Em memória do amigo Betão
Nilton Victorino Filho
Tipo: Conto ou Crônica
Postado: 18/11/20 21:05
Editado: 18/11/20 21:06
Gênero(s): Comédia Cotidiano
Avaliação: Não avaliado
Tempo de Leitura: 5min a 7min
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Livre para todos os públicos
Capítulo Único Em memória do amigo Betão

Era o ano de 1980, inverno rigoroso, tanto que, me demorei para decidir se ia ficar no pavilhão ou ia sair com os amigos, pegar um som, posto que, era sábado.

Quando decidi, fui atrasado, o ponto de encontro era sempre o mesmo, sempre íamos para a rua Osvaldo Libarino, ali, na ponta da favela, juntávamos a turma e andávamos à cata dos bailes, lá moravam o Biá, o Cesar e o Galego.

Quando cheguei, pude ver que, ao lado da pick-up Ford do Macalé, que já não andava há muito tempo, havia uma fogueira e três meninos se aqueciam nela, eram os dois Djalmas e o Betão.

Os dois Djalmas eram internos do Educandário Dom Duarte feito eu, o Betão morava com sua família nessa rua, gostava de uma boa piada e quando começava a rir, dava trabalho para parar.

Era daqueles sujeitos da paz, de boas amizades e muitas piadas, para falar a verdade, já começava a graça na família... sendo filho de santista e tendo dois irmãos corintianos, a peça torcia para o palmeiras, ou seja: piada, logo de testa.

Quando me juntei a eles, era o que ele fazia mesmo, os outros dois riam compulsivamente, perguntei onde estava a turma, ele disse que alguns tinham ido para a Flamengo, mas lá estava devagar, resolveram conferir o baile da Santa Barbara, perto do final do João XXIII, era assim que funcionava... o pessoal saia no rolê pelo bairro, cada grupo para um lado, depois todos se juntavam no melhor som, a gente podia ficar tranquilo, que dali à poucos, alguém viria dizer qual o melhor rumo a se tomar, a noite ainda era uma criança.

Enquanto ouvia as piadas do Betão, aquecia as mãos no calor da fogueira e dava uns goles no copo de vinho seco, que passava de mão em mão (à isso se dava o nome de "fazer a carioca").

Enquanto ele falava, ajeitava o cabelo, para arredondar o black, os olhos verdes brilhavam no reflexo das chamas, chamá-lo de Betão já era uma piada, ele era menor que o irmão mais novo, o Rogério, a mãe tinha lhe dado o nome do rei Roberto Carlos e, é claro que isso era, sempre motivo de risos.

Em toda a turma, ele era o único que não tinha diferenças com ninguém, quando havia uma discussão entre os amigos, lá estava o Betão pra separar os desafetos, boa alma.

Ficamos nessa madorna um bom tempo, repentinamente, ouvimos uma correria, alguns meninos desciam a João de Lourenzo em desespero, foram ao nosso encontro, o Reginaldo ainda arfando e perguntou da turma, disse que no meio do baile na Flamengo, o tal do Caveira havia prendido os nossos amigos, queria uma fita que ele não soube explicar.

Caveira era um sujeito de maus bofes, que se denominava dono do Jardim São Jorge, o Pelézinho do 12 e o Coquinho do 24 estavam sob o seu controle, disse o Reginaldo (que era primo do Betão), se a turma não corresse, eles iam sofrer.

Os Djalmas eram pivetes, eram corajosos, mas, pivetes... eu e o Betão nos entreolhamos e foi o Betão quem falou:

_ É... Niltão, não vai dar para escapar dessa não.

Eu não falei nada, meus amigos estavam em perigo e, ainda que fossemos o time reserva e a probabilidade de a gente tomar uma surra fosse grande... amigo é amigo.

Enquanto percorríamos o caminho até lá senti a adrenalina explodir, pensava na briga, eu tinha quase 14 anos e boa estatura, os outros quatro eram baixinhos, tudo bem, eu teria que brigar por mim e pelos outros, e pensar que uma hora dessas eu estaria dormindo.

Deu para saber onde era o lugar certo pela música, tocava Bar Kays e, ao nos ver, o DJ puxou a agulha do toca discos e ficou de costas, na defesa do aparelho de som.

Ganhei a sala, os meus amigos atrás de mim, o Caveira saiu da cozinha, ela media uns 4 dedos a mais que a minha altura, usava óculos escuros, caminhou ao meu encontro, ergui os braços e as mão, em gesto de Angola, ele fez o mesmo, ficamos numa distância de menos de um palmo, um do outro.

Quando eu ia começar o dialogo, o Caveira deu um pulo para traz, os outros membros da quadrilha fizeram o mesmo, olhei para traz e pude entender.

Já do meu lado, o Betão gritava, com a mão direita enfiada nas calças:

_Cadê os meus amigos???

Nunca havia visto o meu amigo daquele jeito, parecia um psicopata, dois dos amigos do Caveira pularam a janela e sumiram na noite, enquanto ele gritava, pigarreava e piscava, até eu fiquei com medo.

O Pelézinho e o Coquinho saíram de um dos quartos e se postaram na nossa frente, o Betão fez sinal com a cabeça, para gente sair, ficou ali, olhos fixos nos caras, quando percebeu que já estávamos todos do lado de fora, saiu, ainda de frente pra eles.

Ganhamos a rua em silencio, ninguém saiu da casa, caminhamos dois ou três quarteirões e o Betão rompeu o silêncio:

_Niltão, tá na hora de a gente correr.

_Correr pra que, você não está com o canhão na mão???

_Quando foi que eu disse isso???

Aí bateu o pânico, iniciamos a corrida, deu para escutar alguns tiros, mas já estávamos no nosso território.

Enquanto corríamos, ao lado do portão do cemitério, o som de sua gargalhada desceu conosco até a portaria do Educa.

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Comentários (1)
Postado 18/01/21 18:39

Que delícia de narrativa, Nilton, me senti um observador dentro da história: você sabe muito bem como escrever algo imersivo.

Parabéns, e saudades de teus textos <3.