Quando abriu os olhos, existia o cinza e só. Desnorteado, apoiou-se no poste de luz mais próximo e se levantou, ao tentar fechar as mãos, soube que estava num sonho. Ainda assim, era carne. Seus dedos não atravessavam a própria pele e podia sentir seus pés descalços queimando no chão, mais uma vez fora posto no jogo cruel em que era obrigado a assistir àquele mesmo filme antigo sem poder fazer nada para mudar seu desfecho.
Um jornal exposto na banca dizia ser quarta-feira de 1951, mas poderia ser muito antes, ou depois. Poderia ser agora, de tão monótono, e não faria a menor diferença, porque a mulher sentada na calçada ainda estaria lá com o olhar vago procurando eternamente por algo que talvez nunca tivesse existido, e o homem conduzindo a charrete ainda seria o homem buzinando descontrolado no engarrafamento, e as crianças continuariam dividindo seu coração entre a esperança por um futuro melhor e o pesar de reconhecer que desde aquele momento estavam condenadas ao fracasso; piscou e escutou suas vozes ecoarem rua abaixo.
O carro do povo alemão começava a conquistar a simpatia dos brasileiros, e o barulho do seu motor brigava por espaço contra os relinchos e os galopes. Era um sonho antigo, recorrente, que o perseguia há tanto tempo que não poderia dizer desde quando, ocasionalmente o sonho se divergia em fatos e acontecimentos, mas o começo e o fim eram sempre os mesmos: tudo começava e acabava com ele abrindo os olhos e se levantando.
Aprendera a ignorar os olhares desconfiados e curiosos enquanto se misturava às pessoas, dos seus pés ao seu cabelo, era encarado como se fosse o alienígena enviado para fazer a terra parar ou o viajante do tempo que aparecera no trânsito de Nova Iorque um ano antes. Nas primeiras vezes, quando ainda não podia distinguir o sonho de sua própria realidade, correu pelas ruas e fugiu, quatro vezes tentou impedir o acidente que logo aconteceria — perdeu a conta de quantas vezes — bem na sua frente.
A princípio, cobria-se de raiva, caía, chorava e esperneava, já não sentia mais nada disso, em nenhum momento encontrou a luz no fim do túnel, a almejada paz de espírito ou a confiança de que tudo acontecia porque assim tinha que ser, apenas aceitou que não adiantava mais lutar e desistiu. O desespero e a tristeza eram exclusivos a quem esperava que do outro lado houvesse seus opostos a espera.
Se fizesse qualquer coisa para tentar salvar aquelas pessoas, desencadearia uma segunda, uma terceira ou uma quarta onda de eventos, a seguinte sempre mais desastrosa que a anterior. Por isso, sentou-se na calçada ao lado da senhora, respondeu suas perguntas sem realmente prestar atenção em nenhuma e esperou que a madrugada explodisse.
Todos os trilhos levavam ao mesmo destino, e eles até se deslocaram para abrir uma ruptura em espaço e tempo e dar ao caos uma chance de desviar a ordem natural de seguir seu curso, mas, quando a oportunidade lhe surgiu, recusou-a, em outros tempos, tentaria, mesmo que para falhar, apenas para dizer que pelo menos tentou, mas ele não era o protagonista daquele filme e sabia que não salvaria ninguém.
Ainda que funcionasse, quando abrisse os olhos novamente, as dores do mundo continuariam sendo as mesmas, as tristezas só remodelagens daquela primeira, e nada, absolutamente nada que fizesse, mudaria o fim que o aguardava do outro lado.
Ele esperou que as chamas iluminassem a noite e o pânico e as cinzas se alastraram pelas ruas, apoiou os cotovelos no joelho, cobriu o rosto com as mãos e quase se sentiu angustiado, outra vez perdeu porque sequer tentou fazer nada, mas, então, lembrou-se de que naquele mesmo instante existia alguém que, apesar de ter tentado de tudo, também estava perdendo.