"Enfim, chegou o dia, chegou a hora! Era seu dia de vitória, seu dia de paz, finalmente era o que sempre desejou: Juiz!"
José Montes, no auge de seus - não muitos - 25 anos, estava tenso. Era complexo o que sentia, sentado em uma mesa na sala de jantar, bebendo seu habitual café e arquivando, pela última vez, os dados do seu literalmente último caso. Ao menos, como advogado. Mas, antes de descrever essa breve estória, se faz necessário que José Montes seja apresentado.
Como defini-lo? é um homem calmo, pacífico, porém severo na mesma medida. Era rígido com as regras, mantinha sempre suas morais onde podia ver e enxergava de forma clara a justiça humana, era seco de sentimentos, ou ao menos, era o que aparentava. De aparência? Em forma, os cabelos loiros, mas escuros, um cavanhaque e um olhar cansado e verde no rosto, com olheiras suaves. No lugar das roupas formais que usava quase todos os dias, nesse momento, estava confortável com roupas causais, em tons de verde e marrom. Esse é, de forma resumida, José Montes, ex advogado, novo juiz, a espera de seu primeiro julgamento.
Pensativo e já cansado pela árdua labuta do dia a dia, decidiu sair para espairecer as ideias, como fazia sempre. Sentia que estava esquecendo de algo, devido à correria dos últimos dias, acertando documentos, finalizando seu trabalho e cobrando-se de lavar a sacada de seu apartamento. O pensamento estava agitado com tantas ideias, todas acumuladas em sua mente, falando e falando, ditando dia e noite o que faria, temendo e amando o desconhecido de forma contraditória, barroca, incomum mas comum. Os opostos que o guiavam por vezes o deixavam uma pilha de nervos, mas estava decidido a não pensar, por um breve momento. Deixou os arquivos em seu devido lugar, se armou de um guarda chuva, pois o céu acinzentado chorava suavemente; um casaco, e os documentos que precisava, nunca saía sem eles.
José foi a porta e, já fora de seu apartamento, desceu as escadas e ignorou o elevador, seguindo a forma ecológica que vivia, o que era alvo de atenção dos outros moradores. José não usava carro, não tinha um, dizia usufruir do transporte público mas, quase sempre, pela demora dos ônibus e o metrô lotado, utilizava de uma moto que recebera de presente dos pais, há alguns anos. Ali no corredor, observando o homem descer as escadas, uma, duas vizinhas acenaram; uma senhora já de idade, gentil, que se sentia como mãe do juiz, já que o via e conversavam desde que Montes entrara no apartamento, três anos atrás, e se mudara para aquele condomínio. Era uma senhora agradável, mas severa, a síndica do condomínio, e exigia de todos que transparecessem boas impressões do local e de si mesmos, a fim de mostrar classe para os futuros moradores. A outra vizinha era jovem, dois anos mais jovem que ele, uma entusiasta estudante da faculdade (cursava administração de empresas), mais desleixada e agitada que a senhora. De fato, ambas discutiam bastante, pois Charleen, a mais jovem e enérgica, queria ser como era, fazer o que queria quando queria, e a senhora excêntrica, por sua vez, queria mostrar uma imagem de vizinhança perfeita. Enfim, a garota, que vez ou outra puxava-o para conversar, dessa vez parecia mais que disposta a puxar papo com o homem.
Se aproximava, andando apressadamente em seus sapatos surrados, que ela parecia ter há anos. Seu rosto era oval e simpático, e ela estava sempre vestida daquela forma simples: Camisa, calça jeans e os cabelos arrumados. Bem, ao menos era sempre assim para as aulas, pois, quando ia se encontrar com um antigo amigo, ou frequentar algum evento, ela se transformava: De lagarta a borboleta, de menina a mulher. José não se importava, mas era obrigado a reparar, já que a moça sempre o chamava para conversar alegremente, quando isso acontecia, se perguntando se seu amado iria notar suas roupas, ou elogiar seus olhos. Por sinal, Montes a conhecia justamente por esse amado amigo. Jassen, alguém que já fora colega de república, e quase um amigo próximo, se Montes se deixasse aproximar. A garota, em seu pensamento livre e inocente como pássaro, achava que ambos eram amigos extremamente próximos e que conversavam diariamente, pois Jassen sempre tecia mil elogios ao colega, admirando a figura profissional de Montes e sua capacidade invejável de não se render.
