Então pegue o que você quiser, pegue o que puder, pegue o que desejar, não se importe com nada. Está no sangue e esta é a tradição.
Refletindo sobre o passado, percebo que a história de cada garota tem suas estranhezas, dores e abusos, desde a mitologia ou histórias de livros sagrados, até a vida real e seus dissabores. É quase como um padrão, somos como lindas flores que as pessoas — geralmente aqueles por quem nos apaixonamos — acham que podem simplesmente arrancar, levar, sujar, abusar e está tudo bem, pois somos frágeis e devemos aceitar. E o maior vilão de toda essa história é um sentimento idiota pelo qual ainda prezo: o amor.
Na mitologia grega havia uma garota com uma história muito parecida com a que vou contar. Seu nome era Clície, uma ninfa apaixonada por quem não a merecia, o qual também tinha nome e era Hélio, o deus do Sol. A paixão. O momento mais enlouquecedor, que faz nossos ossos e carne pegarem fogo na ânsia por estar ao lado de quem se ama, que nos faz esquecer que somos alguém para sermos de outrem. E como quase todas as garotas, adivinha? Ela foi abandonada. O abandono. É como um ciclo vicioso, nos apaixonamos para sermos abandonadas. Mais que isso, Clície foi trocada. Traída. Leucoteia não tinha culpa, era mais uma vítima, mesmo sem saber disso.
Não, ela não se revoltou. Ela não gritou. Ela não o matou. Ela somente definhou. É isso o que fazemos, amamos tanto alguém que ainda quando somos trocados, permanecemos sofrendo por algo que estava destinado a destruição antes mesmo de seu surgimento. Sentada no chão frio, sem comer e sem beber, alimentando-se apenas de suas próprias lágrimas — as quais eram totalmente ignoradas por Hélio. Enquanto ele estava no céu, ela não desviava o seu olhar dele nem por um segundo, como se o amor fosse demais para abandoná-lo mesmo quando ele não tinha medido esforços para fazer exatamente isso com ela; fim da história: aquele passou a ser seu estado eterno, raízes fincadas no chão e olhar constante para o Sol, uma flor que continuou seguindo o seu amor, um girassol¹.
***
Meu nome é Zaya, um nome que se tornou totalmente irônico cada vez que eu ouço ele ser pronunciado. Significa “flor que floresce”. Flor, o trocadilho veio pronto do berço. Não só o nome é um trocadilho, na real, mas também o fato de que eu venho de uma das capitais mais quentes do mundo: Doha, Qatar.
Normalmente definida como muçulmana de sorriso fácil, espírito procurando por liberdade de suas próprias prisões, olhos de cor amêndoa, conquistadora de corações, mas nunca correndo o risco ou desejo de ser conquistada. E como uma boa conquistadora, não somente de corações mal intencionados, decidi me mudar repentinamente por estar me sentindo extremamente sufocada; coloquei o dedo no mapa e decidi seguir para o lugar apontado de forma aleatória: Lytton², no Canadá.
Apesar das pessoas enxergarem pessoas da minha religião de uma forma extremamente tradicional — se assim posso dizer —, sempre gostei de viver novas coisas. Algumas inimagináveis em um primeiro momento, eu diria. O Canadá era uma boa opção, meu inglês era bom o suficiente para viver no país, além de ser longe de tudo o que eu conhecia; mal sabia eu é que lá me tornaria uma versão menos romantizada da ninfa-girassol citada anteriormente.
Uma semana depois da minha chegada já sentia uma paixão crescente pela pequena vila — pois cidades pequenas são meus locais preferidos — apesar do calor escaldante que havia feito até então. Decidi, numa tarde de julho, ir tomar um sorvete e lá eu encontrei a pessoa mais clichê para a história mais idiota da minha vida, mas que me rendeu longas noites desesperadas em busca de socorro. Elijah³, esse era o seu nome; um garoto da minha idade cheio de vida e amor para oferecer, ainda que eu fosse só uma estranha naquele momento.
— Posso lhe oferecer algo? — ele perguntou, após uma tarde longa de conversas sobre filmes, flores, família e religião, tudo da forma mais leve possível.
Automaticamente pensei em mil coisas, em negar, em correr, em aceitar ou chamar alguém; ser mulher é quase como um alarme eterno na sua cabeça. Mas, ao contrário do que eu pensei, ele simplesmente me ofereceu uma flor: um girassol. Não sabia da onde ele havia tirado, só sabia que era um gesto lindo e puro, algo que eu não via há muito tempo. O coração bateu mais forte.
