— Então vi uma arara verde no céu e acordei.
Rebecca continuou digitando no computador depois que parei de falar. Franzi os lábios, olhando para o crachá envelhecido que ela tinha na blusa, o logo e o nome "Departamento de Sonhos com Animais" meio apagados.
— Qual tom de verde ela era, mais ou menos? — perguntou.
— Verde-oliva? — Pelo menos era o que eu lembrava.
— Esse é o retrato mais fiel do seu sonho? — indagou ela, ainda concentrada no teclado.
— Sim, anotei tudo quando acordei.
— Assine aqui, por favor. — Ela me empurrou meu papel de registro diário e uma caneta. Assinei, como todos os dias, embaixo do: "Concordo que estou narrando os sonhos que de fato tive, pelo bem da ciência e da evolução da humanidade". — Ótimo. Obrigada pela contribuição! Até a próxima. — Rebecca sorriu. Eu também.
— Até a próxima. — Tirei minha jaqueta da cadeira e caminhei até a saída do prédio. Engraçado como ainda estava tão bem conservado e lustroso: as paredes cinzas sem rachaduras, o piso de madeira encerado, as portas de vidro sem marcas de dedo, aquele cheiro agradável de camomila que eu não sabia de onde vinha. Os cartazes de "Seu sonho importa!" e "Palestra: Como relatar meus sonhos do melhor modo possível?".
O segurança me cumprimentou com um aceno de cabeça e eu retribuí. Todos os dias, ele estava ali. Seu crachá não tinha nome, ao contrário do de Rebecca, e eu também nunca perguntei. Registrei minha digital na catraca e a porta automática se abriu.
A noite era um retrato estrelado de Van Gogh, como sempre. Ou só eu via assim. Mistério.
A caminhada até a minha casa foi acompanhada por dois clássicos de Bon Jovi que resolvi ouvir nos fones, simplesmente para evitar ter que falar com algum conhecido. A alocação dos departamentos dos sonhos era feita de forma que fossem próximas e acessíveis às moradias, e isso era bom e ruim para uma introvertida como eu.
Lutei um pouco para encontrar minhas chaves, mas, para minha sorte, a rua estava vazia. Era por isso que eu preferia fazer meu registro de sonhos à noite, mesmo com o trabalho de escrever os mínimos detalhes quando eu acordasse. Nada era pior do que a aglomeração de indivíduos sonolentos no prédio de manhã.
É claro que não era mais constrangedor, já que estávamos fazendo aquilo há oito anos. A crise ambiental, financeira, social e da saúde também tinha atingido o ápice há oito anos, quando surgiu esse homem, um fã aleatório de Jung ou Freud ou seja lá quem prega a importância dos sonhos, dizendo que todas as soluções do mundo e da humanidade estavam no inconsciente. Não custava tentar, todos pensaram, investigar mais a fundo. Afinal, a interpretação dos sonhos funcionava nas clínicas psicanalíticas há umas boas décadas, só não desse jeito radical.
O mundo meio que entrou em colapso quando, por causa de um sonho aleatório de um rato com olhos verdes entregando uma fórmula química para um professor de literatura (que nem gostava de química, diga-se de passagem), criaram um remédio para o Covid-19 e o tratamento alavancou, aliado às vacinas, o que tecnicamente salvou parte do planeta.
Portanto, atualmente estavam em busca de mais soluções para os fragmentos das outras crises que surgiram da pandemia e fora dela. Todos nós éramos obrigados a contribuir com nossos relatos diários de sonhos. Até que era bom. Dava um senso de utilidade. Me fazia pensar que a humanidade não era uma grande porcaria. Às vezes.
Eu estava cansada demais pra cozinhar algo, e sabia que, se abrisse a geladeira, não veria nada além de um alface da semana passada. Por causa disso, decidi ir direto para o quarto.
Saudável? Não. Útil? Sim.
