Alma suja. Pés descalços. Cheiro de chuva. Porta destrancada. E finalmente compreendo que somos sozinhos, como alguém que leva uma facada de si mesmo.
A chuva que cai do lado de fora e respinga pela porta em meus pés e pernas me lembra de uma cena infantil.
Éramos dois corpos sentados a beira do mar, eu permanecia com meus olhos fechados para aproveitar a brisa gélida que me tocava o rosto, mas a outra tinha os olhos fixos no horizonte, como se, de repente, fosse desabar em lágrimas tão salgadas quanto as águas que batiam suavemente por nossos descalços pés em contato com a areia quente; e eram nesses momentos que eu sabia que os seus pensamentos estavam em algo que se encontrava entre o filosófico e o deprimente, era como um dejavu.
Sem mais nem menos, seus olhos baixaram para fixar nas mãos que agora estavam em seu colo, e a única coisa que consegui ouvir foram seus soluços secos. Mal sabia eu que isso se tornaria um hábito meu após a sua partida. Foi quando, como se fosse sufocar se não dissesse nada, que ouvi a frase que hoje se encaixa tão bem na minha humilhante e insignificante vida; quando, quase como num sussurro, ouvi: “No fim, não temos ninguém. Temos a nós, mas muitas vezes não queremos nos ter. E quando eu me for, sei que estará oca e só, sem ninguém que cuide de você, e espero que sobreviva ao vazio que afoga aos poucos”.
No fim, não temos ninguém. Não temos pai, não temos mãe, não temos avós, não temos amantes, não temos almas gêmeas, não temos amigos, não temos divindades; simplesmente, não temos ninguém. E nos tornamos seres irremediavelmente ocos e solitários, num universo de tanto barulho e agitação, onde alguns se encontram e ficam, outros se encontram e se destroem, outros até se amam e vão embora.
Que direi, pois, se tenho a mim mesmo, ainda que não me queira? Um ciclo eterno de bem-me-quero, mal-me-quero, onde a última pétala continua sendo um pedaço do meu âmago jogado ao vento, como se não tivesse valor algum. E será que tenho? Será que tenho algum valor para qualquer ser do universo, ou será que sou só mais um fazendo número?
Sinceramente, não sei. Nem ao menos sei como sair do meio de uma solidão que me agarra o pescoço com suas mãos grossas e firmes, e cada vez aperta mais a minha garganta, ao ponto de estar a beira da morte. E não sinto como se isso fosse ruim. A morte. Pois não foi para isso que nascemos? É o nosso fim de qualquer forma. Talvez ela seja a única que almeja nossa presença como seres únicos e importantes. Eventualmente, tenham algumas pessoas que chorem, que gritem, que desmaiem, que lamentem, que pranteiem, que sofram diante de um corpo deitado dentro de uma caixa, somente esperando uma despedida que nunca receberá realmente; mas por que não o fazem enquanto estamos vivos? Porque vivos somos tão sozinhos e mortos tão lembrados? O ser humano é incompreensível.
Tentamos, tentamos e tentamos, sem realmente ter um propósito de tentativa. No fim, como ela me disse, tentamos sobreviver ao vazio que nos sufoca, que nos afoga, que nos amarra, que nos rasga, simplesmente porque ainda temos esperança. Mas esperança de quê, afinal? Visto que, nos agarramos a uma falsa esperança de não estarmos mais só, de termos alguém que nos cuide e socorra quando precisarmos, de alguém que se lance a deriva para nos salvar, de termos uma importância para alguém que seja, quando na verdade não há esperança, quando na verdade não há solução, não há cura.
Fomos feitos solitários. Viemos a esse mundo sem nada, nem ninguém, e assim sairemos dele. A questão é sobre quanto tempo suportamos respirar debaixo d’água sem saber nadar.