Viena, 1850
Sob o prateado luar ela elevou as orbes azuladas até as cintilantes constelações. Estas adornavam a escuridão com seus pontilhados luminosos naquela noite fria e melancólica. Os cabelos dourados eram embalados pela gélida brisa dos ventos que anunciavam o inverno. Levada pelos pensamentos, Lenore lembrou-se de suas viagens na Grécia, a terra-mãe do saber, onde a curiosidade levou os homens a olharem para as estrelas. Da janela de seu castelo, ela questionava para onde havia ido toda aquela sabedoria quando a idade das trevas cobriu a Europa.
Roma, 1600.
Perto do crepúsculo, os gritos de agonia dum herege consumido pelas chamas chegaram até seus ouvidos. Um monge que traiu a fé e a Igreja. Lá estava o pecador, um homem de cabelos negros amarrado numa estaca. Suas blasfêmias não poderiam ser mais ouvidas, enquanto o povo ao redor erguia os punhos e cuspia seus pecados imperdoáveis diante dele. "Filho de Satã! Bruxo!"
Giordano Bruno cometeu o pecado de pensar além dos dogmas que o cercavam. Era culpado de contemplar as estrelas e imaginar a imensidão do cosmos, onde uma infinidade de mundos aguardavam para serem descobertos.
Sob um capuz negro no meio da multidão, Lenore lamentava ao presenciar a execução da sentença. Compartilhava com Bruno a observação pelo desconhecido e o anseio por entender o que estava além da compreensão. Prometeu a si mesma não interferir nas sociedades ao longo dos milênios, talvez estivesse adquirindo hábitos humanos e isso era perigoso. Afinal sua espécie tinha como subsistência o sangue deles. Viver nas sombras, não tomar partido e resignar qualquer tipo de laço com os homens em prol da sobrevivência. Assim como o monge, Lenore quebrou seus votos.
A curiosidade a levou por caminhos tortuosos e fascinantes, embora soubesse que as consequências viriam cedo ou tarde. Mais que o sangue, ela amava o conhecimento e cortejava a cultura. Ouvia os batimentos cardíacos ao redor, sentia o sangue fluindo pelas veias daqueles orgulhosos clérigos que nada promoviam senão medo e ignorância. Suportando sua sede, a loura desapareceu rapidamente por entre o aglomerado de acusadores, deixando a praça com amargo pesar.
...
Enquanto bebericava do vinho naquela cama macia, o velho padre aguardava ansioso pela beldade que iria desfrutar de sua sagrada virilidade naquela noite. Certamente o bordel oferecia um bom uso para as indulgências que tanto apreciava. O tilintar das moedas era o mais suave louvor aos seus ouvidos. O clérigo sorriu maliciosamente quando viu uma silhueta curvilínea se aproximar na escuridão. Despida, uma jovem loira reclinou-se sobre ele, extasiado pela beleza arrebatadora da meretriz. Ela beijou-lhe o pescoço, e o velho estremeceu, mas o momento de prazer cessou quando sua garganta foi perfurada pelos caninos da jovem. Os lençóis logo ganhavam tons de vermelho enquanto ele se contorcia a cada mordida. A última coisa que viu foi o sorriso escarlate da mulher que o matou.
Nas semanas que se seguiram, uma lenda começou a circular em Roma. Nas rodas de conversas todos mencionaram que a cidade estava sob uma maldição, uma criatura demôniaca que matava homens santos. Relatos de ataques em paróquias e catedrais eram recorrentes. No entanto, ninguém saberia dizer quem ou o quê derramava o sangue dos escolhidos de Deus.
"É a prova de uma mente inferior o desejar pensar como as massas ou como a maioria, somente porque a maioria é a maioria. A verdade não muda porque é, ou não é, acreditada por uma maioria das pessoas."
Giordano Bruno