Me reencontrei com a minha cama, mais uma vez, depois de posto o pijama. No próximo dia, teria que acordar cedo para revisar uma enorme biografia na editora em que trabalhava, e isso drenava minha energia ainda mais, se é que era possível.
Fechei os olhos.
E sonhei.
Aparentemente, nesse sonho eu estava lendo respostas de um comentário meu no YouTube, e um usuário qualquer tinha me digitado um texto dizendo o quanto eu estava errada. Típico de internet. Vi o título do vídeo. Ah, sim, era sobre a importância de não assistir reality shows como o The Voice, e eu discordei, porque claramente o programa ajudava cantores desconhecidos.
Analisei os arredores. Aquela não era a minha casa. Parecia mais um cubículo. Caminhei para fora do lugar e descobri que, sim, era um cubículo com paredes verde-musgo bem feias. Olhei para o lado e três cachorros pretos vinham na minha direção, todos similares uns aos outros. As coisas sempre aconteciam rápido assim no meu cérebro.
Agachei para acariciar a cabecinha de cada um. Eles eram adoráveis. Quando encarei o dono, no entanto, ele não era nada adorável. Meu instinto me dizia que ele tinha sido o rapaz que havia respondido meu comentário. Nos meus sonhos, esses instintos eram sempre certeiros.
— Imagino que você não tenha o que fazer além de responder comentários na internet — falei.
— Imagino que você não tenha o que fazer além de sair por aí incomodando os animais dos outros — respondeu ele.
Os cachorros ganiram (em protesto, eu gostaria de acreditar) e eu levantei. O cabelo dele estava preso em um coque. O rosto estava meio borrado. Só conseguia reparar nas bermudas azuis e na camiseta branca.
O cenário tremeu à minha frente e, no mesmo momento em que pisquei, os borrões mudaram de forma.
Agora eu estava na casa ao lado do meu cubículo. Encaixei as peças na minha cabeça: ele era meu vizinho. Como sempre, eu só sabia. A porta se abriu e eu o olhei com mais atenção. Agora conseguia ver mais detalhes do rosto dele.
— Você é uma perseguidora ou algo do tipo? — perguntou ele, o cenho franzido.
— Na verdade, sou sua vizinha. — Coloquei as mãos na cintura. Ele olhou para o meu quadril.
— Que droga — respondeu.
— Babaca — retruquei.
E ele sumiu. Na verdade, não ele. Eu que acordei por culpa do despertador. Demorei alguns segundos para me reorientar e me colocar de volta na realidade. O primeiro reflexo foi pegar meu celular e abrir o bloco de notas. Anotei o sonho antes que eu me esquecesse, uma rotina entediante.
Uma rotina entediante.
Levantei. Café. Trabalho. Uau, era um livro chato que eu precisava revisar. Almoço. Supermercado. Trabalho. Noite de novo. Departamento de Sonhos com Internet. Não perguntei o nome do segurança, mais uma vez. Digital na catraca. Casa. Agora tinha os ingredientes para fazer um espaguete. Jantar. Cama. Como sempre, o dia passou tão rápido quanto um piscar de olhos.
E eu sonhei.
Estava sentada em frente a uma mesa de madeira, uma garrafa de vinho e dois pratos dispostos. Tinha um cheiro delicioso de batata assada por ali, e um homem cozinhando, cabelo preso em um coque. Franzi as sobrancelhas. Ele se virou.
— Você — falei. — O vizinho.
Ele estava com uma camisa social cinza dessa vez. Alcançou a garrafa de vinho e disse:
— Trégua?
Dei de ombros. Ele me deu uma taça e despejou o líquido.
— Qual o seu nome?
— Thomas. — Ele bebericou a própria taça. — Você?
— Ana.
Ele tirou as batatas do forno com luvas vermelhas. Parecia ótimo. E quando eu comi, estava mesmo.
— Onde estão os cachorros? — perguntei, no meio de uma garfada.