José estava sem vontade alguma de um diálogo extenso, mas como já há um tempo não ouvia de Jassen, resolveu escutar a garota.
- Ah, José, 'tava esperando você descer!
- Já tão cedo, Charleen? Tem compromissos hoje?
- Tenho, incrível como sempre adivinha! Parabéns pelo seu novo cargo, Jassen ficou feliz quando soube! - A morena sorriu com os olhos, parecendo distante. E José se perguntou o porque de tanta alegria, se nem ao menos era uma conquista dela. Não entendia, pois sua mente trancava o sentimento de contentamento, e ele nunca se sentia satisfeito. Sentia como se fosse nada mais, nada menos que sua obrigação, mas novamente ignorou o que sentia. - Ele disse que vai te mandar mensagem depois.
- Tem falado com ele? Vai vê-lo e nem se arrumou? - Zombou, e viu ela, como sempre, rir suavemente.
- Ele disse que não ia trabalhar hoje, então vamos apenas caminhar antes das minhas aulas. Sabe como é, daí não preciso me arrumar tanto.
- Bom, bom... - O juiz suspirou, pensativo. - E quando vão assumir algo, Charleen?
- Ah, você sabe... - A garota suspirou, encarando o chão, desviando os olhos. - Quando eu e ele estivermos com dinheiro o bastante, ricos! Não dá pra começar qualquer coisa sem dinheiro.
- Vocês são parecidos mesmo... - Cruzou os braços, observando com cautela. Recebia essa resposta sempre que indagava e, em certo ponto, perguntava somente por curiosidade, um misto de interesse e dúvida: Até quando continuariam assim? Eram apaixonados desde que se conheciam, José lembrava bem. A cena, na república, de Jassen adentrando o quarto e parecendo avoado, distraído, absorto em algum pensamento distante, que na hora Montes entendeu. Sem nem o garoto precisar falar, José via que o amor entre os dois apenas crescia, assim como o número de fotos do jovem casal colocados em uma moldura, na cabeceira da cama de Jassen. Mesmo assim, eles se mantinham em um "chove não molha" intrigante, ambos esperando a riqueza para encontrar a felicidade (que habitava ao lado). Mas não cabia ao juiz julgar este caso então, como espectador e colega, apenas mantinha suas opiniões guardadas e um resquício de interesse na vida alheia. Ao menos esperava ser convidado para o casamento, se este chegasse. - Mande meus cumprimentos à ele.
- José, vocês dois deveriam se falar mais, também! - Charleen sorriu, zombeteira. - Não sou correio para enviar as mensagens.
A frase incomodou o interior de Montes. Constrangido, com um gesto falso e contido, o juiz fingiu verificar as horas em um relógio de pulso sem baterias. Despediu-se da garota e, abrindo um guarda chuva preto, saiu em direção à encharcada rua da cidade repleta de prédios, altos, majestosos e acinzentados. Naquele momento, toda a extensão da calçada harmonizava com o céu nublado, cinza e mais cinza, com a chuva caindo suave e deslizando, delicada e incessante, rua abaixo, onde ficava o comércio. Conforme desciam, ligeiras, as gotas de chuva, o juiz se perguntava se gostava do céu, daquele céu cinza, úmido, melancólico e... interessante. Seus olhos, verdes, enxergavam as nuvens cinzas, brancas, as escuras e as claras... inúmeras, passageiras, andando para algum lugar no céu que José não conseguiria enxergar. Caminhavam, as nuvens, dançavam ao vento, se desfaziam em pedaços, mas continuavam andando. Eram barradas por montanhas mas, quando isso acontecia, em algum tempo se transformavam, a chuva se formava, e elas desciam e tomavam as cidades. Suspirou, pensando.
"E quem mais não é assim, passageiro? Somos como nuvens, chovemos, nos fazemos e desfazemos, andamos rumo ao horizonte... mas não somos eternos. Somos nuvens, pacientes, esperando o vento nos levar para a frente...
