Risadas no cemitério
Nilton Victorino Filho
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 29/11/20 19:56
Editado: 29/11/20 20:07
Avaliação: 9.45
Tempo de Leitura: 9min a 12min
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Capítulo Único Risadas no cemitério

Quando cheguei ao Dom Duarte, em 1977, tinha 10 anos e estava no ginásio.

Não parece grande coisa mas, isso me deixava em vantagem, com relação aos meus amigos, primeiro que eu estava apto a trabalhar e isso me tirava do pavilhão, não tinha que trabalhar na enxada, trabalhava na olaria, na parte da manhã e à tarde eu estudava no Grupo Escolar anexo ao E.D. D, a maioria deles, ainda que fossem mais velhos, estudavam pela manhã, pela tarde, ficavam no pavilhão, ou seja, enxada e pino.

A outra vantagem era capilar, que também não parece grande coisa, mas, lembre-se que estamos nos anos 70... época de cabeleiras avantajados, calças boca de sino, suspensórios e chinelos franciscanos.

Reparem que eu comecei a frase com..." cabeleiras avantajadas", isso sim, caro leitor, fazia um negão feliz, em 1977.

Faltando poucos dias para o início das aulas, fomos ao barbeiro, o Castro cortava cabelos numa salinha, ao lado do teatro, era um sujeito calmo, que pigarreava a todo instante, pouco falava e ouvia a radio Jovem Pan, eu também ouvia, só que, à noite, na transmissão do meu Corinthians. Na sala só cabiam quatro, éramos uns 30, enquanto ele cortava o cabelo de um, três esperavam sentados nas cadeiras, o resto ficava lá fora, alguns em pânico, posto que, dali a alguns minutos ficariam carecas, era hábito, na época o corte do exercito (corte reco), uma pequena faixa de cabelo, no alto da cabeça e o resto raspado na zero, (Nossa Mãe, só de lembrar, me arrepia).

Sucessivamente, vi meus amigos entrando na sala com cabelos e saindo sem eles, a cara deles era um misto de saudade e melancolia, entrei na sala e fiquei na cadeira de espera, na minha sequencia vinham o Viana e o Téquinha, esse segundo exibia uma juba tão grande, que parecia o próprio Don King.

O barbeiro acabou de raspar mais um, minha vez, sentei-me na cadeira, acomodei-me, ele ajeitou aquela camisa frontal e aquela proteção do pescoço, pigarreou e virou-se para o espelho, pegou a máquina, limpou-a e ligou, veio em minha direção, com ela ligada e sem pente, quando a maquina ia encontrar o meu cabelo... Esquivei tranquilo e disse:

_Auto lá, amizade. Aqui é ginásio!

O barbeiro pareceu não acreditar, olhou pros meninos que esperavam, eles confirmaram com suas cabeças´(ou devo dizer com os seus cabelos), o barbeiro sorriu, jogou a maquina e apanhou a tesoura, com muito capricho, baixou e arredondou. Assim começou uma boa amizade.

Por via das dúvidas, fui passear, não queria ver meus amigos naquela hora, se os visse, iria rir muito... consequentemente, eu iria apanhar.

As aulas no Grupo Escolar começavam às 03h30min horas da tarde e terminavam às 8:15 da noite, por conta disso, quando algum aluno chamava o outro pra brigar na saída, não usava a célebre frase de todas as escolas (_Vou te pegar na saída), no

Educandário Dom Duarte

, quando alguém queria deixar claro que iria brigar, dizia em voz alta:

_Aí, fulano... Oito e quinze !!! Pronto, assim todos sabiam que haveria briga na saída.

No final do horário da escola eu tinha que correr pro pavilhão, era muito divertido percorrer o caminho da escola até o lar 14, sempre uma aventura, quando eu chegava, enquanto os amigos já estavam na cama, eu ainda ia tomar banho e jantar, acabava assistindo televisão com os grandes, que chegavam dos seus empregos nessa hora.

Nos dias de aulas vagas, eu não subia para o lar, ali perto da portaria, na entrada do campão, existe uma escada de alvenaria, conforme os grandes chegavam dos seus empregos, ficavam por ali, alguns esperavam os amigos que moravam no mesmo pavilhão, pra subirem acompanhados, outros ficavam ali pra conversar, algumas meninas da escola, namoravam com os caras, saíam da escola e desciam pra lá.

Nós, os menores, ficávamos com eles, porque queríamos ser como eles.

Numa noite, tivemos duas ultimas aulas vagas, eu, o Brito do 17 e o João do 24, o ultimo, por ter no queixo o formato de uma nádega, era chamado de João de Bunda, mas é claro que só os grandes o podiam chamar assim, o João era forte, bateria em nós.

Naquela noite iria passar uma final de campeonato na televisão, por conta disso, os grandes não ficaram na escada, como era de hábito, decepção total, ficamos os três, sozinhos e desolados, num silencio de morte, dava pra ouvir os grilos no mato.

Eu já ia propor que fôssemos embora, a noite estava perdida... repentinamente ouvimos um barulho alto e vimos um clarão, olhamos pra cima e vimos aquela maravilha sobre as nossa cabeças.

O balão em formato de charuto sobrevoava o campo em nossa direção, ficamos em silencio, maravilhados, estupefatos com a beleza do seu voo, descia feito uma nave que vai aterrissar, a chama a tocar na grama, corremos na direção dele, não podíamos deixar que ele batesse a boca no chão e se queimasse, vimos que o Augusto do 17, que havia ido embora, descia o barranco do campão.

_Tá na mão. Ele gritou.

_Tá na mão o cacete._Respondeu o Brito.

