Sua voz parecia me chamar de dentro das trevas mais profundas, mas eu sabia exatamente o que faria caso saísse do lugar onde pertencia: dos braços da morte. Não sentia mais o sangue fresco há séculos — ou assim presumia, pois no exício se perde noção de tempo, espaço e da própria vida. Porém era impossível não me sentir atraída pelo som do choro infantil que saía de sua garganta, era quase como se você pudesse fazer milagres, mas te garanto que fazer ressurgir a um monstro não era bem a sua pretensão.
O ano era 1218, Inglaterra. Você vivia trancafiada dentro de um castelo impenetrável, menos para mim. Era alta madrugada, não havia ninguém por perto, sua ama¹ estava adormecida em algum quarto no andar de baixo, e aquela era a minha oportunidade. O instinto animal dizia que deveria matá-la e finalmente me alimentar de sua pequena alma em ascensão, mas havia algo que latejava dentro de mim dizendo que não poderia, nem mesmo se quisesse.
Subi em sua cama, vendo a lua iluminar tua pele macia, teu peito subindo e descendo freneticamente; as presas querendo saltar para fora, mas ao contrário do que se esperava de uma criatura como eu, apenas te coloquei em meus gélidos braços e lhe consolei. Você não me conhecia — assim como mal se lembrava de sua mãe —, mas, pela primeira vez, fui a causa da calmaria de alguém. Você, Seulgi. E algo em mim me dizia que havia algum motivo que eu descobriria num futuro próximo.
[...]
No entanto, como era de se esperar, um monstro não pode ser salvo. Talvez eu precisasse ser temida, para não ser consumida por aquele sentimento de vazio eterno do qual não poderia fugir. Já haviam se passado doze anos desde a primeira vez que havia visto você novamente. Sim, novamente. Essa é a ironia e o desespero de se viver várias vidas: pode ser que em algum momento entre os séculos você se reencontre com um amor perdido, sem que ele sequer se lembre de você. Eu sabia que não poderia me entregar ao amor, éramos duas garotas em pleno século XIII com o adendo de trezentos anos de massacres que cometi e continuava a cometer sem o menor remorso.
Entre os corpos jogados pelo casarão Elthan Palace, estava o de uma jovem garota, cabelos negros, pele clara e feição totalmente diferente dos demais ingleses presentes ali — o que automaticamente arremeteu minha memória a única pessoa possível: você, Seulgi, como se as duas tivessem vindo do mesmo lugar. Não era possível, eu deveria estar ficando louca com minha própria brutalidade. Mas, antes fosse loucura; o que havia acontecido era uma maldita coincidência: eram primas. E foi assim que entendi que não poderia mais correr contra o destino, precisava estar com você.
Na mesma noite, através de um acidente de carruagem forjado, te vi pela segunda vez nessa vida. Você me reconheceu daquela noite fatídica em seu quarto na infância e eu, ao invés de negar, só conseguia prestar atenção em como você era linda, somente o fato de estar olhando para mim fazia com que sentisse uma nuvem de borboletas enlouquecidas dentro do meu estômago — se é que depois de tanto tempo ainda tinha um.
Os dias passaram. Eu sabia exatamente o que você estava começando a sentir e tive medo, um medo estarrecedor, o qual eu não sabia que era capaz de sentir, pois sempre era eu quem causava isso em outras pessoas durante séculos. A forma como você me olhava era idêntica a forma como eu te olhava e isso era perigoso, pois nunca fui somente uma garota perdida que seu pai salvou, eu era um monstro pelo qual você se apaixonou.
Eu não queria. Ou queria, mesmo não podendo; mas evitei de todas as formas possíveis ceder ao meu desejo, que era recíproco ao seu, porque eu sabia que a história ia se repetir e você acabaria machucada. No entanto, quanto mais eu te evitava, mais você me queria e quanto mais você me queria, mais eu desejava te ter nos meus braços, nem que fosse a última vez.
Cada roçar de mãos que fazíamos de forma proposital gerava uma vontade de, simplesmente, te jogar na minha cama e te fazer queimar, assim como os seus olhos me suplicavam. Éramos improváveis, vivendo um amor selvagem e proibido, prestes a explodir em ações impensadas. Um amor acidente.
