“Minha avó costumava dizer, quando um dos meninos da casa fazia alguma besteira:
‘Nesta casa não tem homem, tem puta vestida de homem!’
Se ainda estivesse viva, trocaria “casa” por “mundo.”
- O Diário do "Pai."
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Não sei bem em que canal ela viu isso de monstros, mas sei que a coisa invadiu a mente dela de tal forma que ela não para de falar neles.
- Papai, - Ela me acorda, no meio da noite. - Tem um monstro no meu quarto!
Suspiro.
- Não, filha, deve ser só o vento. Tenta dormir, papai tá cansado.
Ela não aceita. Sobe na cama, começa a pular, o colchão chacoalha e faz barulho, seus pézinhos atingem o meu estômago e eu me levanto, sonolento, muitíssimo arrependido de não estar mais com a mãe dela.
- Muito bem, filhota, por que não vamos ao seu quarto e damos uma olhada, juntos, nesses monstros? - Sugiro, com um sorriso sonolento no rosto. Ela ama esse tipo de brincadeira.
Continuo a falar, animado, imitando a voz daquele youtuber bobão que ela assiste.
- E se encontrarmos algum, por acaso, a gente leva ele até a porta e dá um chute na bunda dele, tá certo?
Ela gargalha. A palavra bunda, assim como as palavras pipi e popô, são para ela as mais engraçadas do mundo.
- Tá certo. - Ela responde, a voz saindo desajeitada junto com o riso. Fofíssima. Mas não o suficiente, ainda. - E aí ele vai se perder na floresta? - Sua imaginação é fértil para essas coisas.
- Oh, sim, ele vai se perder na floresta, filha.
- E aí ele nunca vai sair de lá?
- Não, filha, ele nunca vai sair de lá.
- Por que só você sabe o caminho da floresta, não é, papai?
- Sim, filhinha, só eu.
- Você me ensina um dia?
- Claro, filhinha, um dia você saberá navegar por estes bosques tão bem quanto eu. - Uma pequena mentirinha. - Agora vamos ao seu quarto, ver se achamos esse monstro, que eu quero voltar a dormir.
Ela vai na frente, mas interrompe seu caminhar bem na frente da porta do quarto. Seu pijaminha rosa, que costumava ser folgado, nos últimos dias passou a ficar apertado; ganhou bastante peso, devo admitir.
- Entra primeiro, papai.
- Muito bem. E onde é que você quer procurar primeiro? Aqui, debaixo da cama? Talvez dentro do guarda-roupa? Em cima dele?
Ela aponta pra cima do guarda-roupa.
- Vou precisar de um banquinho, você pega um banquinho pra mim, filha?
Ela sai correndo até a cozinha e volta com o banquinho. Vou subindo bem lentamente, para criar um suspense, e vou dizendo, na voz de um youtuber bobão, frágil, emasculado como todos os outros supostos “homens” deste século miserável:
- Será que tem um monstro aqui, criançada? - Ele sempre chama seus espectadores de criançada. - Se você acha que sim, dá uma joinha!
Ela ergue as duas mãos, ambas com os polegares para cima.
- E não se esquece de tocar no sininho, hein?
Ela imita (muito mal) um sino com a boca. Não a culpo, tem só quatro anos.
Me levanto bem devagarinho e...
- EITA! - Grito. Ela se assusta, eu me viro para ela fazendo cara de assustado. - Criançada, vocês não vão acreditar... - Ergo meus braços para pegá-la, e vou a levantando bem devagar, enquanto imito a música tema de Halloween. - Não tem nada! - E começo a rir. Ela gargalha. - O que você achou que ia ter aqui, filha?
- Achei que ia ter um monstro bem grandão, com um monte de olhos, com um monte de garras, uns dentões, um bafo de cebola, muito muito muito feio e nojento.
Vamos, agora, dar uma olhada dentro do guarda-roupa. Desta vez, para incentivar a sua criatividade, a pergunto logo:
- O que é que você acha que vai ter dentro do guarda roupa?
