Era uma amanhã úmida de sol envergonhado, quando o portão do cemitério rangeu para entrada do pequeno Lucas. A criança de cabeça raspada e olhos castanhos parecia frustrada por ter de estar ali.
– Que saco! – chiou ao olhar o caminho de pedras que o guiaria pelo local.
Lucas segurou nas alças de sua mochila vermelha e começou sua caminha, durante o percurso ele lia silenciosamente os nomes das lápides e suas datas: Cassandra H. Cardosos de 1954 – 2006, Maria Lopes de 1934 – 2002, Sérgio P. G. dos Santos de 1897 – 1983.
Entre vários nomes de pessoas que não conhecia e nunca poderia vir a conhecer. Ele parou, a entrada de um corredor, para observar um túmulo ao longe, após seu devido tempo, se aproximou lentamente. De frente para a sepultura, o menino encarou de forma silenciosa o nome gravado: Enrique Pereira de 1999 – 2010.
Seus lábios tremiam e ele apertou forte as alças vermelhas, aos poucos toda aquela marra, que tinha quando entrou no cemitério, foi dando lugar a um semblante solitário e triste. Lucas não sábia o que dizer e só ficou parado tempo suficiente para a úmida matutina diminuir, tempo necessário para um homem de botas azuis parar ao seu lado.
– Bom dia.
O comprimento surpreendeu o menino que pulou dando um passo para trás com seus olhos marejado. Antes que pudesse dizer algo, o estranho falou: – Sou o coveiro deste cemitério, precisando de algo... – enquanto se abaixava para colocar um simbólico buquê de flores amarelas, ele terminou: – Qualquer coisa, pode chamar.
O coração de Lucas batia tão forte que era como levar seguidos socos no peito, ele não conseguia dizer nada até que se acalmasse. Respirava e inspirava, tentando processar aquele gentil “bom dia”.
O desconhecido já havia terminado de fazer o viera fazer, juntou seus pertences e gesticulou com a cabeça um “até logo” para a criança, seguindo sua rotina da amanhã.
Lucas olhou o túmulo e as flores oferecidas ali, as belas e distintas pétalas iluminadas pelos raios de sol mais atrevidos daquele horário, “qual seria o nome dela?” passou sorrateiramente em sua mente infantil.
O menino seguiu o mesmo caminho por qual o estranho coveiro se sumiu, sempre com as mãos nas alças vermelhas de sua mochila juvenil. Agora ele não lia os nomes nas lápides, procurava por aquela gentil voz.
Seus olhos rodopiavam por todos os lados e seus passos ansiosos preenchiam o cemitério de sons vividos até bruscamente pararem ao chegar nos fundos. Naquela parte sagrada, pequenos canteiros floridos enfeitavam a visão com diversas espécies de flores e entre tantas cores, seus olhos castanhos pararam naquelas flores amarelas.
Em passos medrosos a criança se aproximou das flores excêntricas e de forma curiosa quis tocar a planta de pétalas distintas, uma por uma ele acariciou suas texturas e memorizou suas características. Foi quando notou o coveiro de botas azuis o olhando.
Na defensiva Lucas balbuciou um decorado pedido de desculpas: – Desculpa... Senhor Coveiro.
O homem riu baixinho e chegou perto do menino: – Não precisa pedir desculpas – com uma tesoura cortou uma florida flor e a ofereceu.
Os olhos castanhos do pequeno brilharam e timidamente suas mãozinhas se estenderam para pegar o presente.
– Obrigado – era um sorriso genuíno e um agradecimento ainda mais genuíno.
– Que bom que gostou, pequeno.
O gentil coveiro juntou suas coisas para continuar sua rotina mais uma vez, quando a criança o parou.
– Por que o Senhor colocou essas flores no túmulo do Enrique, Seu Coveiro? – ele gostava daquele homem e por isso tentava o tratar da forma mais respeitosa que conseguia.
O estranho sem nome absorveu por alguns instantes a pergunta e respondeu: – Pequeno, você conhece o nome dessa flor?
Lucas observou com cautela aquela em suas mãozinhas e frustrado respondeu: – ... Não.
– Astromélia é seu nome.
– Astro... Mélia.
– Sim, imaginou que não conheça seu significado também. Você sabe que flores tem significados, pequeno?
– SIM! – falou animado. – Sei que a rosa é amor e girassol é felicidade! – ele apontava para as respectivas flores que por ali cresciam.
– Muito bem, mas as rosas podem mudar de significado dependo da cor.
– E a Astro-mélia?
O homem sorriu e apontou as outras cores que a flor poderia ter, explicando: – Esse é o mais legal dela, não importa se ela é vermelha como a rosa ou amarela como o girassol ainda será um símbolo de amizade verdadeira.
O garotinho observou a flor e não se conteve em perguntar: – Por que?
O coveiro baixou os olhos para as pétalas e começou a falar: – Cada uma destas seis pétalas tem uma característica da amizade: a compreensão, o humor, a paciência, a empatia, o compromisso e o respeito – ele voltou a olhar nos olhos do menino. – Mas antes dela ser conhecida, um cientista a encontro e em homenagem a seu melhor amigo, Carlos Alstroemer, deu o nome de Astromélia.
Lucas ficou em silêncio por alguns instantes, quando voltou a falar sua voz soava cautelosa: – O senhor era amigo do Enrique, Seu Coveiro?
– Não, eu não era... Eu nem o conheci.
O pequeno se intrigou e logo perguntou: – Então por que o Seu Coveiro estava colocando essas flores no túmulo de alguém que não era seu amigo?
– Por que no dia que enterram seu amigo Enrique, você sofria tanto quanto os pais do menino e na hora eu soube que ele era um bom amigo... – os olhos castanhos do garoto lagrimejavam, enquanto o coveiro falava. – Não era, pequeno?
A criança engasgava em seu choro ao dizer: – Era-a... O me-lhor...
Abraçado ao estranho, mas gentil, coveiro, Lucas chorou sua perda, choro a incompreensão de seus pais, choro a solidão que sentia. Naquele começo de dia, nos fundos de um cemitério, o pequeno garoto de cabeça raspada chorou por seu melhor amigo, Enrique, mas principalmente ele chorou... por ele mesmo.
...
Antes de ir embora, o menino voltou ao túmulo do amigo.
– Enrique, eu ainda sinto sua falta todos os dias, mas agora eu fiz um novo amigo, o Seu Coveiro, ele cuida de tudo aqui, vai cuidar de você – respirando fundo, ele terminou. – Obrigado por ter sido meu amigo mais divertido e eu nunca vou te esquecer... você sempre será meu melh-or a-migo! Adeus.
O homem afagou a cabeça da criança, recompensando-o por ter conseguido se despedir.
Após secar suas novas lágrimas o pequeno olhou para o adulto: – Obrigado, Seu Coveiro!
Os dois se despediram ali mesmo, sem trocar nomes ou qualquer contato. O estranho ficou olhando o pequeno Lucas sumir do seu campo de visão, aquele era somente mais uma manhã normal em seu emprego.
Juntando seus pertences, ele seguiu sua rotina no cemitério.