Já estávamos chegando perto, as chamas nos iluminava, mais uns passos, uns poucos passos, pude sentir o seu calor... de repente, bateu uma aragem e ele nos escapou, ganhou altura e foi-se, atravessou o campo e continuou, chocou-se contra o galho do pé de eucalipto, que ficava depois da linha de fundo, à direita e continuou a viagem, atravessou a estrada do campão, sobrevoou a Sabesp e saiu do Educandário, nós ainda atrás do bruto, atravessou a Heitor Eiras Garcia e entrou em território do Cemitério Israelita, quando invadimos a Sabesp, o Augusto disse que não iria entrar no cemitério e voltou pro campo, nem olhamos pra trás, não dava pra conversar, proprietários de balão não ficam de conversinhas.

Na época, não havia um muro naquela parte do cemitério, só uma cerca de arame farpado, nem paramos, passamos por ela e ganhamos território, o balão perdia altura e ganhava velocidade, ladeamos o riozinho em direção à portaria, seguimos a estrada à direita, percebemos uma gritaria e vinha da direção de onde ele baixara, entre os túmulos do campo santo, ele se acomodava, alguns meninos o cercavam, quatro meninos maiores que o João, que era o mais alto de nós.

Desanimados, deixamo-nos ficar ali, sem sermos vistos, além dos quatro, que já estavam lá, desciam mais cinco na estradinha, eram da favela da Vila Operária, o Brito, já sentado numa lapide falou:

_E agora? Brigar ou correr? Falou isso quase sussurrando.

_Bora, sair na porrada com todo mundo, pegar o balão e sair fora. Falei isso de brincadeira, desde cedo eu tenho a mania de fazer piada em horas impróprias.

O João, que ainda arfava, por conta da corrida, ao ouvir a minha proposta soltou uma gargalhada, dessas gargalhadas de Exu caveira, sua voz reverberou no campo santo e repetiu no eco, os meninos que desciam, puseram-se a correr de medo, os que estavam perto do balão, ameaçaram de correr, olharam pro nosso lado e os túmulos à nossa frente, impedia que eles nos vissem, ficaram parados, preparados pra correr.

O Brito, o João e eu, rimos juntos, as vozes juntas ecoaram, os meninos correram gritando.

Recolhemos o balão, com todo o cuidado do mundo, em silencio. No caminho de volta, o João, que tremia copiosamente, quebrou o silencio:

_Vamos embora logo dessa porra, tenho muito medo de cemitérios, só vim por causa de vocês.

Eu e o Brito respondemos ao mesmo tempo:

_Idem.

Voltamos, pelo mesmo caminho, chegamos à escada, passamos e sentamos embaixo do mastro das bandeiras, voltados pro campão, já não havia cansaço, a lua cheia brilhando, saía de trás do bambuzal, como se festejasse nossa proeza, ficamos ali, conversando sobre tudo aquilo.

Depois do que o João disse, percebi que o medo era igual em todos, o medo fazia parte de todo ser humano, eu continuei a correr, achando que eles não tinham medo, eles acharam que eu não tinha medo, no dia seguinte, iríamos contar a aventura e diríamos que ninguém de nós teve um pingo de medo.

Decidimos que o João levaria o balão pro 24, provavelmente, o soltaríamos no fim de semana, ouvimos a sirene da escola, os estudantes saíam, as luzes das salas começavam a se apagar, seguimos a estrada de paralelepípedos, rumo ao aprendizado, juntamo-nos ao grupo que saía da escola, em frente ao aprendizado o João se despediu de nós, seguiu à direita, ia pegar a estrada do 21, entramos à esquerda e seguimos, no jardim do teatro, o Brito se despediu de mim, ia seguir a subida do 15, rumo ao 17 e eu segui a estrada da jaqueira, o milharal do 14 não me punha medo algum, a lua cheia iluminava o caminho, fui pra debaixo da jaqueira e chutei de leve a vegetação, abaixei-me e resgatei meu material escolar, dentro de uma sacola plástica, tirei-o e enrolei o plástico, o material embaixo do braço e a sacola no bolso.

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Apreciadores (7)
Comentários (5)
Postado 02/12/20 16:22

Saudações! Estava querendo passar nos seus textos faz um tempo e finalmente chego num deles. É uma leitura bem agradável e leve, quase como se estivesse ouvindo você numa conversa. O relato segue interessante até o final e o humor é bem orgânico e só soma ao enredo. Meus parabéns! Me peguei rindo no final com as tais risadas no cemitério. Até a próxima!

Postado 01/02/21 01:14

Suas obras me trazem vida! Até mesmo as mais mórbidas e quem nunca riu em cemitério? Quebras de expectativa são como mágica, mas por um lado, suas obras nunca quebram minhas expectativas, sempre que adentro nas suas memórias, amigo Nilton, me sinto plenamente imersa e acolhida!

Parabéns a mais uma obra espetacular!

Postado 02/02/21 23:10

Como sempre, você nos presenteia com obras maravilhosas.

Obrigada por compartilhar conosco!

Parabéns, Nilton ♥

Postado 19/10/21 13:20

Imagino só o orgulho que você saiu da barbearia com seu cabelo! Mas tadinho dos seus amigos que tiveram que raspar...

Essa reviravolta final foi muito legal, porque nos faz ver algo muito importante: todos nós podemos ter medo!

Ótimo texto, Sr. Nilton <3

Postado 25/11/21 16:10

A leitura dessa obra trouxe uma grande reflexão acerca do medo, além de nos presentear com mais uma de suas aventuras.

Muito bom como sempre, senhor Nilton!