— No quintal. — Thomas me encarou. — Eles gostam de você.
— Também gosto deles. — O rosto dele não estava mais borrado. Agora eu conseguia ver os seus olhos marrons e as manchinhas de sol acima da sobrancelha. — Até que você é bonito.
— Você também não é péssima. — Ele riu, sem me olhar nos olhos.
Hora de mudar de assunto. Minha discrição alcançava, também, os sonhos. Falei:
— Por que eu não deveria assistir The Voice?
Ele pigarreou.
— Porque é tudo encenado. Eles manipulam pessoas para conseguir reações extremas e audiência. — O prato dele já estava vazio. Como ele havia comido tão rápido era um segredo do meu inconsciente.
— Você tem provas?
Sim, eu defenderia meu programa favorito com unhas e dentes.
— Pesquise por depoimentos na internet — desafiou.
Não tive tempo de retrucar. Ele começou a ficar fora de foco e a música do meu alarme soava de algum lugar da casa.
Abri os olhos.
Peguei meu celular, bocejando. Anotei o sonho o mais rápido que pude, meio confusa com a sensação de incômodo que tive ao fazer isso.
Levantei com alguma dificuldade. Comi frutas no lugar de café. Trabalho. Estava quase finalizando a biografia. Almoço. Pesquisa na internet: The Voice. Realmente, era tudo encenado. Provavelmente eu tinha ouvido falar sobre isso antes, por isso o assunto surgiu no sonho. Trabalho. Noite. Departamento de Sonhos com Comida. Não gostei de relatar meu sonho, parecia íntimo demais. O segurança se chamava João, finalmente descobri. Digital na catraca. Um conhecido na rua, mas escapei. Casa. Fast-food. Cama.
Sonhei.
Eu estava deitada na grama, os três cachorros correndo de um lado para o outro. Virei a cabeça. Ele estava deitado também, dessa vez com um moletom. Engraçado ele aparecer de novo na minha atividade noturna.
— Realmente, o The Voice é encenado — comentei. — Você estava certo.
— Claramente eu estava. — Ele sorriu.
— Você trabalha com o quê?
— Sou veterinário.
— Claro que é! — Vi os pets dele latindo ao longe. — Pensei em ser veterinária também, um dia desses, quando era adolescente. Agora sou revisora de textos.
— Parece um bom emprego. — Ele me olhou, um pouco mais intensamente. Foi minha vez de ficar sem graça. Engoli em seco sem saber muito bem o porquê.
— É, eu gosto do emprego quando tenho material interessante para ler.
Olhamos para o céu. A respiração de Thomas falhou um pouquinho. Senti os dedos dele envolvendo os meus. Eu não sabia que queria tanto aquele toque até ele acontecer.
— Ana — disse ele.
— Thomas — ecoei.
Nos concentramos um no outro novamente, o céu esquecido. Me aproximei dele, que claramente ficou surpreso com o gesto. Quanto mais eu me aproximava do rosto de Thomas, mais ele ficava borrado.
— Espera! — Ele encostou a testa na minha. — Fica.
Sim, fica, cérebro, por favor. Decidi que ia beijá-lo antes de acordar.
Fracasso.
O teto azul do meu quarto foi a primeira coisa que vi. Nunca tinha sentido tanta raiva de um teto antes. Coloquei o despertador para tocar dez minutos mais tarde e tentei dormir de novo. É claro que não funcionou.
Eu não precisava anotar aquele sonho, porque não conseguiria esquecê-lo, de qualquer maneira.
Levantei. Chocolate quente. Trabalho. Finalmente terminei aquela biografia maldita, agora ia começar uma ficção científica. Almoço. Letargia. Trabalho. Noite. Departamento de Sonhos com Lugares Naturais.
Comecei bem: falei do parque e dos cachorros. Não falei de Thomas, no entanto. Narrei o sonho como se ele não tivesse existido. Não sabia bem o motivo, para ser sincera. Me convenci de que era pessoal demais, e que com certeza aquele sonho não salvaria o mundo.
