A Doutora Susana Mahler deixou o DroneTaxi para o tão esperado silêncio de seu lugar especial. Era difícil dizer a última vez em que estivera frente à Igreja de Santo Antônio – não fora nos últimos meses. Muito ocupada desfodendo o emaranhado de todas suas patentes.
Manter a noção do tempo também se tornava um problema com a idade, mas em seu caso, isso tinha pouco a ver com a velhice.
Sempre a deixava com a sensação de que algo estava em falta. Como agora.
Ela escolheu o banco da praça com vista para a igreja. Ali perto, um rapaz brincava com um cachorro visivelmente sintético (péssima pelagem, não era um de seus produtos).
Talvez era disso que precisasse, pensou.
De um cachorro, não um rapaz. Ela já não possuía as partes necessária para fazer...
Do outro lado passava o sorveteiro, seu carrinho a gemer um jingle de tarde moribunda. Coisas que não se via com frequência naqueles dias: sorvete, uma tarde ao ar livre, animais de verdade.
Uma tropa de crianças famintas amontoou-se ao redor do sorveteiro, mãos preparadas para picolé. Ela sorriu por reflexo.
Mensagens e notificações de e-mails frente aos olhos ameaçaram tirar-lhe a paz. Ela bloqueou os pop-ups com um movimento rápido de cabeça, e tirou um livro da bolsa. A versão impressa de um Rembrandt na capa parecia ridícula.
Com muito arrastar de rodinhas, crianças satisfeitíssimas, o carrinho de sorvetes se achegou. E parou bem perto.
- Um para a dama da tarde? – disse o sorveteiro. – Está um clima infernal, não é?
Susana recusou com um gesto e um olhar amigo. Voltou ao livro e, após alguns segundos desconfortáveis, tornou a olhar o homem que não se movia.
- Há algum problema, se-... – disse, e enfim percebeu que aquele diante de si não era homem algum.
- Eu nunca teria imaginado que eras fã de Goethe, doutora. Ou que finalmente resolveste abraçar a ironia de nossa situação. – o homem do sorvete curvou-se para ver melhor. – Fausto? Pelo amor de...”
Susana suspirou.
- O que você quer agora, Lúcifer?
- Ah, tu sabes. Um drinque gelado em meu cantinho favorito do Inferno, numa bela praia, envolto pelos meus mais materialmente aplacantes servos. E, sim, quero dizer os gostosões e as gostosonas. Ou seja, nada assim, tão difícil.
Ele se sentou perto dela, pernas cruzadas. Olhadas casuais para aqui e pra lá, com o charme de um samba paulista.
- Ah! – cortou o silêncio – E a minha parte de nosso pequeno trato. Ela está, afinal, mais que atrasada.
Susana espremeu os lábios. Um contrato digital apareceu em sua visão e ela citou o primeiro parágrafo.
- “Do presente instrumento, composto dia 28 de fevereiro do ano de 2019, que vincula o contratado, Lúcifer dos Eternos, ao contratante, Susana Mahler das Crianças, até a morte do contratante, na qual eventualidade, a alma do contratante se torna propriedade do...”
- É muito nobre de tua parte refrescar-me a memória, doutora Mahler “das Crianças” – cuspiu. – Mas eu sei esse contrato de ponta cabeça. Foi redigido por mim nos fossos malditos, com o sangue daqueles que se aproveitaram dos fracos. Lugar péssimo para os óleos naturais da pele, diga-se de passagem.
- Neste caso - Susana jogou o contrato para fora de sua visão, - Eu não sei por que veio. Como pode ver, eu não estou morta.
Lúcifer escarrou.
- E não esteves morta nos últimos duzentos anos, minha caríssima. Estou certo? Quanta vida já viveste! Concordei em financiar cada uma de tuas pesquisas até teu dia último, e, lastimável, jogaste este pequeno detalhe contra mim. Devo dizer, fui pego de surpresa por tua solução àquele problema de envelhecimento biológico. E eu sou o Diabo, veja bem!
- Eu agradeço a lisonja, Lú, mas...
- Estás desesperada, doutora? Pois digo que sim. – Lúcifer estudava a arquitetura simples e duradoura da igreja colonial de seiscentos anos, dedicada ao padroeiro dos perdidos.
