Um suspiro mudo. O som (ou a falta deste) ecoou pela – imaginária -bolha transparente onde estava o garoto cansado. Cerca de 19 anos, magro, pálido, os cabelos longos, sujos e desarrumados como se nunca tivessem visto pente na vida; os olhos cansados e negros, pretos como jabuticabas sem brilho. Não falava, gesticulava, não sentia permissão para falar. De dentro de sua bolha, encarava apenas o que lhe interessava; movia-se limitadamente, enclausurado, de certa forma, em si próprio. Moveu-se delicadamente, ajustando-se sentado no piso transparente de sua bolha para ficar mais confortável. Os tapetes desordenados de sua sala eram fofos e confortáveis, mas nunca o suficiente.
Uma televisão pequena, que gerava o único brilho além dos naquele lugar, gritava tragédias, desgraças, guerras e sangue inocente sendo derramado, músicas deprimentes em um rádio, pessoas brigando e se xingando na internet, com um computador preto ao seu lado exibindo todas as ofensas proferidas por usuários anônimos, com apelidos controversos ao que escreviam em suas redes sociais. O garoto, assustado, não deixava quase nenhum comentário, a não ser quando lhe pediam e ele, em troca de elogios e algum traço mínimo de gentileza - não ser xingado – respondia o que todos queriam ouvir (ou melhor, ler): Respostas genéricas, concordando com tudo o que lhe diziam as massas, o que a multidão efervescida de ódio queria escutar. Era assim que o jovem se comunicava, era assim que vivia.
Dia e noite angustiado, premeditando tragédias e acreditando em cada falsa notícia que lia, acolhendo cada angústia em seu peito magro, sentindo o desprazer de viver a cada dia mais, pois via uma completa imperfeição no mundo. Entretanto, não sentia vontade de sair de sua bolha, pois esperava que, ao sair, veria sangue e tripas, veria o horror e toda a angústia que o mundo guardava para ele, e que as pessoas na mesma bolha o alertavam. Observava as mesmas pessoas, todos os dias, todas as horas do nascer ao pôr do sol. Movia-se preguiçosamente por todo o pequeno espaço que possuía, o espaço de si mesmo. A restrita mente do desanimado rapaz ecoava em pensamentos ruins, em momentos desagradáveis que já havia vivido, em desastres e tragédias.
Já não mais separava pesadelos da realidade, mantendo-se a todo momento alerta e esperando alguma tragédia ocorrer na sua frente. Aguardava morte, rancor, tudo que havia de mal no mundo. Tenso, encolhia-se, reduzindo mente e pensamento a poeira suja, sentindo o corpo fraco doer após tantas horas curvado. Enfim, vivia desta forma em uma bolha, uma bolha invisível aos olhos, mas que bloqueava todos seus sentimentos, visão e audição, fazendo-o ver e ouvir apenas o que lhe era mandado, sem buscar novas informações e coisas. Movia-se conforme ordenavam, falava o que pediam, vivia de uma maneira que não ofendesse às pessoas que viviam em bolhas semelhantes à sua. Não sabia como; mas eram numerosas e sabiam tudo o que ele fazia.
Suspirou, mantendo-se parado no lugar como fazia, todos os dias. A televisão anunciava atrocidades tremendas, mortes e crimes horrendos. O rapaz se encolheu mais, tremendo, sentia uma angústia cortar a carne, rasgar o coração; fazendo-o sentir dor, seu interior queimava com o ardor do medo, da tristeza, da culpa. Que culpa? Culpa de que? Um coração tão jovem não suportava mais aquela pressão, somada com as dores infinitas em seu corpo curvado. Levantou-se, com lentidão, fitando o mundo lá fora, distraindo-se com cada detalhe daquele misterioso, estranho e previamente negativo local. Balbuciou um som indistinguível, incompreensível. O garoto mantinha os olhos fixos no encantador e temido horizonte, com interesse, medo, com pavor e uma sombra de alegria, uma sombra ínfima, minúscula, mas existente. Era o que o mantinha vivo, em meio às trevas nebulosas que embaçavam seu olhar, tornavam cada dia ensolarado escuro.
Saindo de perto de sua janela tão maior quanto a que observava dia e noite sem descanso, resolveu caminhar pela cidade grande, apenas para observar e alongar o corpo cansado. Desceu escadas, caminhou por calçadas sujas e cinzas como fumaça poluída.