— Esse é o retrato mais fiel do seu sonho? — Agora era Sandra que perguntava, as unhas vermelhas já alcançando meu registro diário.
— Sim.
Olá para o João, aceno educado. Digital na catraca. Casa. Sem jantar, só um suco de maracujá. Cama. Me revirei por vinte minutos sem conseguir dormir, estava ansiosa. Contei carneirinhos.
Sonhei.
Estávamos em um bar. A música estava alta. Era Bon Jovi. Thomas bebia cerveja.
— Você voltou. — Os cabelos dele estavam soltos dessa vez. Batiam no ombro.
— Pois é. — Tamborilei as unhas no balcão.
Tinha cerveja para mim também, então o acompanhei. Ficamos em silêncio. Eu queria perguntar de onde ele era, quantos anos tinha, mas não consegui. Ele pousou o copo na mesa e me puxou pela mão até um banheiro escondido no canto do bar.
Era minúsculo, porém limpo. Ele trancou a porta e me apoiou em uma das paredes. Segurei o cabelo dele com os dedos. Finalmente, o beijo. A parede era fria, mas ele estava tão quente que não fazia diferença. Eu não tinha notado que estava de vestido até ele subi-lo com as mãos. Abri o zíper da calça dele.
— Inferno — praguejei com a respiração ofegante. — Queria que você existisse.
Thomas mordeu meu pescoço com força. Obrigada, Bon Jovi, por abafar o som que emiti depois disso.
— Queria que você existisse. — Ele repetiu minha fala.
— Mas eu existo!
Ele se afastou do meu pescoço para me encarar, também sem ar. Eu conseguia senti-lo duro, pressionado contra a minha virilha.
— Então onde você mora? — Thomas me mirava com uma quantidade suspeita de angústia. Não consegui parar de encarar seus olhos marrons. Que começaram a ficar borrados.
— Eu moro na rua...
E acordei.
Não, pensei. Não, não, não. Fechei os olhos e contei de um até cinquenta.
Sonhei.
Estávamos na minha casa-cubículo do primeiro sonho. Ele em um sofá, eu no outro.
Tentei falar.
— Eu sou de...
Acordei.
Primeiro, o desespero. Depois, a raiva. Fechei os olhos. Meu coração batia acelerado, então demorei mais que o normal para voltar.
Dessa vez, um show do Bon Jovi. A multidão gritava, enlouquecida, e a música estourava por todos os lados. Thomas me puxou pela cintura e falou alto no meu ouvido:
— Me procura, meu sobrenome é Sa...
Ele não estava mais lá. Ele não estava mais lá e eu queria gritar, porém ninguém iria notar muito, porque já estavam fazendo isso no palco. Já sabia que não conseguia controlar meus sonhos, mas aquilo estava ficando ridículo. Não sabia qual problema meu cérebro tinha com fabricar informações falsas de alguém que não existia.
Não sei quanto tempo fiquei esperando, apesar de saber que não foram poucos minutos.
A multidão se dissolveu em uma fumaça amarela, enfim, e voltamos ao banheiro público do bar, sobrancelhas arqueadas
— Não podemos contar nada de nós mesmos — destaquei o óbvio.
— Eu notei.
Não falamos mais. Ele me mantinha na mesma posição, prensada na parede, como se não tivéssemos saído de lá. Bon Jovi ainda tocava ao fundo. Estava começando a me irritar. Fitei as manchas de sol dele, que não ficavam tão visíveis na escuridão do banheiro. Ele passeou a mão pela minha nuca e eu senti os pelos do meu braço se eriçando. Meu ventre queimou e ele me puxou para sua boca.
Terminamos o que havíamos começado alguns sonhos atrás.
Um bom e satisfatório tempo depois, descobrimos que a conta das nossas bebidas estava em outra língua, o que, como de praxe em sonhos, não fazia sentido algum.
