Naquela noite, havia apenas um homem na rua. Ele caminhava tranquilamente, envolvido pelo som dos grilos e das folhas das árvores quando eram abraçadas pelo vento vez ou outra. Não se sabia o nome e nem quem era, apenas sabiam que ele carregava sempre consigo o pequeno cantil de prata cheio de aguardente e que cantarolava canções em línguas tão antigas que até os deuses haviam se esquecido. A tosse de alguma doença que provavelmente traria logo seu fim também o acompanhava, sendo cessada com um gole longo e quente.
Passos apressados chamaram sua atenção e, de repente, a rua já não estava mais deserta. Um homem corria em sua direção assustado, com os pés descalços sujos e machucados, uma barba branca por fazer e trapos rasgados que lhe cobriam o corpo.
“Moço, preciso de uma oração!” pediu o sujeito desesperado, que o homem acreditou ser um morador de rua. “Por favor, faça uma oração para mim.”
Ele sabia que não era um homem de orações, nunca fora. Mas o coitado estava tão apavorado e havia feito o pedido com tanta força, como se sua oração fosse a cura para qualquer peste que estivesse por ali, que o homem até se esqueceu que não conhecia oração alguma.
Decidiu então guardar o cantil no bolso da calça e segurar as mãos sujas e enrugadas que lhe foram estendidas, sentindo o gélido aperto que o homem lhe deu após fechar os olhos e franzir o cenho, levantando a cabeça em direção ao céu.
Então, sem muita opção, pôs se a cantar. Pensou nas cantigas que o acompanharam por toda sua vida em bons momentos, deixou as tristes para quando estivesse sozinho. Era uma cena estranha, os dois estavam imersos naquela situação cômica, tão imersos que demorou para notarem os dois pontos alaranjados que rastejavam em ambas as extremidades da rua.
O pedinte arrepiou ao sentir o calor emanado pelas criaturas, fechou os olhos com força e apertou ainda mais a mão de seu suposto salvador. As duas serpentes flamejantes que rastejavam com fúria em direção aos homens faziam movimentos como se estivessem interpretando a dança da morte e, por onde passavam, deixavam o rastro de brasa viva. Mostravam seus dentes de forma ameaçadora enquanto seu veneno semelhante à lava em seu estado mais líquido escorria por toda parte, dilacerando o que encontrassem pela frente.
O orador abriu os olhos assustado, ouvindo o barulho de chocalho de cascavel já conhecido por ele. Sempre amara serpentes, o suficiente para saber que o que vinha em sua direção não era uma simples espécie. Apesar do chocalho na ponta da cauda, os bichos possuíam estranhos aspectos que os tornavam semelhantes a dragões da terra.
Quando se encontraram, rodaram e formaram um círculo de fogo ao redor dos homens, de repente, toda a atmosfera era quente e laranja. As árvores queimavam como uma gigante fogueira enquanto o fogo se alastrava por todos os lugares, arrancando gritos do fundo da alma da população que cercava aquela região, quanto mais altos, mais as serpentes dançavam e queimavam, o grito dos meros mortais mundanos era sua melodia.
Quando acreditou que de nada valiam suas cantigas, o homem pegou o cantil do bolso e deu um longo gole, oferecendo-o ao velho que o olhou surpreso.
“A única igreja a qual não fui expulso em toda a minha vida foi a mesa do bar, senhor.” disse encarando as criaturas. “Minhas preces carregam demônios tão feios quanto esses que nos cercam. Não acredito que Deus está contente com minha pessoa, muito menos que esteja aqui neste momento”
O velho sorriu, aceitando o cantil e bebendo tudo o que nele havia restado. Olhou fundo nos olhos do pecador, que acreditou ser efeito da bebida ao ver os olhos opacos refletirem íris de répteis.
“Suas falhas, assim como seus acertos, são partes de você. Não deixem que tirem isso, tudo o que um deus precisa, é de alguém que acredite nele.”
Dito isso, o fogo ao redor cessou como um breve soprar de vela, sem deixar o mínimo rastro de fumaça. As serpentes flamejantes agora estavam prateadas e rastejavam calmamente em direção às extremidades de onde vieram.
Ofegante e pasmo, o homem deixou de encarar o seu redor e voltou-se para onde o velho se encontrava anteriormente, encontrando apenas o escuro da noite. Surgiu então o som distante e suave do chocalho, chamando sua atenção para uma das extremidades da rua, onde a serpente prateada rastejava para longe, como se nada tivesse acontecido.