O horizonte parecia sem cor, mesmo que fosse cinco e pouco da tarde, e isso o amedrontava. Ao seu redor, via mais pessoas presas em bolhas enquanto caminhavam sobre um chão cinza, em uma cidade acinzentada em tons escuros. O céu era nublado, o cimento predominava, e as poucas plantas na calçada eram pisoteadas e esmagadas a todo tempo, e logo deixavam de ser verdes. Havia algumas gotas caindo no chão escuro, junto a trovejadas e alguns raios longínquos. O rapaz suspirou, e começou a correr, temendo se molhar pela chuva que gradativamente caía, aumentando a velocidade dos pingos, do vento, causando medo em todos que ali passavam. Muitas pessoas corriam, e o rapaz desanimado estava na direção oposta, correndo contra a correnteza desenfreada e desesperada. Se espremia com sua magreza entre as centenas de pessoas, os olhos arregalados e tensos, os ombros se encolhiam e machucavam-se no processo. Corria, balbuciando, com pequenas dores e se esquivando com destreza de cada um que ali estava, temeroso; até tropeçar e ceder ao chão, encolhendo-se enquanto esperava uma multidão tumultuosa passar, escutando os passos trovejando ao seu lado, alguns por pouco lhe acertando. Seu celular caíra no chão, e pisaram-lhe, quebrando o objeto. Mas sobre isso, o rapaz apenas se deu conta ao abrir novamente com temor seus olhos apagados, molhados de lágrimas e chuva.
Com os olhos semicerrados, deu-se conta de que estava em uma rua vazia e encharcada, ao lado de um ponto de ônibus azul. Seu celular estava em pedaços ao seu lado, e a chuva parecia doer devido aos inúmeros machucados pelo seu corpo que, acertados pelas gostas incessantes, ardiam como chamas. O rapaz se levantou, coçando a garganta, cansado. Observou a calçada acinzentada e suja, pegando os cacos de seu aparelho telefônico, observando-o com certa tristeza nos olhos, o sentimento de perda pessoal por um objeto material e efêmero. Talvez pelo fato de que não havia previsão de substituição... mas ah, o objeto efêmero nunca tinha parecido fazer tanta falta. Como iria saber das mais tragédias com aquela facilidade? Como iria ter, novamente, um portal para reclamar em qualquer lugar, quando e como quisesse? O que iam ser dos cancelamentos sem ele cooperando, destilando também ódio?
Mesmo que aquele ódio também o machucasse, o cultivava. Era o “ódio da justiça”, era a única forma de ajudar, ou sentir que fazia parte de algo. Respirou profundamente, lamentando enquanto colocava os cacos em um bolso de sua larga jaqueta azul.
Pensou em voltar a admirar seu melancólico horizonte, enquanto erguia a cabeça com os olhos rumo a este, já que não tinha mais nada para olhar. Porém...
Esfregou os olhos.
Respirou fundo, relaxando o peito estufado de espanto.
Sua garganta, antes tampada e empoeirada após tanto tempo sem falar, se destampou, e um ruído que soava como uma sílaba malfeita; rouca e desgastada, incompreensível.
– Ah! - Conseguiu soltar, ainda que com uma desconfortável dor percorrendo o interior de sua garganta, fazendo- se curvar novamente, tremendo, os olhos arregalados de espanto e agonia, limpos pela chuva que caíra neles. Levantou a cabeça mais uma vez. Em silêncio. O vento vacilava, tremia seus cabelos espantosos, variava sua temperatura com ar frio e movia um pedaço de papel no horizonte.
Ah... o horizonte. Havia mudado sua antes melancolia cinzenta, transformando-se em cores vibrantes; o horizonte gritava em amarelo, vermelho, laranja, um leve roxo e, por fim, o azul escuro repleto de pontos brancos. Lindos e brilhantes pontos brancos, distantes! E tão perto. E tão longe. O garoto olhou aqueles pontos brancos, com interesse. Seus olhos adquiriram o brilho do reflexo brilhante daqueles pontos longínquos, e, encantado, lembrou-se que já havia visto uma foto daquilo; era uma estrela.
– Estrela... - balbuciou, sem algum som sair de sua boca. Não imaginava que eram tão belas, tão brilhantes as estrelas que, aos olhos de uma câmera, deixavam seu brilho belo de lado. O rapaz pareceu se perder em si, deixando toda e qualquer desesperança de lado por alguns instantes. As estrelas ali estavam, como pequenos sorrisos no céu, que dançavam paradas, se estabilizando e conduzindo a noite, fazendo par com a lua.
