Ás vezes penso que sou muito tola, envergonhada e idiota. Sim, penso isso de mim todas as manhãs. Principalmente quando ele se levanta, pede licença e abandona o autocarro sem olhar como deve ser para mim.
Talvez eu não lhe chame, capte a atenção, ou deve culpa daqueles livros, ele passa tanto tempo a ler no autocarro! Como consegue? Eu fico tão mal disposta. Já o apanhei umas manhãs a cantar sem voz, a imitar uma pequena dança louca enquanto devora com afinco outro livro. Nunca se porta dessa maneira ao meu lado. (Suspiro)
Todas as manhãs é o mesmo ritual, espero na paragem. Entro, desejo que o lugar ao lado dele esteja vazio para o poder ocupar. Talvez hoje sorria quando o vir, lhe diga olá, e pergunte sobre o livro. Mas ele não me conhece, eu não o conheço e não largo a sensação de que o conheço bem melhor do que ele ou eu imaginamos. Talvez sejam os livros, eles dizem muito sobre uma pessoa.
O certo é que está frio. Sinto-me tremer, os ossos a chorar. Os dedos desapareceram e tenho quase a certeza que se os mexer mais um pouco vão cair e espalhar-se pelo passeio. Vamos manter as mãos dentro dos bolsos, sim? Abano a cabeça tentando trazer os cabelos para a frente do rosto para manter as minhas orelhas quentes. Maldito Inverno! Quando crescer serei uma andorinha!
As pessoas começam a juntar-se ao sinal da paragem, alguns miúdos conversam animadamente sobre desenhos animados que assistiram ontem e como a batalha deles foi brutal. Será que ele também gosta dessas coisas? Terá sido como eu, um fã louco de pokémon? Que tinha um gameboy, tazos e outros objectos de colecções? Saberia ele todos os nomes e todas as canções de abertura como eu uma vez soube? Acho que ainda sei uma ou outra, é só esforçar-me um pouco.
Nunca o vi com um livro de Harry Potter, será que não faz a onda dele? Gostará ele de miúdas baixinhas? Ele não é lá muito alto, ideal para mim. Assim consigo ter conversas com alguém sem precisar esticar o pescoço e desesperar no outro dia com um torcicolo. Não precisaria usar saltos, como odeio esse lado da força menina, magoam-me tantos os pés. Será que ele gosta de café? Uma chávena agora seria boa, porém sou mais apreciadora de chocolate quente, não há nada melhor que uma manta, um bom livro e uma chávena desse doce que nos aquece a alma durante o mais frios dos Invernos. Um arrepio percorre-me a espinha.
Ouço o veículo a aproximar-se. Borboletas formam-se no meu ventre e espalham-se que nem fogo de artificio por todo o meu corpo. O meu coração bate a mil, palpita que nem um louco enamorado. Serei mesmo tola? Por guardar uma paixoneta por alguém que nem um nome sei? Ah! Mas eu já o baptizei na minha mente, rapaz dos livros. É o seu nome imaginário, guardarei o nome até ter coragem de meter conversa. Mas, falar sobre o quê? O tempo? As velhinhas do autocarro que se queixam da juventude, porque a juventude é culpa das suas dores nas costas, renite aguda e sabe só Deus mais o quê? Achar-me-ia ele louca? Provavelmente. Até eu me acho louca e estou a disparatar na minha cabeça! Bem, uma coisa boa retiro disto tudo: Os meus dedos estão finalmente quentes e não irão cair num futuro próximo.
O autocarro para, as portas abrem-se quase automaticamente fazendo um barulho chato e aborrecido. Por que é que ninguém inventou aqueles sons personalizados para as portas? Seria tudo mais agradável pela manhã.
Deixo as senhoras de idade entrar. Um senhor, talvez com cinquenta anos faz-me uma vénia e deixa-me passar. Agradeço com um sorriso. Cumprimento o motorista e olho em volta. E ali está ele. Com os phones nos ouvidos, a roer o polegar. Com um novo livro na mão e completamente embrenhado na sua nova leitura. Felizmente está sozinho.
Os nossos olhares encontram-se, e o frio de cinco graus que fazia na cidade simplesmente desvaneceu-se. É, as borboletas assumem o controlo, sinto as faces ruborizarem-se. E avanço com o coração nas mãos na sua direcção. Ocupo o meu lugar ao seu lado. Ele encolhesse parecendo desagradado com o toque do meu ombro no dele. Talvez ele não goste de mulheres? Impossível, aquele olhar...
É desta! Irei conversar com ele. Irei parecer louca, psicótica talvez. Irá ele oferecer-me uma visita a um manicómio? Iria ele rir estupidamente na minha cara e voltar ao seu livro? Engulo em seco. Espero realmente que não.
-- Desculpe, menina -- uma voz de velhinha interrompe o meu momento heróico. Olho para a senhora de idade com um sorriso estampado na cara. Espero que ela não perceba como a quero matar neste momento -- Podia ceder-me o lugar? Não tenho onde mais me sentar.
-- Com certeza -- respondo levantando-me. Deixo-a passar, ajudo-a com os sacos e volto-me para o rapaz do livro verde. Ele não olhar para nós, não olha para mim. Com um suspiro resignado avanço para o meio do autocarro, encosto-me numa das colunas de ferro azul e olho para a minha paixoneta platónica. Talvez um dia ele converse comigo. Talvez um dia eu consiga falar com ele. São muitos "talvez" para um dia só.