Barra do Piraí, 25 de abril 2009
Querida Beatriz,
Fico feliz que tenha me enviado uma carta depois de todo esse tempo! Eu estava esperando a sua resposta ansiosamente, achei até que tinham esquecido de me entregar a correspondência. As coisas vão bem por aqui, obrigado por perguntar. O pessoal do asilo é muito gentil e prestativo, sempre me perguntam se estou precisando de algo, mas quando respondo que quero jogar no bicho, eles não deixam! Desconversam, sabe? Que coisa!
Como anda a Fátima? Queria saber se ela e as crianças estão bem, ela não tem vindo me visitar. Diga a ela que estou com saudades, sim?
Ah, eu me lembro muito pouco dos tempos no Santa Edwiges. Lembro-me de eventos específicos, como esse que você menciona. Com vívidos detalhes, se é isso que você quer saber. Antes, peço perdão pela eventual falta de cronologia. Ando meio cansado ultimamente, e até as memórias mais frescas parecem se dissolver como fumaça, mesmo que eu as tenha bem diante dos meus olhos.
Aconteceu quando eu tinha uns dez anos de idade, talvez. Eu ainda morava no Santa Edwiges e morei por uns bons anos até a sua bisavó, Edith, me levar embora para o Rio de Janeiro. Era divertido ficar lá, eu tinha vários amigos e chegou uma hora que eu não tinha mais esse desejo todo de sair, de encontrar um pai, uma mãe. Eu era adolescente quando fui embora do Santa Edwiges e fiquei tanto tempo lá que lá acabou se tornando minha casa. Quando fui morar com a Edith, eu senti muita falta da Madre Cláudia, das freiras e do Clube.
Bom, eu tinha dez anos de idade, acho. Nós estávamos comendo no salão do refeitório, uma sala bonita, igual àquela da casa de Vassouras, mas com um lustre de bronze pendurado no centro. As janelas eram amplas e altas, para entrar bastante luz natural, e os vidros eram sempre cristalinos, um brinco! Não havia muitos meninos no orfanato, cerca de dez, quinze, então o salão nunca estava cheio. Era dia de carne com batata e eu estava sentado numa mesa junto de meus amigos.
Você não conhece meus amigos, não é, Bia? Não sei se já falei deles com você. Nós éramos cinco, eu, João Pintor, Oswaldo, Isabel e Coralina. Todos os dias, nós comíamos juntos, e naquele dia não era diferente. Nós tínhamos as mesmas idades, só o João que era mais velho. Ele devia ser uns quatro anos mais velho do que nós, era alto e careca. João Pintor era um dos meninos que estavam a mais tempo no Santa Edwiges.
Bom, estávamos comendo e, de repente, um menino chamado Jorge começou a tossir a algumas mesas de distância da nossa. De início, ele tossia fraco, e ninguém prestou muita atenção. Mas a tosse persistiu e foi ficando mais forte. Foi muito depressa, eu me lembro de ter me virado para ver e o menino estava com as mãos no pescoço, com o rosto vermelho e as veias saltadas na testa, tossindo muito forte. Cora me disse que ele estava engasgado, e gritou para chamarem a Madre.
As freiras e a Madre Cláudia não comiam com a gente, elas comiam numa sala ao lado da copa, e ninguém conseguia ver o que elas estavam comendo. Gostavam de dizer que elas comiam macarronada, carne de boi, tudo o que não davam para a gente. Mas ninguém sabia se era verdade. Madre Cláudia, junto de uma freira chamada Sofia, vieram da copa e foram na direção do menino. Nesse momento, eu tinha parado de olhar, mas quando o vi novamente, era como se estivesse um pesadelo.
Os olhos dele estavam saltados, quase para fora, e estava roxo, tossindo tão alto que, se tentar, consigo ouvir os sons que a garganta dele fazia. De repente, algo voou da boca dele. As freiras estavam em volta, para desengasgá-lo, abraçando-o por trás, e quando viram o que havia saído, acho que foi Sofia que gritou de horror. Jorge tossia e tremia, e Sofia chorava. O que ele havia tossido era um pedaço de carne mole e ensanguentado, vindo de dentro dele. O corpo daquele menino se mexia de uma forma que nunca vi igual, como uma convulsão. E ele tossia e mais pedaços saíam da boca dele. O sangue escorria pela camisa e molhava a toalha. Madre Cláudia tentou chamar por ele, ela chamava “Jorge, Jorge!” e o menino fazia uns sons horríveis e tossia os pedaços dele para fora.
De repente, ele caiu em cima da mesa, morto. As freiras tiraram a gente de lá, fomos para o pátio sem terminar de comer. Algumas crianças choravam, João Pintor era um deles. Eu nem consegui chorar, sequer tremi. Fiquei petrificado. Completamente sem reação, virei estátua. Eu sempre fui um menino esperto, gostava de estudar o que tem dentro da gente. E quando entendi o que ele estava tossindo, uma imagem muito assustadora me tirou o sono por quase um ano. Bia, é possível alguém tossir pedaços de seu pulmão? Se for, acho que terei uma meia dúzia de más noites de sono depois que receber sua resposta!
Era essa a história que queria ouvir do orfanato? Não sei se essa se enquadra como a mais █████ cabulosa, como você mesma escreveu, mas tenho mais algumas na memória se não for essa a de seu desejo.
Não se esqueça de me mandar notícias de sua mãe, estou com saudades!
Abraços carinhosos,
Vovô Pedro.