Camilla: O senhor deveria tirar a máscara.
Desconhecido: Você acha?
Cassilda: Realmente, é o momento. Todos nós colocamos de lado os nossos disfarces, exceto o senhor.
Desconhecido: Não uso nenhuma máscara.
Camilla: (Apavorada, ao lado de Cassilda.) Nenhuma máscara? Nenhuma máscara!
Não é costume que eu fale de minha vida pessoal, nem em meus escritos e nem em minhas interações sociais. Todavia, creio que aqui isso se faça necessário, pela natureza do pequeno experimento que estou prestes a realizar.
Me chamo Alice O..., e sou professora de Literatura e Escrita Criativa na Universidade Federal do Estado da X… Mamãe e papai, felizmente, só morreram depois de eu ter conquistado tanto a minha independência financeira quanto a maturidade suficiente para superar a morte deles em questão de semanas, sem muitos problemas. Minhas interações sociais se limitam ao extremamente necessário: meu rígido profissionalismo já foi criticado por alguns, mas tenho meus próprios motivos para querer minimizar ao máximo o contato com indivíduos. Desde que me conheço por gente, sou assexual e arromântica – nunca amei rapazes, nunca amei garotas, e também nunca quis ter interações sociais com pessoas de qualquer gênero que fosse. Tenho um pequeno cão, cujo nome é – previsivelmente – Cão, e cujo único propósito em minha casa é alertar-me para a presença de invasores. Tenho também uma arma, que mantenho em casa com o único propósito de me defender dos invasores supracitados (apesar de morar num bairro relativamente seguro, não consigo me sentir bem a menos que eu tenha meios de me defender até mesmo do imprevisível). Também como recurso de defesa contra o imprevisível, compro e acumulo remédios para toda sorte de problemas de saúde. Não tenho o mínimo interesse por amizades, e não consigo me recordar da última vez que ri. Aquilo que me interessa é apenas a literatura, e mais especificamente a ficção especulativa – fantasia, ficção científica e horror. Não fosse pela minha alfabetização, eu já teria tirado a minha própria vida há muito tempo – como sei ler e escrever, gostaria de viver para sempre: existem muitos livros que ainda não li, e muitas ideias que ainda não pus no papel – sei que, até o fim de minha vida, não conseguirei resolver estes dois problemas.
Eis no parágrafo acima – excessivamente longo, talvez, – tudo o que precisam saber sobre mim.
É necessário, também, explicar do que falo quando falo do Rei de Amarelo; tenho certeza que alguns de meus alunos e colegas não leram – e nem lerão – o livro homônimo, e caso este texto um dia seja lido por alguém de fora do corpo acadêmico, tenho certeza também que certos leitores não saberão o que é o Rei de Amarelo.
Existem três: o personagem fictício, a antologia de contos com o mesmo nome, e a peça fictícia.
Não falarei acerca do personagem fictício, pois aqui ele não nos tem serventia alguma.
Sobre a antologia de contos, me limitarei apenas a dizer que recomendo a sua leitura, tanto para leitores em geral – é fácil de se ler, fácil de se entender, e incrivelmente interessante – quanto para escritores de ficção especulativa, pelos mesmos motivos (mas que estes leiam com mais atenção, para ver se aprendem algo.)
O que nos interessa aqui é a peça fictícia. A peça O Rei de Amarelo, existente apenas dentro das páginas da antologia O Rei de Amarelo (e das muitas obras inspiradas pelos contos de Robert Chambers) é extremamente elusiva: ao longo dos contos, conectados pela peça, lemos alguns poucos trechos dela, que não nos ajudam a resolver o quebra-cabeça: apenas acrescentam mais complexidade e alimentam ainda mais o mistério. Um dos trechos mais interessantes da peça é aquele que serve de epígrafe a este texto. Sabemos também que aquele que ler O Rei de Amarelo até o fim enlouquecerá, e que apenas a leitura de certos trechos dela é o suficiente para provocar danos mentais (o próprio trecho da epígrafe é capaz de nos deixar levemente desconfortáveis, e uma leitura mais atenciosa do mesmo apenas piora a situação.)