Algumas pessoas voltaram a transitar pela rua, passado a chuva forte. O sol lentamente se derretia no horizonte, belo, enorme e calmo; enquanto elas andavam, apressadas, moviam-se conforme uma música rápida e desesperada, uma valsa inconsequente; um vai e vem, para lá e para cá conforme um ritmo distorcido e, tão rotineiro, que nem mais precisavam pensar para fazê-lo. Nosso protagonista, que antes caminhava no mesmo ritmo (e como andava! Porém, como protagonista, é por suas mudanças que vamos contar a história.); agora atrapalhava a valsa, fazendo algumas pessoas se sentirem incomodadas por sua presença distraída. Uma nota desajustada em um papel gasto, que mesmo os melhores cantores falhariam em repetir, todos os dias.
Decidiu andar, ainda que contra a corrente. Movia-se lento, cambaleante. No rosto, uma feição desgostosa, um olhar inconformado, reparava até na poeira do chão, pensativo. O ar esfriava, e não devia passar das seis da tarde. Contudo, o rapaz não sentia frio. Perguntava-se a quanto tempo não via o pôr do sol com seus próprios olhos, com calma e sem ter seu celular ao seu lado. Seus olhos raramente desviavam-se da pequena tela iluminada, e com isso ele estava sempre em sua bolha, sem reparar na leveza dos aspectos da vida, sem todas as informações e medos que seu celular proporcionava. Seu mundo soava vazio, mas preenchido por um estranho sentimento. Um sentimento um tanto quanto alegre para um peito tão entristecido.
Fora de sua bolha, de seus medos enclausurados, via quão grande era a cidade em que se encontrava. Cinzenta, preenchida por numerosos prédios que abrigavam quantas pessoas fosse possível, e até mais. Refletia, então, por quanto valiam seus medos diante da grandeza da cidade, da magnitude do céu, que com tanta facilidade produzia gotas de chuva que molhavam mais que suas lágrimas. O quão grande e perfeito o mundo funcionava, parecendo tão alheio e distante aos seus medos, como se as discussões e brigas que assistisse todo dia não interferissem no som do vento. O sol continuava a brilhar quando estava com medo, e os pássaros ainda cantavam quando se recolhia, com medo, em um profundo silêncio. O mundo funcionava além de seus conhecimentos.
Uma pequena epifania as vezes é o suficiente para tranquilizar uma mente inquieta. O rapaz, agora com um sorriso tímido que desabrochava como broto de flor em seus lábios, percebia uma pequena, gostosa verdade. Ainda assim, sentia medo, pois aquela verdade, apesar de pequena, era também enorme. Via, ao seu redor, inúmeras pessoas comandadas por diferentes bolhas, e tinha medo delas. Afinal, em sua mente, elas ainda podiam saber tudo o que ele fazia, mesmo sem ele entender como. Era um mistério. Mas elas estavam ali, então decidiu observá-las, tentando esquecer o medo que sentia.
“São pessoas... como eu” Pensou, com um olhar singelo e simples, como quem reconhecia o terreno em que adentrava. Caminhando em frente, interessado em cada um, focou em uma garota específica: morena, os cabelos presos desajeitadamente com um elástico e os olhos esverdeados e zangados. Ela estava de braços cruzados, encostada em uma parede de um famoso cartório da cidade, onde na entrada se concentravam inúmeras pessoas, repórteres, advogados e a garota, principalmente. Ela parou de fumar, observando atentamente o ingênuo rapaz que a fitava, com um olhar perdido. A moça, por fim, bufou, fabricando uma ameaça em sua mente nublada.
– O que perdeu aqui, moleque? Espera que eu vá aí e te dê um pouco do que ganhei? Veio aqui entrevistar o ex-réu? – Ela se afastou da parede, irritadiça. – É repórter?
– Não, moça, eu 'tava só andando, juro. Não perdi nada... – sentiu seu corpo tremer e a respiração vacilar. A mulher, tão acusadora, parecia exatamente com seus pesadelos. Por pouco, achou que ela iria até ele para dar um murro.
– Não acredito. - Ela murmurou, soprando para cima a fumaça do cigarro. - Esse tipo de moleque sempre vem aqui, enxerido...
– O que aconteceu aqui? Eu nem sei...
– Ainda por cima, é desavisado. Ai, ó, 'tá vendo aquela moça ali? Aquela loira, burra como porta? - Vendo que o rapaz parecia estar olhando de forma desatenta, ela suspirou pesadamente, aborrecida. - Aquela que a polícia 'tá levando, moleque. Isso, aquela ali. Acabou de perder um julgamento, acusando um cara de roubar e tentar matar ela. Sabe como é. Um suborno ali, outro aqui, e não fui por cana também. Mas perdi todo o dinheiro que ela tinha me pagado.