- Acho que vai ter um bicho bem feio, com cabeça de mosca, corpo de macaco e perna de elefante.
Eu rio de sua sugestão.
- Se afaste, filha, não quero que você veja esse bicho bem feio, se ele estiver aí.
Ela se esconde atrás da porta, fica pondo sua cabecinha para fora, para me observar enquanto abro, lentamente, o guarda-roupa. Quando ele finalmente se abre, exclamo novamente para assustar-lhe:
- MEU DEUS! - E me viro, de novo, para ela, com cara de espanto. - Venha ver isso, filha! Bem devagarinho, para ela não se assustar.
- O que é, papai, o que é? - Ela fala impaciente, ainda detrás da porta.
- Você vai ver quando chegar aqui, venha logo.
Ela se aproxima vagarosamente. Eu finjo uma tremedeira, ela corre de volta para detrás da porta.
- Vem, filha, não precisa ter medo.
- Me diz o que é, papai!
- Venha logo! - Começo a perder a paciência. - Vou precisar de sua ajuda.
Ela vem logo, para ver o bicho que estava dentro do guarda roupa. Mas não se espanta; está acostumada com esse aqui. Desse tipo de animal, temos vários aqui no bosque, e estimo que já tenhamos comido centenas, se não pouco mais de mil, desses daí.
Está ali, a urina descendo pelas suas calças todas sujas de terra, chorando. Com certeza deve ter visto o que aconteceu com o amigo dele, algumas noites atrás. Observando-o assim, tão patético, não consigo deixar de me lembrar daquele ditado que diz que “O homem é a presa mais perigosa.” Não consigo deixar de rir: a presa mais perigosa, minha -
- Por favor, não. - Ele pede.
- O que você acha que devemos fazer, filha?
- Ela está perdida. - Minha filha me diz.
- Sim, sim, porque só eu sei o caminho da floresta.
- Não é ela, - o bicho homem diz, cuspindo em mim. - Eu sou homem, porra!
Nós gargalhamos, eu e minha filha. Mas ela não deveria gargalhar, não disso; ela não deveria conhecer os palavrões assim tão cedo. Essa podridão toda, toda esta sujeira da humanidade... Estapeio o rosto do bicho homem.
- A gente chama todo mundo que vem aqui de ela, não se preocupa. - Minha filha lhe explica. - Não é ela de menina, é ela de refeição!
- Muito bem, minha filha. - Passo a mão nos cabelos dela.
Ele começa a chorar ainda mais. Neste ponto, já sabe que não pode resistir. Minúsculo como ele é, patético. Quando foi que a humanidade deixou de tratar seu corpo como o templo que é?
Não demora muito para removermos seus pelos e nem para cozinhá-lo: aqui, o caldeirão está sempre quente. Também, não demoramos muito até terminarmos de comer: estávamos famintos.
- E como é que se diz, filha?
- Obrigada, ó grandiosa Ártemis, por essa caça que conduziste a nossa armadilha. - E dando uma golada em seu sangue, prossegue. - E obrigado, ó glorioso Dionísio, por este vinho que puseste em nossa mesa.
- Muito bem, minha filha, muito bem! Você é uma garota muito inteligente, e um dia o mundo estará sob seus pés.
- Ainda bem que não tinha monstros, né papai.
- Sim, filhinha. Não há monstros aqui na nossa floresta.
- Nenhum?
- Nenhum monstro, filha. - Uma meia-verdade; não há nenhum monstro aqui, além de nós dois.
Sorrio para ela. Depois da refeição pesada, é fácil botá-la para dormir. Ela está engordando, ficando a cada dia que passa mais parecida com a mãe. Um dia, quiçá, fique do tamanho dela, da Vênus de Willendorf que um dia chamei de esposa.
Agradeço à Àrtemis, também, por não ter demorado tanto de trazer a presa para cá. Foi por um fio; mais alguns dias de fome, e minha filha teria o mesmo destino da mãe.