... Mas parece não passar... é tão lento. Como o relacionamento de Jassen e Charleen. Como minha amizade com eles. Como as broncas da síndica. É tudo lento, parado, sem emoção, como a gota de chuva batendo em meu rosto..."
O pensamento o fez, sem consciência, retirar o guarda chuva da posição que o encobria. Sentindo algumas frias gotas descerem e escorregarem, causando arrepios e a sensação de que as roupas passaram a querer unir-se à pele, porém ele não se importava. Como uma nuvem, que passava, voava, percorrendo o céu, sentia-se caminhando rumo ao destino que queria, o desejo antigo cultivado desde a tenra idade, de sucesso, fama, justiça. Embora negasse com veemência o segundo item, o fundo de seu coração ansiosamente o desejava, buscava, e procurava ignora-lo na mesma intensidade, por falsa modéstia. Num lapso, percebendo que algumas pessoas passavam e encaravam-no com olhos julgadores, repreendedores e que diziam "oh, ele é louco.. parado nesta chuva". Voltou o guarda chuva para sua posição inicial, o corpo - já úmido pela chuva torrencial que não pararia tão cedo - encolhido e tensionado de vergonha e frio, pela brisa que passava. Não entendia como, em sua posição, deixara-se perambular, leve, por pensamentos inúteis, confusos, que não trariam nada senão reflexão. Sentia como se o julgamento para ele começara: Como ele, ali, parara no meio da chuva para pensar, se ninguém mais o fazia, em suas obrigações?
Para explicar esse pensamento, faz-se necessário que o narrador interfira, incomodando sua leitura. Por que o incomodo do nosso protagonista? Ora, essa é uma sociedade que julga e usa máscaras. Ninguém para para admirar a chuva, sentir o vento, observar uma flor ou acariciar um animal de rua. Quem seria louco de fazer tudo isso? A chuva é ácida, o vento é frio, a flor morre, e o animal pode estar contaminado com doenças. Essa característica de pensamento surgiu, em algum lugar. Por alguém. Não é dito que se deve viver sem pensar nas consequências, mas que, muitas vezes, deixamos o que é belo passar, e não admiramos. Chuvas suaves alimentam uma semente, que cresce, toma a terra, vira árvore, que dá frutas, sombra e ar puro. E então, passam por ela, se perguntam que grande edifício cinza poderia estar ali, e a árvore vira um incômodo.
Além deste, também existe um pensamento interior focado no exterior. Ambos são importantes, porém, para nosso José, o que ele vê? Vê que, ao se mostrar uma falha no exterior, todos irão julgar seu interior.
Dentro de cada pessoa, há um nó. Físico? Não, ele é invisível, individual, e suas extensões se apresentam em pequenos gestos, ações, palavras e, principalmente, falhas. O nó de José era justamente o que ele apresentou, e foi visto como falha: Era, ao mesmo tempo que sério e comprometido com um único ponto de vista mecânico, automático; um homem distraído, que gostava de apreciar a vista, sentir o vento, a chuva, a dor e o amor na mesma intensidade, pois sabia que a vida não traria somente flores, pois com elas viriam também alguns espinhos. ENTRETANTO...
Essa é uma sociedade dos opostos.
Ou você é feliz e alegre todas as horas de todos os dias...
Ou você é alguém deprimido e triste...
Todas as horas de todos os dias.
Não é permitido celebrar a alegria após chorar uma noite, pois todos têm de manter seus papéis, antes das cortinas fecharem. A extensão desse pensamento vai além das emoções, atinge as ações, os medos. Ou você luta pelo que consideram certo, concordando com tudo, ou está contra todos. Para subir na vida, ganhar dinheiro e sucesso, muitos se vendem a essa narrativa, abraçando e engolindo sem questionar tudo que é apresentado, agindo como a multidão, julgando e condenando com ela. Por alguns minutos, José foi o "Homem doido" do meio da rua, pois, por um momento, deixou seu estranho 'erro' aparecer, mesmo que para ele tenha sido bom e apropriado, parar para refletir. Ele não devia refletir, pois era José Montes: O advogado sério e focado, que fazia o ordenado sem pensar duas vezes.
