O quarto era escuro como sempre, respingos de cadáveres de mosquitos adornavam o ambiente, junto com as rachaduras nas paredes e as camas que rangiam.
Eu estava deitada, coberta da cabeça aos pés, tremendo de medo pois, mais cedo naquele dia, passara todo meu tempo lendo contos aterrorizantes em revistas velhas - não muito saudável para uma criança - e agora, aquelas imaginações não saíam da minha mente. O autor havia deixado claro naquelas páginas amareladas, que quanto mais você pensa sobre eles, mais eles aparecerem para você.
Era um tipo de matemática amaldiçoada.
Não sei ao certo a razão pela qual sempre tive estes traços destrutivos de investigar o me amedronta e aquela foi a primeira vez que presenciei algo assim...
De fato, algum de meus olhos viu. Ou sentiu...
Percebi que as sombras em tonalidade de granizo, rapidamente adquiriram um tom de chumbo e num piscar de olhos, o chumbo se pintou com uma cor alaranjada-breu, senti o silêncio devastador que o medo proporcionava e foi ficando cada vez mais frio.
Eu me recusava a olhar para a porta - eu sabia que eles sempre preferiam as portas, janelas, cantos... Mas, diabos! Algo guiava meus sentidos infantis como imãs e de repente, eu estava imersa naquele transe estarrecedor.
Ouvi os passos, marchando vagarosamente. Algo não-humano. Vozes graves cantando quase inaudívelmente. Algo entre o inferno e o paraíso. Talvez nenhum dos dois.
As sombras surgiam na parede ao meu lado, todas esticadas, iluminadas como chamas... Pareciam passar da cozinha para o corredor, parar na frente do quarto, fazer um aceno com a cabeça e seguir o percurso.
Por fim, uma força maior que meu corpo de nove verões virou meu pescoço em direção à passeata...
As peguei no flagra.
Todas em fila, trajando mantos brancos que as cobriam dos pés à cabeça, eram imensas - as aparições iam seguindo em fila, uma após a outra, com suas velas derretendo em mãos, cada qual seguia de cabeça abaixada, lentamente... Uma fila interminvável de seres encapuzados, uns esguios, outros menores... Meu coração bateu tão forte, diante das visões que parecia explodir dentro do peito, o frio se converteu em um calor insuportável e eu não conseguia dizer uma só palavra.
Tentava gritar, cobrir a cabeça, sair correndo, mas me sentia pesada... Talvez eu tenha feito algum barulho, mas logo cobri a boca, pois um deles percebeu que eu os via.
Foi instantâneo.
A fila deixou de fluir e todos pararam.
Aquele que manejou a cabeça encapuzada para mim ao ouvir meu gemido esgarçado, andou lentamente até o ponto central do quarto. Iluminou o ambiente com a luz vacilante da vela, e com uma das mãos, me deixou ver o que havia por debaixo do capuz.
Breu.
Tudo que havia por debaixo daquele capuz fantasmagórico era descomunalmente escuro, como se não houvesse um fim. Como se escuridão fosse eterna por debaixo do pano branco, amarrado com cordinhas. Eu esperava um rosto humano, um corpo conhecido...
Foi minha primeira lição sobre expectativas quebradas.
Meu coração bombeou sangue, encontrei força na língua e bradei completamente em pânico, tremendo, arrepiada, deixando a urina escapar com velocidade no colchão fino.
A aparição assentiu com um movimento lúdico em círculo, desparalizando a fila e seus camaradas que aguardavam estátivos, mas agora, começaram a correr.
Aquilo vestiu seu capuz de novo e foi saindo do quarto com o braço esquerdo arqueado para cima, segurando a vela que derretia cada vez mais rápido, com mais pingos amarelos de cera.
Mas não cessava de olhar para mim - será que olhava? Senti que sim.
Ainda de frente para o quarto, passo a passo aquilo se colocou de volta na fila, assim que voltou para perto dos seus, uma rajada de vento, ou um manto negro, fez morrer cada luz da casa e quando reacendeu, eu já estava sozinha de novo, ainda em prantos, berrando cada vez mais alto. Nenhum adulto parecia ouvir.
Ninguém acreditaria em mim.
A fila de almas desapareceu.