Caras crianças do passado. Minhas próprias crianças.
Escrevo isso para todas vocês, mesmo sabendo que essa carta nunca chegará em suas mãos, em nossas mãos. Ainda assim, escreverei esse relato até o ponto final definitivo. Vocês acham esse esforço tolice? Acham uma boa forma de superarmos certas coisas? Já não sei quais seriam suas respostas. Estranho, não é mesmo? Justo eu, a versão futura de todas vocês, não saber quais seriam nossas respostas em cada um dos passados que fizemos parte. Acho que me perdi tanto de cada uma de vocês, conforme o tempo foi passando, que já não sei de seus gostos. Ou será que fui me cansando deles? Me cansando de ser cada uma de nós? Não sei essa resposta.
Independente do que tenha acontecido durante esse trajeto, hoje eu queria vê-las novamente. Encontrar cada uma que viveu nas épocas onde tudo parecia difícil demais. Ver vocês outra vez minhas crianças de sete, doze e quatorze anos. Dar um abraço apertado em cada a uma e dizer que tudo vai ficar bem, embora saiba que as coisas ainda vai demorar a ficarem melhor. Mas elas ficam, podem ter certeza. Há sempre a melhora, para logo piorarem novamente e esse ciclo cansativo se repetir. Eu sei, isso parece muito assustador, mas acredite em mim quando digo que estamos calejadas diante de tais situações. O costume irá se estabelecer em nosso corpo e mente.
Nós vamos conseguir passar por muito coisa, durante nossa curta vida. Parece piada agora, não é mesmo? Vocês se sentem incapazes de conseguirem alguma coisa. Sabemos muito bem como é sentir essa insegurança apertando nossa garganta, impedindo o ar de entrar e nos enlouquecendo pouco a pouco, com esse sentimento desolador. Mas respirem fundo, não deixem isso nos corroer. Todas nós somos mais fortes e resistentes do que pensamos. Se não acreditam em mim, aqui estão as provas:
Minha querida eu de sete anos. Você já deve ter experimentado o quanto outras crianças são cruéis. Deve estar se sentindo deslocada pois nenhuma das outras meninas te querem em seus grupinhos. Você fica se perguntando: o por que disso? Por que ninguém a quer por perto? Isso machuca seu pequeno coração e faz com que se sinta uma esquisita.
É duro ver outras crianças brincando felizes entre si, enquanto fica a observar toda aquela alegria alheia. Mas é pior ainda quando tu toma coragem, para se juntar a eles, e é afastada com palavras muito cruéis, as quais não deveriam sair da bocas de crianças. Você chora escondida e reza para não ter de voltar a escola no dia seguinte. Cada amizade negada de forma humilhante faz com que sua desconfiança contra nasça. Nossa timidez apenas cresce.
Porém, tudo isso vai passar e tu irá se acostumar a essa fase. Na verdade, irá se descobrir como uma aluna excelente e uma amante da leitura, desde muito nova. Fará amizade com os livros, cujo as histórias contidas naquelas páginas maravilhosas lhe ajudarão a sair disso mais forte.
Minha querida eu de doze anos. Você já está mais do que acostumada a rejeição das outras crianças, ao ponto de optar por ficar sozinha com um livro em mãos. Mas, infelizmente, não será apenas na escola que terá de lidar com a solidão.
Quando estiver sozinha durante as tardes em casa, sua única companheira será a televisão e novelas chatas, que você acabou aprendendo a gostar por obrigação. Nossos pais iram trabalhar durante o dia inteiro, ao passo que nós iremos estudar na parte da manhã e nossos irmãos na tarde. Então se acostume rápido, pois ficará sozinha por todo esse período. Ah, antes que eu me esqueça, pode se acostumar aos serviços domésticos, porque a responsabilidade de cuidar da casa será nossa, já que somos a única filha dessa casa.
Irá sentir muita falta de nossa mãe, especialmente nas tempestades com trovões, esses que tanto assombraram essa parte de nossa vida. Mas saiba: ela sempre irá te ligar quando isso acontecer e você sempre irá implorar, quase aos prantos, para que ela volte e fique contigo. Mamãe irá responder, com o coração cortado por estarmos assim, que não pode e tentará te acalmar da melhor forma.
Deve estar assustada com isso, mas se tranquilize. Garanto a ti que coisas boas também acontecerão nesse período. Conforme nossos irmãos começarem a estudar de manhã, mamãe irá colocar os três em um curso de música. Seremos felizes lá, pois iremos fazer amigos de verdade (por mais que perderemos o contato com eles). Também será ali que você vai ter seu primeiro e único namoradinho. Uma relação inocente que você amou até o fim desta, mas isso é um segredo até os dias de hoje, então nada de contar aos nossos pais certo?
E por último, não poderia deixar você de fora minha querida eu de quatorze. A ti lhe dou um concelho valioso: tenha paciência e não se abale.
Essa será uma época difícil para nós. Você sairá do curso para se dedicar aos estudos, mas esperança de passar e começar a estudar no IF. Parabéns menina, pois você conseguiu. Mesmo com nosso humor dando indícios de seus problemas, você não desistiu. Passou horas e mais horas estudando, após voltar do colégio e no fim conseguimos a vitória.
Porém, não é apenas essa pressão que fez da nossa vida um belo inferno. Não é tão “fácil” assim e você já sabe bem disso. O que vai te abalar ainda mais vai ser uma amizade que, para nós, parecia duradoura mas que se mostrou frágil demais. Iremos cortar laços com uma amiga tão querida, que você admira tanto. Sim, é justo dessa pessoa que estou falando, por isso te dou mais um concelho: cuidado com a pessoa “J". Ela queria ser algo bem mais do que uma amiga e você era ingênua demais para perceber. No final, o ciúme dela irá fazer com que você tome a única decisão inteligente, se afastando de “J". Acredite em mim, foi bem melhor dessa forma. Você ainda não percebe isso, mas essa pessoa estava te manipulando, tentando te afastar de seus amigos de verdade, para ficar com você.
Essa ruptura na “amizade” vai ser dolorosa, não vou mentir. Mas você vai descobrir um refúgio no mundo maravilhoso da escrita, divagando em inúmeros enredos (que, até o atual momento, nunca o tornamos reais) e se curando com suas primeiras histórias. Com o tempo “J" não vai passar de uma lembrança confusa.
Viram minhas crianças do passado? Somos fortes e conseguimos passar pelos obstáculos de nossa vida, independente da forma ou do tempo que levamos para isso. Não quero assustá-las, ainda mais, com meus relatos de nossa adolescência. Acreditem em mim quando falo que, nem mesmo eu, consigo entender o que foi essa época. Além disso, não é necessário mais nada para passar minha mensagem.
Termino essa carta pedindo para cada uma de vocês a amarem nossas conquistas e qualidades, mesmo que pareçam pouca coisa. Foram elas que nos impulsionaram até os dias de hoje. Também amém nossas e derrotas e defeitos, mesmo que nossa vontade sejam esquecê-los. Afinal, foram e são eles que nos moldam para sermos melhores.
Para cada uma das minhas crianças do passado.
Com amor, o seu eu do futuro.