina já tinha deixado seu corpo, e a própria jazia fria no piso e na água escarlate da banheira.

Eu escolhi ajudar um viciado que eu encontrei na rua cheio de hematomas e com um olho roxo. Você escolheu morrer em casa porque era o único canto sujo desse mundo que você chamava de lar.

Não sei quanto tempo eu passei ali, abraçado na coisa mais inanimada que já encontrei. Não sei o quanto chorei, quantos soluços dei e quanto tempo eu passei sentado no chão daquele banheiro nos dias que se seguiram. A casa parecia silenciosa demais depois que voltei do velório, onde o único presente vivo era eu. Antes de fecharem o caixão eu apertei a sua mão uma última vez, lembrando que eu ainda estava ali, mesmo que você já não estivesse.

Recebi seus pertences que tinham ficado na clínica. Na última página do caderno havia rabiscos, agradecendo pela única experiência de amor quase materno que você teve. Por ter lhe dado as chances e oportunidades que dei, por ter acreditado em Yuki, mesmo que a própria pessoa que o colocou no mundo não tivesse acreditado.

De volta do cemitério, arrastei meus pincéis, paleta, cavalete e tela até o banheiro. Era um tanto apertado, mas coube tudo ali. De frente para a banheira, peguei o pincel em mãos mais uma vez; o peito se apertou de repente, e as lágrimas voltaram a rolar pelas maçãs do rosto. Mesmo com a visão turva, decidi que seria ali, naquela hora, que eu terminaria aquele quadro.

Descendo pelo fundo levemente azulado, os flocos de neve se juntavam num branco sombreado de uma banheira de porcelana, como a que há no banheiro de casa. Dentro da banheira há um corpo pálido, não completamente submerso na água, com os braços para fora e os cabelos negros, agora mais compridos do que no quadro anterior, cobrindo os olhos e parte do nariz. Nos braços, a aquarela de tons rosados, roxos, verdes e amarelos davam vida a uma galáxia de hematomas e cortes cicatrizados.

Da água da banheira nascia um tom avermelhado, que escorria pelas bordas da porcelana e inundava o chão não desenhado na pintura, como se a água de sangue de fato pingasse pela futura moldura. Não apenas água, mas flocos de neve, agora manchados no mesmo tom rubro. Eles apareciam conforme a água se afastava da banheira outra vez, mas agora na parte inferior da tela. Assinei a pintura e na mesma semana enviei para o concurso.

Ela não venceu coisa alguma, Yuki. Pelo menos não lá entre os olhos que não sabiam o que era o tom escarlate da água fria, nem o que os flocos de neve poderiam significar. Eles tampouco compreendiam porque o nome da obra era “Floco de Neve se Afogou na Banheira”.

E eu não fiz questão alguma de lhes explicar.

Eles não conheciam Yuki, o floco de neve que me afogou em lágrimas. Eles não sabiam que o vermelho na água não era apenas sangue, mas também um representante do clássico significado dos tons rubros. Amor. Porque era isso que estava mergulhado naquela água para mim, e que infelizmente agora é parte do solo onde um dia vou tornar a pisar.

Os flocos de neve eram tanto a cocaína afogada na sua corrente sanguínea, como você mesmo afogado em sua própria solidão na banheira. E é assim que acontece. Os flocos de neve se afogam; eles se desfazem, eles se desmancham. Eles se desmaterializam num instante, num simples toque com o meio líquido que irá envolvê-los e engoli-los. Abraçados pelo solvente, diluídos.

Assim como uma mãe que abraça o próprio filho.

Esse lugar ainda tem o seu cheiro, Yuki. Esse velho quarto de orfanato onde você cresceu, e onde eu me encontro agora, deitado, inundando a sua velha cama com as minhas lágrimas salgadas. Espero que o seu cheiro de saudades possa se misturar ao sabor salgado delas, assim como eu gostaria de novamente misturar nossas mãos gélidas.

❖❖❖
Notas de Rodapé

Muito obrigada pela disposição do seu tempo nessa leitura!

Nos vemos nos próximos textos.As Flores Selvagens

Apreciadores (2)
Comentários (2)
Postado 17/10/22 20:15

Cacetada.

Que texto forte, de um carinho e compaixão com as emoções palpáveis. Não tenho palavras pra dizer como esse texto conseguiu desbloquear memórias a muito tempo esquecidas.

Obrigada.

Postado 17/10/22 21:04

Esse texto é daqueles que nos impacta ao ponto de nos deixar sem palavras... A narrativa é triste e relata com maestria o quão difícil é para aqueles que cuidam quanto para aqueles que sofrem. As palavras conseguem transmitir a dor, o sofrimento e as inúmeras tentativas de colocar um fim ao vazio que a depressão consegue deixar em todos nós, na mesma perspectiva que as palavras nos entregam o amor, o cuidado, a luta diária e o desejo de salvar.

Obrigada por compartilhar conosco!

Parabéns