Sob o céu pré-histórico, esquentado por uma fogueira improvisada por uma de suas mulheres, dorme o Patriarca. Sua cabeça descansa em cima de seus braços, grossos e peludos, e de barriga para cima o seu abdômen sobe e desce com sua respiração regular. Está sonhando; cavalga um cervo grande de galhada magnífica, que galopa descontrolado – mas calmo – por uma clareira acima da qual voam borboletas das mais variadas cores, e por onde passa um rio repleto de peixinhos prateados, cuja pele reflete a luz de maneiras belíssimas quando pulam para fora da água e permanecem no ar por instantes efêmeros. Ainda inconsciente, a expressão serena do Patriarca que dorme é substituída por uma de alegria.
É acordado, junto com os outros de sua tribo, pelo choro do último de seus filhos.
– Fome. – Diz uma mulher.
Um homem – o braço direito do Patriarca – levanta do chão onde dormia com um salto, e com passos velozes vai até a caverna onde se guardam as lanças para caça. Ainda não dominaram a arte de armazenar alimentos para o consumo futuro, de modo que o que se abate é devorado no mesmo dia. O Patriarca sente um frio ocupar a totalidade de seu estômago – sabe que não é bom caçar quando se acabou de acordar, o corpo ainda não está pronto. Pensa em ficar ali deitado, repousando, e deixar que o seu braço direito vá caçar sozinho, ou com outro membro da tribo, mas a mulher que carrega seu filho passa por ele e, olhando a face da criança, ainda não manchada pela vida, se enche de energia. É um bom pai e um bom homem; na verdade é o homem perfeito, e nesta época da não-história humana a perfeição não era o atributo das pessoas desinteressantes, e sim daquelas que eram vitais à sobrevivência de qualquer tribo.
Vai para dentro da caverna encontrar o seu braço direito, cujos olhos ainda estão coloridos do vermelho da noite maldormida. O Sol ainda não fez sua aparição no céu, mas está quase lá, de modo que a luz que ilumina a Pangeia é fraca, e ainda inspira o sono.
– Você fica. – Diz o Patriarca. – Eu vou.
O braço-direito assente; ele sabe que o Patriarca sabe muito bem o que faz. Com tantas lanças na mão quando pôde pegar, e ainda mais algumas amarradas porcamente às suas costas, o Patriarca sai da caverna e é beijado pelas suas muitas mulheres, que estão com os olhos cheios d’água porque temem que ele vá caçar sozinho, mas que não podem fazer nada quanto a isso, porque ainda faltam milhares de anos para que a humanidade domine a arte do argumento. Ele beija suas mulheres, que não são completamente suas, e beija seus filhos e filhas, que também não são completamente dele, mas que ele ama de qualquer modo.
Quando está distante o suficiente para que ninguém mais o possa ver, chacoalha a cabeça para tirar da mente a imagem do cervo que viu no sonho, e que agora lhe rouba a concentração. Estar com a mente vazia é um dos primeiros requisitos para que se tenha uma boa caçada. Mas não funciona: o cervo ainda está lá, junto com as borboletas e os peixinhos e os lírios e as rosas e as grandiosas árvores que abrigam um arco-íris de aves que cantam.
Adentra agora o que, para os olhos de um anacronista, pareceria o Jardim do Éden. Sua pele negra o tornando quase parte da sombra que as enormes folhas das árvores pintam no solo. O delicado som de água corrente chega aos seus ouvidos atentos, e cuidando para não pisar nos pequenos animaizinhos que correm da raiz de uma árvore à raiz de outra, os passos do Patriarca vão em direção ao rio que corre pela floresta. Vez ou outra o espaço entre as folhas deixa passar um raio de luz vindo do Astro Rei, que ilumina a beleza da natureza e faz com que as cores do arco-íris presentes na fauna e na flora saltem aos olhos.