Acordei.
Não abri os olhos, porque não queria ter acordado. Queria meditar naquele estado de pleno contentamento.
Infelizmente, o despertador conseguiu me tirar do sério.
Fiquei me perguntando por que meu inconsciente criou Thomas e por que eu estava sonhando com ele há tantos dias seguidos. Comecei a me achar meio genial: quer dizer, eu o havia criado, não é? Afinal, o inconsciente era meu, certo? E ser capaz de sustentar a figura dele por tanto tempo deveria ser um talento meu. Um talento um tanto bobo e egoísta, porém um talento.
Levantei. Café. Ficção científica na metade. Almoço. Texto sobre o Thomas que não era um registro de sonho. Trabalho. Noite. Departamento de Sonhos Eróticos ou Departamentos de Sonhos com Celebridades? É, Sonhos com Celebridades, com certeza.
— Esse é o retrato mais fiel do seu sonho? — Bianca não olhava para a tela, e sim para mim.
Não, eu não ia compartilhar Thomas com Bianca, ou Sandra, ou Rebecca. Ele era meu. Não iria dividi-lo com nada que não fosse meu cérebro.
— Isso mesmo.
Bianca não desviou o olhar e eu o sustentei. Quase engoli em seco, mas sabia que isso provaria que eu estava mentindo. Para dizer a verdade, tinha ouvido histórias do que acontecia com pessoas que mentiam sobre os sonhos. Não eram histórias bonitas.
Entretanto, não tinha como ela saber, e eu me tranquilizei o suficiente para sorrir com confiança. Já havia decidido. Não iria repartir Thomas.
Ela me empurrou o papel de registro diário. Li a descrição pela centésima vez: "Concordo que estou narrando os sonhos que de fato tive, pelo bem da ciência e da evolução da humanidade". Assinei.
O novo segurança não se chamava João, e não perguntei o nome, assim como não acenei — mal-encarado demais. Digital na catraca. Casa. Pizza de quatro queijos. Cama. Nada de ter sono. Me fiz um chá de camomila e fechei os olhos com força.
Sonhei.
Escutei o barulho da água batendo na madeira do barco. Era praticamente um calmante natural: o balanço, o cheiro, o som. Era muito realista, também. Eu estava deitada no piso. Me sentei e olhei a imensidão azul ao redor.
Thomas apareceu de um lugar que não captei qual era e sentou ao meu lado. Os cabelos dele voavam um pouco, meio desgovernados. Ele abraçou minha cintura. Não falamos nada por alguns minutos.
— Sabe que, quando eu era criança — comecei —, odiava dividir qualquer coisa com meu irmão mais velho. Brinquedos, comida, meus pais. Eu era uma pirralha bem egoísta.
— Eu diria que é difícil achar crianças altruístas — respondeu ele, rindo.
— Talvez. — Acompanhei a risada. — Mas eu cresci e não melhorei muito.
Nos encaramos. Engraçado, eu conseguia ver o rosto de Thomas tão, tão nitidamente. Continuei:
— Eu sempre tive medo de que as coisas boas fossem acabar, sabe? Quando eu contasse pra alguém, digo. — Dei de ombros, olhando para nossos pés. — Acho que compartilhar é doar algo seu pro mundo. E quando isso... Não sei, sai de você, os riscos de que o que está ao redor destrua essa coisa são bem grandes.
Ele pousou o polegar na minha bochecha.
— É como se fosse desaparecer — murmurou Thomas.
— É — concordei. — Como se fosse desaparecer porque não merecemos essa quantidade de coisas boas acontecendo ao mesmo tempo. Então não compartilhar é a única opção, eu acho.
Ficamos em silêncio de novo, analisando os traços um do outro. Em algum momento, nos beijamos de novo. Era tudo extremamente sensorial, o que me deixou surpresa. Eu conseguia perceber tudo: a língua dele, o gosto, a temperatura, o cheiro.