– Ela te pagou? Para que? - Surpreso, parecia não acreditar que pessoas ali mesmo, na rua, cometessem crimes.
– Lógico que pra ser testemunha, pra que mais? Não sou advogada. Agora, sai daqui, viu, que moleque vai pra cama cedo.
Ela se retirou, deixando para trás um cigarro gasto e um insuportável cheiro de fumaça. O rapaz, perdido, parecia se perguntar sobre quando tudo havia chegado naquele ponto. O mundo seguia seu curso, sem depender das pessoas para o nascer e pôr do sol. Porém, as pessoas, imperfeitamente, seguiam seus caminhos, indo contra ou a favor das leis. Refletia, parado, observando a calçada cheia de pessoas. Ali, olhando atentamente para os rostos, via diversas pessoas; diversas histórias se cruzando e entrecruzando, de forma tão bela que pareciam estar destinadas àquele momento de alegria e tristeza. Via pessoas emocionadas chorarem e sorrirem, pessoas irritadas esbravejarem, pedindo inutilmente por mais uma, cinco oportunidades para vencerem. Homens feios e gentis, belos e maldosos; mulheres caridosas e frias, quentes e secas. Via, ali, uma imensidão de imperfeições que necessitavam umas das outras, e de algo mais, de Alguém mais. Achava que era lenda, mito, mas todos eram imperfeitos.
Tão imperfeitos, que em suas imperfeições mostravam-se humanos. Ao contrário do que sua bolha firmava, cravando em seu peito, não existiam humanos perfeitos, não se devia defender somente um lado e cravar-se somente em uma posição. Talvez a moça tivesse motivos para mentir, talvez não. Numa situação tão complexa, por que olhar apenas um lado? Sua mente inquieta, empolgada, escavava esses pensamentos mais fundo, procurando mais sentido. Sentiu, em súbito, uma intensa vontade, um desejo de alcançar equilíbrio, entendimento. Correu, com todas as forças que suas pernas permitiam, trombou com um homem de terno que ia atravessar a rua, se desculpou e avançou. Um erro, mas pessoas são feitas de erros e acertos. Sorriu, pois, se errou, acertaria nas próximas.
Avançou, a velocidade fazia seus cabelos dançarem ao vento suave e gelado. Cruzou com um teatro que tocava uma melancólica música, feita de incontáveis instrumentos, e sorriu, pois, tal música, mesmo triste, proporcionaria alegria em algum momento. Talvez fosse Macbeth, uma peça sobre morte e vida, ou um romance como O Lago dos Cisnes, ou talvez fosse apenas um devaneio de um músico tão empolgado quanto ele.
Correndo, ele passou a esperar e a não exigir de si perfeição, movendo-se conforma a valsa da vida o mandava seguir. Passou atentamente por um homem que vendia relógios, inúmeros relógios, e por outro tão discreto que poucos o notariam se passasse depressa. Mas, sendo como eram, todos ali eram o que são: Homens, humanidade.
Passou-se um tempo desde que corria, e sentia uma energia alegre circular seu corpo, como há tempos não sentia. Correr fazia bem. Seu corpo, antes parado, agora se movimentava e sentia uma estranha alegria e dor do exercício. Passou por um hospital, e viu uma janela pelo segundo andar, com um homem apoiado nela. Simpático, ele sorria, e parecia feliz de ver um jovem correndo.
Acenaram um para o outro, e o menino seguiu. Talvez nunca mais se vissem em vida, mas seu sorriso feliz o acompanharia como uma memória, por muito tempo.
Parou, em uma praça simples, com uma igreja acolhedora ao seu centro. As pedras que faziam a calçada lhe pareciam tão bem colocadas que faziam-no sentir aconchego, carinho. Alguém se esforçou para aquilo. Alguém plantou aquelas árvores. Perto da praça, havia um bosque aberto. Ali, flores perfumavam o ar e, apesar dos resquícios de uma chuva que há pouco passara, alguns pequenos insetos voavam em harmonia. O rapaz sentou-se num banco, observando o anoitecer suave, com a noite espalhando, uma a uma, as estrelas tão numerosas quanto os sonhos que o garoto imaginava sobre cada pessoa. Os pontos brilhantes no céu, antes tão espantosos, eram agora um sinal de paz e equilíbrio, pois ele se sentia livre, enfim; livre do que o prendia e acorrentava à perfeição.
Não era perfeito, mas se esforçava, era livre, solto como pássaro, e somente pessoas livres de coração e alma admiravam, naquela cidade, as estrelas.