A Cova é Minha!
Maycon Guedes
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 25/08/21 17:30
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 11min a 15min
Apreciadores: 6
Comentários: 3
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Palavras: 1843
Não recomendado para menores de dezesseis anos

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Capítulo Único A Cova é Minha!

- Ei, você! Sai da minha cova!

- Hã!? Mas o que…

- A cova é minha, vamos, saia!

- Onde estou? Não enxergo nada.

- Anda logo, idiota, pula fora daí! Essa cova é minha!

- Por favor, pode me dizer onde estou e quem é que está falando comigo?

- Já disse, você está na minha cova! E eu sou o dono dela.

- Como assim, na sua cova? Mas que droga, eu não sinto o meu corpo.

- Como você é burro! Você está morto, palhaço!

- Morto? Eu? Quem é você? Apareça!

- Escuta aqui, hoje eu tô um nojo, não vou perder meu tempo falando com você, vamos, cai fora daí, sai da minha cova, agora!

- Tá, então me ajuda. Acende essa luz! Como que eu saio daqui?

- E eu vou lá saber? Eu já teria te chutado daí faz tempo! Não teria ficado horas aqui embaixo da terra esperando a donzela acordar.

- Horas?! Há quanto tempo estou aqui?

- Tempo o bastante para eu enjoar da sua cara amassada!

- Foi você que me colocou aqui? Maldito!

- Calma lá, meu cumpade. Eu jamais colocaria você na minha cova! Ela é minha! Só Minha! Escuta aqui, você está morto! Tá entendendo? Te enterraram, mortinho da Silva, só o bagaço. Agora sai da minha cova!

- Eu adoraria sair daqui, mas não posso! E que história é essa de que estou morto?!

- Sim, você está morto! E eu também estou, e essa cova era minha antes de te enterrarem aí.

- Tá certo! Cansei dessa palhaçada. Eu quero sair daqui!

- Escuta bem o que eu vou te dizer. Eu estava descansando em paz, curtindo a minha morte até você aparecer. Tiraram os meus restos mortais desta cova e eu fui transformado em uma espécie de espírito, acredito eu, e agora eu estou preso aqui no cemitério. Eu posso vagar por aí sem que ninguém me veja; posso atravessar paredes, pessoas ou qualquer objeto sólido, inclusive, posso descer aqui embaixo da terra, a sete palmos, que é onde eu estou agora enquanto falo com você.

- Estou realmente morto? Dentro de um caixão?

- Mas será possível? Você é morto, não surdo! É o que eu estou te dizendo faz tempo, vê se me ouve!

- Socorro! Socorro!

- Ninguém pode te ouvir, imbecil; ninguém além de mim.

- Por favor, me explica como tudo isso é possível, estou enlouquecendo!

- Pois então, eu acredito que essa cova é mágica, que esse pedaço de terra é sagrado, por isso continuamos conscientes mesmo depois de mortos, apesar de não conseguirmos nos mover ou respirar. Acho que essa cova armazena a nossa alma, mas o corpo já era, logo você vai ouvir os vermes te devorando.

- Então, isso é morrer? Ficamos conscientes dentro de um caixão, na escuridão, sem se mover e conversando com os mortos? Por que você quer estar no meu lugar? Você é maluco? Enquanto estou aqui apodrecendo, querendo sair, você tem a opção de vagar pelo cemitério, ver a luz do dia, ver as pessoas.

- Vem aqui ficar no meu lugar, seu desgraçado! Você acha que é fácil ficar vagando por aí? É um esforço danado! É cansativo! É preciso força e técnica para manter o corpo flutuando. Levei muito tempo para aprender isso! Quando tudo isso começou eu desci direto pra debaixo da terra e não parava de cair; caí tão fundo, mas tão fundo que levei horas pra controlar o meu corpo e poder subir de volta à superfície. Agora, eu não tenho um segundo de paz, se paro por um instante o meu corpo começa a descer, e se eu descer muito fundo posso ter que passar uma eternidade procurando o caminho de volta. Você não tem noção de como é extenso lá embaixo, parece não ter fim!

- Nossa! Não imaginava que era tão ruim assim. Olha, sei que está nervoso mas, eu não posso fazer nada, eu morri e fui enterrado aqui, não há nada que eu possa fazer.

- Tá, tá, já entendi, só preciso achar um jeito de te tirar daí. Quer um pouco de luz?

- Misericórdia! Não faz mais isso!

- Ah! ah! ah! Assustei você?

- Mas é claro, eu não esperava que fosse enfiar essa cara iluminada dentro do meu caixão.

- Ora, eu só quis me apresentar; sou tão feio assim? Devia ver essa sua cara amassada.