Até que um dia não pude evitar. Teus cabelos molhados, tua pele macia e teus olhos me convocavam; tentei não atender, mas quando vi suas mãos — que pareciam tão frágeis, mas que, na verdade, eram fortes e quentes o suficiente para me surpreender — estavam grudadas na minha cintura, sua respiração ofegante como na noite em que te aninhei, mordiscando o lábio inferior sem pausa. Aquela definitivamente era a cena infernal mais prazerosa e proibida para nossa época e contexto. E foi assim que cedemos.
Teus lábios pareciam querer engolir os meus; tuas mãos estavam afoitas por um contato mais íntimo. Aquilo era tão errado, mas tão bom ao mesmo tempo; mas como poderia dar certo? Você estava conectando sua alma a um monstro banhado em sangue, sem nem ao menos saber. Tua inocência tinha uma beleza peculiar, que eu não queria quebrar mesmo sabendo que em algum momento isso iria acontecer.
Mas exatamente por querer preservar o teu amor simples, guardei todos os segredos possíveis. E dentro de um relacionamento só o amor não basta, pois segredos se tornam um veneno mortal. Via nos teus olhos a frustração e a confusão que acabei por lhe causar; aquilo fazia com que eu sangrasse por dentro e então o sentimento anterior de raiva e desgosto se apoderou de mim. E quando um monstro sente raiva dele, a fúria normalmente recai sobre outros, no meu caso em inocentes.
Tudo de bom que você me trazia, meus segredos destruíram, então voltei a causar exatamente isso: destruição. Em poucos dias, dezenas de mulheres do vilarejo começaram a morrer de forma misteriosa; me lembro de seu pai achar que era o surto de alguma peste, mesmo todos os médicos da região dizendo que haviam sido mortas por uma entidade maligna. Era isso o que eu era, não é?! Uma entidade maligna.
Eu sabia que o nosso amor acidente ia sangrar. E sangrou, muito. Eu queria lhe dizer quem era, que o nome Irene era a forma como você em uma vida passada me chamava carinhosamente, que você tinha o mesmo fogo de que eu me lembrava, que eu estava enlouquecidamente apaixonada e não me importava se todos viam isso como um pecado mortal que deveria ser extinto da Terra, porque eu só queria te ter nos meus braços para todo o sempre; mas eu não podia, Seulgi, era egoísta demais vomitar toda aquela loucura e morte em cima de você.
Além disso, logo saberiam o que eu realmente era. Isso se repetiu várias vezes e na última você havia sido morta injustamente por amar um demônio; essa parecia ser a nossa eterna e repetitiva maldição. Até que um dia você ficou doente assim como as outras mulheres, por minha causa, mas eu não estava fazendo nada propositalmente querendo o seu mal, mas, sim, eu sabia que era perigoso demais ficarmos perto, ainda assim eu não podia simplesmente ignorar o sentimento que queimava dentro de nossos peitos.
Foi então que a tragédia ocorreu, querida. Descobriram quem eu era, como sempre; acharam meu túmulo e antes que pudessem me exumar e acabar de uma vez por todas com a minha existência de sangue, dor e paixão, naquele alvorecer vermelho tive um último momento nos teus braços. Sim, dessa vez as posições estavam trocadas, era eu quem precisava de colo quando finalmente tive coragem de usar meu último fôlego para te contar o quanto te amei. E então ouvi a frase mais linda de toda a minha vida, "eu também te amo".
A morte não deveria me assustar, mas creio que estava estampado em meus olhos o desespero de ser obrigada a me separar de você. Eu não sabia exatamente quem era quando não estava amando e sendo amada por você, Seulgi, mas pelo menos morri sentindo uma última vez teus lábios encostados nos meus, podendo enxugar tuas lágrimas e com a visão que mais me causava paz: a sua. E sei que, se for nosso destino, iremos de alguma forma nos encontrar em algum lugar onde poderemos viver nossa paixão sem morte ou dor.
Então, até logo, pequena monstrinha.
Com carinho eterno, sua Irene.