Esta proposta, a de um texto que é capaz de danificar a mente do leitor, não é uma impossibilidade: afinal de contas, sabemos hoje que a leitura de certos textos e a aquisição de certas informações são capazes de provocar, entre outras aflições, depressão, paranoia, ansiedade, misantropia e misoginia, racismo, e xenofobismo. Tais textos classificamos como Perigos Informacionais (infelizmente, as duas linguagens lusófonas e suas variantes ao redor do mundo não tem um termo próprio), e uma definição científica deles seria a seguinte: textos que são capazes de provocar, no leitor, danos mentais ou psicológicos e/ou permitir que agentes externos causem estes tipos de dano. Caso queiram um exemplo para entender melhor, pesquisem acerca do Basilisco de Roko, ou, se forem corajosos, leiam a obra do finado Mark Fisher (que apesar de não ter sido classificada como perigo informacional, ainda assim se qualifica). Aqui somos lembrados dos monstros do horror cósmico, como os de Lovecraft e seus descendentes espirituais, cuja mera visão é capaz de enlouquecer um ser humano.
De todo modo, nos parece que a produção de Perigos Informacionais é altamente acidental. Isto é, não sabemos de textos que foram designados especificamente com a proposta de causar danos mentais ao leitor. E apesar da definição do termo incluir “agentes externos”, não encontrei exemplos destes nem na vida real e nem na ficção.
Meu objetivo, portanto, é escrever (ou reescrever) a peça O Rei de Amarelo, de tal maneira que ela faça jus à original – isto é, que ela enlouqueça aquele que a ler até o fim. Se terei sucesso nesta empreitada, não posso dizer tão cedo. Documentarei, neste texto, um registro de minhas tentativas.
Dia 28 de Junho de 2019: Para fins de pesquisa, li certos textos classificados (por acadêmicos ou leitores) como Perigo Informacional, e cheguei a conclusão de que a maioria possui características semelhantes:
Primeiro: contém uma verdade desagradável sobre nossa realidade. São capazes de fazer com que o indivíduo se sinta, por assim dizer, protagonista de uma estória de horror cósmico: o indivíduo sente-se isolado e alienado, sente – ou sabe – que a horrorosa verdade que acabou de descobrir é inescapável, que as entidades reais que são transformadas através de metáforas em monstros são, para todos os efeitos, invencíveis, indestrutíveis e inesquecíveis como um trauma: Deuses malignos de carne e osso e maquinário e mãos mecânicas.
Segundo: seguindo a metáfora de que o indivíduo vítima de um perigo informacional sente-se um protagonista de horror cósmico, muitos dos leitores são postos num ciclo vicioso e negativo, que acaba-os a levar para o fundo do poço: como o protagonista de Dagon, de Lovecraft, estes indivíduos buscam se refugiar da realidade em drogas (tornando-se viciados no processo) ou em fantasias (tornando-se esquizofrênicos), isto quando não buscam refúgio na morte, através do suicídio.
Por incrível que pareça, os indivíduos com maior taxa de sobrevivência são aqueles que não se institucionalizam. Isto nos leva à seguinte característica comum.
Terceira: o indivíduo não consegue, de maneira alguma, superar, aturar ou conviver com a verdade. Psicólogos que relataram suas experiências com pacientes pós-contato com perigos informacionais relatam que os tratamentos rotineiros para trauma não conseguem funcionar nos pacientes. Não há uma cura sequer, e nem possibilidade disso. Um psicólogo que escreveu anonimamente uma carta para uma revista científica de certa universidade diz que:
“Seria melhor que os abatêssemos, para os aliviar de sua miséria. Ou isto ou tratamento de choque, para apagarmos as memórias deles; mas não sabemos, claro, se o tratamento de choque seria eficaz. A única cura, por ora, é a morte.”
Quarta: os próprios autores de Perigos Informacionais são, muitas vezes, indivíduos com problemas mentais. Sabemos da luta de Mark Fisher contra a depressão, mas devemos supor também que outros intelectuais que exploravam as mesmas ideias e que também se suicidaram (como David Foster Wallace, Gilles Deleuze e Guy Debord) também sofriam de problemas semelhanças. O suicídio de Debord, inclusive, permanece um mistério: não sabemos se foi um ato revolucionário ou se foi provocado por uma depressão causada pelo seu conhecimento da realidade do espetáculo.
O mesmo vale para indivíduos como Hitler, certos genocidas e assassinos em massa (como Elliot Rodger e Brenton Tarrant.)
Isto conclui as semelhanças entre Perigos Informacionais.