- Maluco! Faz alguns minutos que só enxergo a escuridão, e de repente me deparo com esse seu rosto cheio de brilho, você me assustou; e que brilho é esse? Você é mesmo um espírito?

- Eu não sei, depois que fui expulso da minha cova fiquei assim, com esse brilho azulado por todo o corpo; coisa ridícula, pareço uma fada zumbi.

- Parece mesmo. Me responde uma coisa, por quanto tempo você ficou enterrado aqui?

- Alguns meses.

- É… até que você ficou bem conservado; seu corpo não sofreu tanto durante esse tempo.

- Maneiro, né? Olha o meu antebraço, não se assuste, tô colocando ele dentro do seu caixão.

- Uau! Realmente, está inteirinho, nem parece que é de um cadáver.

- Pois é; e não é só o meu rosto e meu antebraço que ficou conservado, olha só isso aqui.

- Credo, que nojento! Tira isso daqui, seu pervertido!

- Ah! ah! ah! Ficou ou não ficou conservado?

- Você é muito idiota! Por que não vai dar uma volta e me deixa em paz?

- É o que eu vou fazer, dar uma volta e pensar em como te tirar daí, cara amassada.

- Espera! Por que fica me chamando de cara amassada? Eu não tenho cara amassada.

- Você não se lembra como morreu, né? Deve ter sido feio, hein?

- Calma aí, eu lembro que estava pilotando minha moto e… bom, eu não me lembro de mais nada.

- Aí está, você sofreu um acidente de moto. Deve ter batido a cara em algum lugar, e deve ter sido uma bela de uma pancada pra ficar com o rosto desse jeito.

- Estou tão feio assim?

- Meu cumpade, se fosse eu aí no seu lugar e você enfiasse essa sua cara dentro do meu caixão eu iria ressuscitar de tanto susto.

- E você, espertão? Morreu como?

- Não quero falar sobre isso. Continuamos nossa conversa depois. Já anoiteceu e eu estou indo ver se algum gótico invadiu o cemitério; preciso assombrar alguém, me divertir um pouco e sair desse tédio.

***

- Ei! Cumpade, ainda está aí? Você não faz ideia da loucura que eu acabei de ver lá em cima.

- O que é? Vamos, desembucha!

- Um doido pulou o muro do cemitério, desenterrou um corpo e começou a dançar pelas sepulturas segurando o presuntão. Foi uma loucura! Você devia ter visto que incrível! Mas o coveiro Tavares apareceu e acabou com toda a diversão; velho chato!

- O coveiro Tavares ainda está vivo? Quantos anos aquela múmia tem? O último velório que eu estive presente foi há nove anos e aquele cachaceiro já estava um bagaço.

- Bagaço é pouco!

- Era difícil distinguir quem era o defunto, o que estava dentro do caixão ou o que cavava a sepultura.

- Exato! Ah! ah! ah! E você sabia que Michele é um nome masculino na Itália?

- Não sabia, e o que isso tem a ver?.

- Escuta essa, um italiano que vivia aqui na cidade morreu e foi enterrado neste cemitério. Naquele dia houve dois velórios, e o coveiro Tavares ficou encarregado de construir duas lápides. Ao fim do velório de Michele, o italiano, levaram seu caixão até a sepultura onde ele seria enterrado; chegando lá, uma surpresa! Ah! ah! Era uma cova minúscula, a lápide era cor-de-rosa e com enfeites de ursinhos. O Velhote bebaço, como de costume, confundiu o nome do italiano com o nome de uma garotinha que seria enterrada naquele mesmo dia; dá pra acreditar nisso?

- Minha Nossa Senhora! É cada história que eu escuto desse coveiro.

- Eu também, mas ele é menos estranho que a antiga coveira.

- Coveira? Eu nunca vi uma coveira.

- Tá de brincadeira?! São tantas. Mas a que trabalhou aqui deu o que falar.

- Me conta!

- Calma lá, não sou contador de histórias, e não pense que eu já me esqueci que você invadiu a minha cova! Não consigo entender por que enterraram você numa cova que já tinha dono. Ou o coveiro Tavares estava doidão e fez mais uma tolice, ou você sabia do segredo dessa cova, sabia que poderia continuar consciente mesmo depois de morto e deu um jeito de ser enterrado aqui; e talvez você saiba de mais algum segredo. Vamos! Me diga! O que mais você sabe sobre essa cova?

- Já vai começar? Eu não sei o que eu estou fazendo aqui nessa porcaria de cova. A culpa de tudo isso deve ser só sua! O que você aprontou em vida, hein? Alguma coisa você fez e agora está amaldiçoado, pois isso aqui é uma maldição! O que você está escondendo? Você nem quis me dizer como morreu.

