Antes de me fixar no Butantã, morei no centro, no bairro oriental da Liberdade, ainda que fosse um quartinho e uma cozinha, que juntos, não chegavam a 5 metros quadrados, eu gostava de morar no centro da Paulicéia desvairada.
Na Rua Conselheiro Furtado, de frente com a boate coreana um portão de ferro fundido abria para um longo corredor, um casarão antigo, que o dono transformou em oito quartos, oito portas e oito janelas, no fundo, o banheiro servia a todos, bem como os dois tanques.
A vizinhança era constituída de migrantes, um mineiro dois alagoanos, um baiano e quatro pernambucanos, uma verdadeira colcha de retalhos, por ser o único paulistano, além do dono, todos os vizinhos gostavam de me expor seus costumes musicais e suas histórias, eu tinha 17 anos e absorvia tudo, com a curiosidade de um guri de seis anos.
Algumas noites de balada, eu não conseguia voltar para casa e me hospedava onde estava, quando apontava no portão, todos os vizinhos vinham me ver, eram tempos de perigo e todos me tinham como um irmão caçula, para alguns, eu era um filho.
Todos os dias, exatamente ás 18:00 horas, do terceiro andar do prédio ao lado, cuja frente ficava na Rua da Glória, vinham os mesmos sons.
Primeiro um bater agonizante de aparelhos metálicos contra o assoalho de madeira, depois o abrir da tampa do piano que, de velho rangia alto, em seguida o torturante estalar de dedos e, por fim, as mãos batiam nas teclas do piano, nervosos num primeiro momento e, se enchia o ar de música, uma mais bela que a outra.
Nesse tempo, que durava uma hora e meia exatamente, todos paravam seus afazeres e ouviam em silêncio, pessoas de gostos diversos eram reféns da música do menino que, por conta de uma paralisia infantil, andava, à custa de esforço, apoiado em próteses metálicas.
Não fazíamos ideia de como era a aparência do menino, mas, nos era uma lição, geralmente eu me deitava no colchão e cerrava os olhos, permitindo que a música me levasse por mundos imaginários, talvez, sem a exatidão comprovada da data, isso se deu em 1984.
Num belo sábado, com todo mundo no corredor, apreciando um malte, deu 18:00 horas e a música não veio, todos olhamos para janela do apartamento e as luzes estavam apagadas, tristes nos recolhemos, parecia que nossas vidas não estavam completas.
Eu trabalhava na Rua Lavapés, no horário de almoço fui ao prédio do menino e o porteiro me contou que ele estava doente e internado no Hospital Adventista, me dei conta que nunca o havia visto.
Na saída, comprei um ramo de flores, Nany, a florista filipina, me trouxe as últimas rosas do estoque e se desculpou... me fui ao hospital, menti que era maior de idade e era amigo da família, no meio da minha conversa com a recepcionista, uma senhora que vestia negro e tinha um olhar sofrido, acenou para ela.
Veio até mim e segurou meu braço, como a conduzir-me e, numa voz suave disse:
_Ele vai receber a todos, mas, tem muita gente, nunca pensei que meu filho tivesse tantos amigos assim.
Quando cheguei à sala de espera, tomei um susto.
Todos os amigos do corredor estavam lá, bem como todos os vizinhos dos quarteirões.