Nos separamos e nos fitamos de novo, em um momento de compreensão mútua.
Acordei.
Quando abri os olhos, pisquei em confusão. Não parecia que o meu teto era real, nem meu travesseiro, nem eu. Era como se eu estivesse sonhando, e não acordando. Meu sonho tinha sido mais real que a minha realidade. Que ironia.
Levantei. Suco de laranja. Livro de ficção científica finalizado. Almoço. O vento frio na porta da editora me pegou de surpresa. Gostei, me senti viva. Trabalho. Noite. Departamento de Sonhos com Lugares Naturais. Hoje era Sandra de novo. Falei sobre o mar.
— E esse é o retrato mais fiel do seu sonho? — Senti que os olhos dela penetravam meu âmago, aquelas unhas vermelho-sangue tamborilando na mesa, me intimidando, me questionando.
Assenti.
O papel de registro diário veio até mim e eu assinei sem ler. Tentei não correr até a saída. Por algum motivo, me sentia ansiosa.
Acenei com a cabeça para o novo segurança. Coloquei a digital na catraca. Recusado. Tentei de novo. Recusado. Olhei para o funcionário sem nome: tinha a mesma carranca do primeiro dia. Ele disse que eu deveria acompanhá-lo. Que grande porcaria, pensei. Contando ou não, ainda vou ficar sem as coisas boas. Realmente, um mundo justo.
Fomos até uma sala amarela, distinta de todas as outras salas daquele prédio. Não tive medo, só inquietação. Um pouco de frustração, muita cólera. Eu deveria estar apavorada, mas estava com raiva.
O segurança e Sandra me fizeram sentar em uma cadeira de metal, gelada e desconfortável. Fiquei imaginando uma tortura no estilo 1984, porém não prenderam minhas mãos nem me trouxeram ratos. Um ponto positivo.
Arrastaram outra cadeira para o meu lado, e eu me encolhi com o barulho. Alguém sentou. Olhei. Não tinha como confundir as manchas de sol e o cabelo batendo nos ombros. Me senti menos frustrada. Então tudo aquilo era um sonho, afinal. Meu inconsciente só estava me fazendo viver uma situação que eu temia. Tudo bem, eu poderia aguentar até acordar.
— Você — disse ele. A voz era límpida, grave, alta. Realista demais.
— Você — respondi, sentindo a vibração das minhas próprias cordas vocais, coisa que não acontecia nos sonhos.
— Thomas Santacruz e Ana Castilho. Os dois cometeram uma infração muito séria, imagino que saibam. — Sandra das unhas vermelhas interrompeu nosso diálogo e eu saboreei o "Santacruz". Um nome que meu cérebro não fabricaria normalmente. — Omissão de sonhos é um risco para a sobrevivência, não só de vocês, mas de todos.
Tive que encarar Thomas de novo. No delírio do meu inconsciente, ele não tinha contado de mim pra ninguém? Que lisonjeiro. Ele deu de ombros, como se estivesse se desculpando.
— Teremos que corrigir isso — disse ela.
O segurança fechou a porta. Nenhum rato à vista. Ainda.
Seria um bom momento para acordar.
@JornalUniversal, julho de 2030
Foi divulgado hoje, às 09 horas da manhã, a descoberta de uma fórmula química criptografada, que fez aparição nos sonhos de um casal anônimo. A simbologia foi uma conta de bar, reforçando o que já sabemos: qualquer pequeno detalhe em sonhos pode ser relevante e vital.
O Departamento dos Sonhos ainda está investigando, e garante que apresentará mais informações do laboratório, todavia tudo indica que estamos diante de mais um possível tratamento para doenças incuráveis que surgiram com o Covid-19.
Há pouco mais de 8 anos o relato dos sonhos é obrigatório em todo o mundo. Para reportar seus sonhos diariamente, dirija-se a unidade de Departamento dos Sonhos do seu bairro ou cidade.