- Eu… eu… eu matei uma pessoa! Tá certo? Escondi o corpo no depósito de areia que eu trabalhava; depois eu tive que comprar a parte da areia onde o corpo estava escondido para ninguém o encontrar, levei tudo pra casa e despejei no meu quintal. É uma longa história mas, um espírito vingativo me assombrou por alguns dias e então eu acordei aqui. Não sei como foi a minha morte, mas agradeço por ter morrido porque eu não aguentava mais aquela assombração infernizando a minha vida.

- Que ótimo! Divido a cova com um assassino, só faltava essa.

- Divide? A cova é minha! Não estou dividindo nada com você! Ladrão de covas, se sou assassino você é um ladrão!

- Cala a sua boca, seu imundo! Assassino!

- Sai da minha cova!

- Imundo! Assassino!

- A cova é minha! A cova é minha! A co…

- O que está acontecendo, que barulho é esse?

- Xiii… pelo jeito vão te tirar daqui. Tá ouvindo? Estão cavando. Vou subir e dar uma olhada.

- Finalmente o coveiro Tavares percebeu que me enterrou no lugar errado. É isso aí! Me tira daqui, seu velho!

- Tenho uma má notícia. Não estão te tirando daqui, estão te substituindo.

- Hã?!

- Vão enterrar outra pessoa no seu lugar, como fizeram comigo. e tem mais, a pessoa que está dentro do caixão é o coveiro Tavares; o velhote finalmente bateu as botas.

- Tanto faz, me tirando daqui é o que importa. Adeus, otário! Isso, me puxem, vamos, mais rápido, mais rápido, não vejo a hora de sair daqui!

***

- Fala, meu cumpade! Sentiu a minha falta?

- Como isso é possível? Não! Não!

- Agora você está igualzinho a mim. Não desequilibra, se não você começa a descer pra debaixo da terra e eu não vou te buscar.

- Eu virei um espírito igual a você? Não acredito nisso. Eu quero voltar pra minha cova, quero a minha cova de volta.

- Sua não, eu já disse centenas de vezes que a cova é minha. Agora você entende que era melhor estar deitado lá, né?

- Pois é. Temos que tirar o velho Tavares da nossa cova.

- Vamos lá, ele já deve estar acordado. Eu fico com a orelha esquerda e você com a outra, vamos atormentá-lo e expulsá-lo.

- Ok!

- Vamos lá, no três.

- Um!

- Dois!

- Três!

- EI, TAVARES, A COVA É NOSSA!!!

❖❖❖
Apreciadores (6)
Comentários (3)
Comentário Favorito
Postado 13/09/21 00:43

Socorrooo!! Que texto maravilhoso! Eu não conseguia parar de rir. Você construiu tão bem os diálogos, que deu para visualizar direitinho, mesmo sem ter descrição de cena. Eu simplesmente AMEI!

Vou te dizer, o primeiro dono da cova teve uma ótima ideia ao comprar a areia, mas vai ver tinha outro corpo nela ou algo desse tipo e o "coitado" acabou sendo atormentado e indo parar sete palmos abaixo do chão.

O cara da moto certamente estava correndo. Moto nem é coisa desse mundo. Kpta criou para ferrar geral mesmo. Bote fé!

A pergunta que fica é: Como o coveiro, que praticamente fundou a civilização, acabou adquirindo um lugar na cova...

Eu voto por uma continuação! u_u

Muito bom mesmo, parabéns!

Postado 22/09/21 10:06

hahaha, adorei. Então, estou criando 13 contos que se conectam. Tudo será explicado aos poucos, e esse vai ter continuação sim, estão pedindo bastante por uma continuação :)

Postado 26/08/21 22:59

Agora a cova é "nossa"? HQAHAHAHHAHAHHAHHA~

Eu adorei a forma como escreveu essa obra somente com falas dos personagem, lembrando muito um roteiro de teatro e deixando a imaginação do leitor livre para imaginar a situação toda.

Simplesmente uma experiência incrível, meus parabéns pois está obra está muito bem escrita e desenvolvida!

Agradeço por compartilhar sua obra, foi um prazer ler e eu adorei~

Assinado uma pequena vampira, <3

Postado 30/08/21 12:53

Muito obrigado pelo comentário. Fico feliz que tenha gostado :)

Postado 05/10/21 11:04

Tanta briga pela cova pra no fim se unirem pra derrotar o inimigo maior kkkkkkk essa cova cada vez mais movimentada!

Texto muito divertido, parabéns!

Postado 11/10/21 14:19

hahaha, muito obrigado. Em breve vou escrever a continuação, já que pediram tanto :)