Susana grunhiu e pressionou as têmporas.
- Não tão desesperada quanto no dia em que me encontrou. Olha, se está aqui para me atormentar sobre os processos, não vai funcionar. É um corre-corre que nunca chegou perto de um tribunal, e nunca vai chegar. Todo mundo acredita que o próprio capeta está do meu lado. – ela deu uma risada.
- Eu diria que tê-lo não seria má ideia. Mas a moeda do “capeta” não pode ajudar-te para sempre, e já conseguiste fazer inimigos de, ora, cada um de teus antigos sócios? O relógio proverbial está quase a bater.
- Esse relógio está um tanto quanto desajustado, Lú. Agora, se puder me dar licença, eu tive um dia de merda não-proverbial. – Susana abriu o livro e ativou seus bloqueadores auditivos com um movimento da mandíbula.
Ela tinha de admitir, ficara surpresa ao descobrir o quão difícil é deixar pistola da vida o próprio Diabo. A “cobertura de mídia” disponível sobre o Senhor dos Condenados (velhos filmes e peças teatrais) não lhe davam o devido crédito.
O anjo traidor mantinha o sorriso paciente, enquanto os olhos da mulher escaneavam as palavras numa velocidade sobrenatural.
A voz veio de dentro de sua mente aprimorada.
“O dia está próximo, doutora. Minha espera chega ao fim.”
Susana o encarou, olhos como adagas.
- Sabe que não pode me matar, né? – disse ela.
“Certamente, minha caríssima.”
Lúcifer se levantou, deu três passos, e parou.
“Mas ele pode.”
Susana pouco sentiu o metal gélido que lhe tocou a nuca.
- Você roubou tudo de nós, sua puta velha. – as palavras abafadas vieram de trás, num sussurro.
Dois disparos silenciosos penetraram o tórax, um viajando espinha dorsal abaixo, o outro laringe e pulmões abaixo – vindo a descansar no coração, – ao passo que o mundo se tornava um carrossel defeituoso. Susana foi ao chão sem olhar para seu assassino. Os alertas de biofuncionalidade iam à loucura frente a seus olhos, gritando em vermelho.
Ela não sentiu nada. Susana certificou-se de fazer a remoção do centro de dor em seu cérebro no momento em que a tornara possível.
A parte em que você sangra no chão inteiro, enquanto tem convulsões e se sente um lixo, entretanto, ainda era um problema.
- Quero dizer, ora... alguém haveria de tomar as dores, não? – Lúcifer era uma torre escura sobre o corpo dela, como uma criatura boba-alegre de paralisia do sono. – Todas aquelas pessoas maravilhosas e criativas que esqueceste de creditar, enquanto devorava Prêmios Nobel.
- T... t... t...
Lúcifer ofereceu um ouvido. – Como é? Ah, sim. Trols de patentes. Que bem faz magníficas ideias se não podem torná-las reais. Implantes oculares, reguladores hormonais subcutâneos, nano-bloqueadores e aprimoradores eletroquímicos. Malditos animais robôs que sabem falar e contar piada. Coisas incríveis!
- Eu... tornei tudo... possível...
- Isso é verdade, doutora. Isso é verdade. – Lúcifer tinha um relógio de bolso em uma mão. Ele consultava a hora enquanto mantinha a outra mão esticada sobre Susana. – E um, e dois, e... já!
No ponto de vista de Susana, os alertas digitais que mediam seu oxigênio, pressão sanguínea, e atividade cerebral em queda livre desapareceram. Apenas um indicador ficou, e mostrava uma barra de upload a se preencher depressa até 100%.
- You can run, you can run – o Diabo cantarolava à luz que surrupiava do corpo moribundo de Susana, - Tell my friend Willie Brown. You can... mas, hein...?
A luz em estado sólido escapou-lhe as garras no último momento, deixando só uma fumacinha esnobe a qual Lúcifer falhava em apanhar.
- Mas, hein? Aonde foi?! – ele guinchava para o cadáver inerte. Olhou para cima, rosnando enquanto buscava os céus por pistas de uma alma em fuga.
E evaporou ao chegar o drone de patrulha para investigar o crime.