Lembrei de alguns sermões diários da minha avó, sempre dizendo que alguns homens são realmente amorosos com quem amam. Mas era só uma flor, não é mesmo? Pois é. Era. De uma tarde e uma flor, nos transformamos em amigos, melhores amigos e finalmente cúmplices em absolutamente tudo. Comecei a trabalhar e fazer faculdade, fincando raízes que nem tinha como objetivo quando saí da casa da minha família.
Logo, tivemos nosso primeiro beijo. Uma explosão de sentimentos que nunca havia experimentado, pois na minha terra natal nunca poderia me apaixonar por alguém que não seguisse a mesma religião; nem fora dela, na verdade, mas o que importava naquele momento era fazer o que meu coração mandasse, e meu coração havia se entregado a ele. Não poderia ser tão errado, ele tinha um nome que remetia a Deus, seja lá qual fosse seu nome: Alá, Deus, Jesus, ou outro.
Eu já não era mais Zaya, eu era o seu girassol, a flor que selou o nosso relacionamento se tornou o símbolo do que eu era para ele: a sua felicidade. Os beijos se multiplicaram. A paixão, a necessidade de estarmos juntos, termos mais memórias como a daquela fatídica tarde de verão numa sorveteria qualquer, ou ao menos era o que eu sentia. A reciprocidade é uma merda, você só percebe que não a tem quando já é tarde demais.
Nosso relacionamento era leve, feliz e puro como nunca imaginei que seria. Sonhava com o nosso casamento, talvez filhos, uma casa com uma linda varanda, noites rindo enquanto assistíamos qualquer coisa boba na tv, sorvete em estoque no freezer. Mas nem tudo são flores, literalmente dessa vez.
É tradição, homens não pedem permissão, pedem perdão. Nunca permissão. Estávamos em uma noite complicada, eu queria ficar sozinha e ele queria me forçar a estar com ele, o que já era errado por aí. Foi então que a história de desamor de Clície começou a fazer sentido, porque Elijah tinha a mesma mente de Hélio.
Tudo começou quando ele chegou no meu apartamento completamente bêbado, sabendo que eu já havia pedido para ficar só. Minha avó tinha acabado de falecer e eu não teria como me despedir. Um grito atrás do outro, dizendo que se eu o amava, deveria ceder. Mas ceder a quê, afinal? Eu descobriria logo em seguida. O olhar meigo anterior se tornou em algo assustador, como quando andava por alguma rua a noite apavorada quando alguém passava devagar atrás de mim.
O que veio em seguida é um borrão amarelo. Com força, derrubou o vaso com o último girassol que ele havia me dado uma semana atrás. Um puxão no braço e eu já havia entendido tudo. Jogou-me contra a cama, como se eu fosse apenas um pedaço de carne morta, enquanto eu gritava que não, não queria e ele não tinha o direito de me força, só não. Mas minha opinião não importava mais, ou talvez nunca tenha importado.
Ele continuava dizendo que estava me fazendo um favor, me tornando mulher. Como se um ato forçado fosse bom. Como se eu fosse culpada por não ser tão mulher quanto ele era homem, quanto ele merecia que eu fosse. Então, coitado, ele teria de me ensinar.
Meu corpo rebatia sobre a cama que para mim deveria ser imaculada. As mãos frias e truculentas me segurando até que eu fosse desfeita. Até que todo amor fosse arrancado de mim com garras de um animal selvagem; toda a admiração, pureza e alegria indo para uma grande lata de lixo sem sequer um pedido de permissão. Era o que ele queria, pegar, rasgar, abusar e jogar fora.
Depois, não sei. Imobilidade, dor, sangue, ódio; tudo o que eu era, deixei de ser. E ele? Ah, ele me pediu desculpas. Desculpas. Não a porra de um “posso?”, mas uma desculpa. Como se tivesse sido simplesmente grosseiro ou quebrado minha caneca preferida. O girassol? Morreu. Uma morte longa sem realmente ter sido velada e sepultada. Não podia simplesmente me fincar na terra como Clície e morrer, tudo o que eu podia fazer era denunciar a pessoa que disse que tudo o que fez foi por amor e aquele foi um momento de fraqueza, um momento. Quando destruir a vida de uma mulher pode ser definido por um momento de fraqueza?
Tudo em nome do amor. Foi por causa dele que minha alma se tornou negra. O seu desdém me comeu viva, de dentro para fora. Já que fui vendida a preço de banana, tratada como um objeto de prazer, já não vejo mais sentido em tudo o que via. Em florescer. Agora, rezo para que nenhuma mulher sofra com a tradição, mesmo sabendo que isso acontece com milhares ao redor do mundo. Porque ela é uma droga que levamos para o túmulo, se é que teremos um.