Percorre trilhas pelas quais já caminhou antes, mas é a primeira vez que o Patriarca percebe a enorme diversidade da floresta; as mais variadas formas, o movimento dos pequenos animais e as ilusões de ótica que surgem do encontro de suas cores com as cores das flores e folhas e as frutinhas nos arbustos que se espalham por toda a floresta. Há toda uma sonoplastia, também; o farfalhar de asas, os galhos sendo pisoteados por patas que não os quebram mas produzem através deles um doce e delicado som, nozes sendo mordidas, o distante som de água corrente, que se torna mais audível a medida que o Patriarca aproxima-se de sua fonte:
Uma clareira. Não: a clareira. A mesma que viu em seu sonho, mas agora muito mais bela, pois não há a névoa característica das paisagens oníricas pairando sobre ela, e a mente do Patriarca, que observa a magnífica vista, agora está completamente consciente, ao contrário de como estava durante o sono.
E está lá, também, o cervo, em todas as suas cores, com sua galhada magnífica. Não notou a presença do Patriarca, que silenciosamente se aproxima. Tanta carne! O suficiente para alimentar a pequena tribo por um dia inteiro. O cervo está com a cabeça abaixada, dando pequenas goladas na água do rio que corre. Está relaxado, desatento, e o Patriarca caminha agachado em direção do enorme animal. O grupo musical da natureza parece parar de tocar, e agora tudo o que se escuta é o som da língua azul do animal entrando e saindo da água. E a luz do Astro Rei parece agora iluminar exclusivamente o cervo, de modo que todas as outras formas e cores desaparecem; tudo está imerso em trevas, com exceção do animal e do caçador, que agora salta para cima de sua presa, segurando uma pequena lança em cada mão.
Perfura os dois lados do pescoço do animal, que tenta recuar mas desaba ao chão antes que esteja mais longe do que alguns poucos centímetros do rio, de modo que, com o corpo no chão, a cabeça está enfiada dentro da água, poluindo o rio com seu sangue puro. O Patriarca vai até a água, intencionando colocar completamente o animal na terra, mas é parado por uma visão:
Em meio a água semitransparente, agora colorida de vermelho, está o seu reflexo. Sob o Sol pré-histórico, ainda não existem pensamentos complexos, nem eufemismos que possam aliviar o que o caçador sente: a culpa lhe consome, lhe queima a carne e agora parece estar marcado em seus olhos, que já não são mais os mesmos.
E a humanidade, que vive debaixo das estrelas, sem ainda ter inventado as luzes para ofuscá-las, ainda não desenvolveu a arte da retórica, a arte da argumentação, da ginástica mental que consegue convencer os homens de que seus crimes contra Gaia são necessários, parte do processo, e o Patriarca consegue ver, com clareza em meio ao sangue na água, toda a dor que acabou de causar.
Começa a chover, as gotas caindo pesadas em seu corpo, o sangue em suas mãos caindo ao chão e fazendo com que sua pele pareça completamente limpa, como se não houvesse acabado de cometer tamanho pecado. O sangue do animal sai do corpo do Patriarca, que não consegue desviar os olhos da cena do crime, mas se seu corpo está limpo, o mesmo não pode ser dito de sua consciência, que está como a água do rio, repleta de sangue.
Seu crime lhe está claro, e para ele está claro também a sua punição.
Horas depois, o Braço Direito encontra o Patriarca. Duas lanças perfuram os dois lados de seu pescoço. Seu corpo está fora do rio, mas a cabeça está imersa dentro dele. Em sua face, uma expressão estranha: não de dor, mas de alívio.
– Um animal grande pegou ele. – O Braço Direito diz para a tribo, tendo retirado as lanças do pescoço do Patriarca.
Mas ele sabe que não foi bem isso. Que animal seria este? Maior e mais forte do que o humano, que já neste momento estava no topo da cadeia alimentar? Capaz de matar tão eficientemente, sem brutalidade alguma… tão rapidamente que não dá tempo sequer para a face de sua vítima contorcer-se em dor?
Se monstros já tivessem sido inventados, teriam dito que quem derrubou o grande patriarca foi um deles.
E se a consciência humana já tivesse sido descoberta, saberiam que ela era a culpada.