Voltando ao protagonista...
Agradeceu pelo fato de terem sido poucos os minutos em que ele ficou parado, encarando o céu. Mas estava encharcado. Sentiu vergonha, uma timidez absurda, um turbilhão de sentimentos que, mesmo o deixando envergonhado, pareciam dar mais sentido. Aproveitando que estava perto de casa, voltou a passos rápidos, ininterruptos, o som dos sapatos molhados pisando no corredor o seguia, assombrava. José era metódico, um homem sério, como diziam as descrições que ele tanto se preocupava em seguir. Não entendia a vergonha, e a vontade de rir e sorrir que sentia. Como se um único momento bastasse para o despertar, via que seu coração não era rocha, mas carne. Que não queria somente conquistar, mas sorrir para as conquistas. Novamente avoado, mal subiu as escadas, sua vizinha idosa apareceu novamente, com um vestido de cor apagada, um rosto sério e um saco de pães.
- Ora, José, não esperava que, saindo com guarda chuva, logo você iria se molhar desse jeito. - Num tom de represália e preocupação, ela bronqueava, ralhando com o homem, que nada respondia, preocupando-se com o que ela diria a terceiros sobre isso. - Pense na sua imagem, o que os homens vão pensar quando, no auge da sua carreira, revelarem uma foto sua parado como um lunático, no meio da rua. Os futuros compradores, a vizinhança vai pensar que abrigamos um louco.
- Dona Lisa... - Ele suspirou. - Acho que ninguém teria interesse em tirar uma foto de um homem parado na chuva.. mas tem razão, irei cuidar melhor da minha imagem. Com licença..
Afastou-se com pressa, procurando evitar mais um sermão demorado. Estranhou, nunca havia feito isso desde a infância, quando tentava escapar dos sermões do pai. Ali, mesmo o mais sério e calculista juiz sentia uma criança sorrir e correr, querendo brincar. Apressado, abriu a porta do apartamento sem cuidado, rápido e temeroso. A fechou, com força, e sentiu o frio da chuva em seus ossos e, sem se importar, sentou no sofá, passando o frio do corpo para o acolchoado, o coração estava acelerado e a feição, agora preocupada, se demonstrada assustadora. Havia, há alguns dias, percebido esse estranho comportamento de parar e observar as coisas, de sentir e sorrir. Uniu as mãos, e nelas apoiou a cabeça pesada, lotada de pensamentos e perguntas, que foram pouco a pouco sendo filtradas, analisadas, correndo para lá e para cá, de um ponto a outro de sua mente, correndo estradas, cortando caminhos, buscando palavras solitárias para formar respostas, sanando as dúvidas. Percebeu, nos momentos em que, avoado, desconcentrava-se e dava-se por si somente quando, muitos minutos depois, percebia que perdera um compromisso ou não havia feito algo que desejava. Do que lembrava, isso começara depois de ter passado na prova necessária para se tornar juiz.
Algo naquele dia o transformou. O que era incomum, já que José pouco se deixava afetar, era frio, controlado, não demonstrava o que sentia. Mas o coração palpitava, feliz.
...Feliz...
Estava feliz. Havia passado na prova que tanto queria, finalmente! Depois de anos e anos, estudos, dificuldades, medos e anseios. Estava feliz, avoado, como quando há 18 anos atrás, uma criança no auge de seus tão poucos e tão ricos 7 anos, contente e distraída em suas aulas, pensando sobre o passarinho que havia voado para perto de si.
"Um motivo tão pequeno, que me custou dias o comemorando... e hoje, um motivo tão grande, que levei dias para sentir que sentia."
Naquele instante, sentia alegria. Estava feliz, mas confuso, pois essa demorara a vir, usualmente não tinha motivos para a sentir, mas ali estava ela. O sentimento, o contentamento preencheu seu coração. O homem se dirigiu à varanda pequena, uma sacada entre tantas, sorrindo, e abriu os braços, sentindo a chuva molhá-lo de novo. Mas, logo, o sol apareceu. E ali, o homem doido, comemorando com os braços abertos o arco íris no horizonte, não se importava com qualquer câmera que pudesse flagrá-lo.