20/04/XX
A sirene toca ao fundo, está se aproximando da casa. Eu não consigo me mover, o corpo inerte paira entre os meus braços, há alguns minutos eu estava balançando o corpo, mas não se movia, nada se movia, um silêncio preencheu o espaço, até o som da sirene me trazer, parcialmente, de volta a realidade.
Ouço passos pesados na escada, estão correndo até chegarem ao quarto. Olhos grandes e escuros me fitam, transmitem um sentimento de pena para mim e choque ao perceberem o corpo. Sou puxada para cima e um cobertor é jogado nos meus ombros, não me sinto aquecida ou coisa alguma.
05h40min
As perguntas são disparadas para mim, tento responder, mas a minha voz falha, tento novamente e consigo balbuciar algumas palavras, gradualmente a história começa a se reconstituir em minha mente. Uma porta aberta, sem vidros quebrados.
19/04/XX
O toca disco é ligado, um jazz suave ecoa pela casa contrasta com a chuva. Desço as escadas e caminho até a sala minúscula de jantar ao lado da cozinha. O ambiente pequeno e claustrofóbico não parece nada aconchegante como o anúncio dizia. Sento-me a mesa, frustrada e cansada. Uma sombra caminha por trás de mim e vejo um braço esticando sob os meus ombros, na mão um prato é colocado a minha frente.
Eu não lembro quanto tempo se passou até a voz grossa me chamar. Levanto a minha cabeça que antes estava focada apenas em cortar o pedaço duro de carne e observo a pessoa a minha frente colocar o dedo sob os lábios, pedindo silêncio. Depois se levanta da mesa e faz um sinal para que eu o siga. Hesito em deixar a faca na mesa, mas levo-a. Subimos os degraus e antes que pudéssemos nos esconder no quarto, algo rompe a porta e outra figura sobe a escada.
Fecho os meus olhos e quando percebo estou no chão, abraçando o corpo e tentando não pensar no que aconteceu. Não me lembro de mais de nada. Tudo o que olhei foram sombras, não tinham rostos, nem voz.
15/04/XX
Ouço o som do “jazz” preenchendo o meu quarto, um barulho que parece ser gritante, sai daquele cômodo e vou até o banheiro em frente do meu quarto, abro o pequeno armário com um espelho acima da pia e retiro um frasco transparente com algumas pílulas, espio entre a fresta da porta, não há ninguém ali me observando, não hoje, pego uma pílula e ao invés de ingerir, coloco-a no vaso sanitário e dou descarga.
Desço os degraus da escada de forma silenciosa, não pretendo ser vista hoje, mas claro que isso é impossível. Aquela figura grande toma a conta de todo o meu espaço. A minha casa já não é mais minha. Vou até à cozinha na pretensão de fazer uma xícara de chá, mas já vejo uma sob a bancada, um líquido esverdeado.
Não recordo de quanto terminei de beber o chá e aquela mão grande agarrar os meus braços e me guiar novamente até o quarto, mas agora estou rumando para o andar inferior, da janela da sala de estar é possível ver o céu escuro e a chuva torrencial lá fora. A sala de jantar a minha frente parece minúscula, abafada... Eu quero fugir.
O jantar é posto, uma carne pálida e não sinto o sabor. A figura se acomoda a minha frente como se a casa fosse sua. Corto o bife em pedaços pequenos e engulo, o sangue jorra da carne mal passada, o líquido vermelho ensopa o pano branco da mesa, como uma pintura. Os meus olhos se perdem ali até eu perceber que o sangue não escorre da carne, mas da cabeça deitada na mesa.
Retiro a faca e paraliso. Quem fez isso? Olho em direção das janelas, portas e percebo a única porta da cozinha aberta, a chuva entra fraca e mais uma vez paraliso. Corro até a porta de vidro e a fecho, não vejo pegadas, não vejo nada. O corpo inerte daquela figura está sob a minha mesa, pego a faca primeiro e arrasto o corpo comigo até o quarto. O processo não é fácil, é muito pesado e a escada é longa, mas consigo. Fecho a porta e fico perto do corpo. Logo a escuridão consome o local e eu só abro os olhos quando ouço o barulho da sirene chegando até a mim.