Após ligar o velho rádio colocado em cima de uma das prateleiras metálicas, colocou as luvas brancas de látex ao som de Still Got the Blues e balançou o corpo de modo dramático ao se aproximar da maca também metálica. Puxou o grande tecido branco e revelou o corpo do homem de meia idade que seria seu acompanhante naquela bela madrugada, morreu em um acidente de carro que não se sabia ao certo se havia sido acidente, mas daí já era com a polícia e não com ela.
– I still got the blues for you – cantarolou enquanto espalhava a base escura pelo rosto pálido e gelado.
Adorava os mortos, eles sempre lhe contavam as melhores e mais diferentes histórias. Uma língua em um estado diferente podia falar mais na sala de necrópsia do que falou em sua vida inteira. E que grandes corações eles possuíam. Vísceras imensas, tripas sentimentais e um estômago cheio de poesia… tudo era uma questão de interpretar e entender o que o morto estava tentando lhe dizer. As noites eram geralmente longas mas animadas, ela nunca se deixava abalar com as histórias trágicas, sempre entrava no embalo e fazia seu funeral comemorativo particular, afinal, os mortos lhe garantiam o pão de cada dia.
Tinha um carinho especial por cada um, deu-lhe a cor e a saúde de volta com uma tinta vermelha semelhante a groselha nas bochechas e nos lábios, o nome do morto era Joe Hammilton, nome de quem gostava de uma música mais antiga e um cabelo penteado com gel. Quando estava pronto, já dentro de sua cama eterna, colorou as belas flores de plástico e arrumou os detalhes da vestimenta do que um dia fora um grande homem. Ela respeitava imensamente seus clientes, havia gostado da companhia de Joe e decidiu ficar por poucos cinco minutos em seu funeral, o blues tocava em sua cabeça enquanto o espiava de longe. Lá estava seu companheiro de uma noite, lá estava o morto, num caixão muito bem embalado, ao seu lado estavam os sete herdeiros, cada um caprichando em seu papel de familiar inconsolável.
Lhe entristecia saber que aquela era uma realidade diária, talvez para o amante de blues aquele fosse o preço a se pagar por morrer jovem e deixar uma fortuna de herança.
Quando seu turno acabou, tomou um longo banho e entrou no carro onde o rádio coincidentemente tocava Still Got the Blues e foi até sua casa onde, apesar de cansado, seu marido policial que investigava o caso da misteriosa morte de Joe Hammilton havia lhe preparado um belo jantar italiano com muito vinho tinto, começando os preparativos para aquela noite. Ah, como amava aquele homem! Um típico francês bonitão que adorava usar o romance e a morte que a esposa emanava para lhe explicar curiosos fatos, como por exemplo: o fato de que os franceses usavam a expressão le petit mort (a pequena morte) para se referir ao orgasmo.
Com o blues ainda tocando, os dois subiram as escadas como dançarinos de tango que bailavam sobre um chão de fogo, correndo até o quarto. Afinal, sem a pequena morte de toda noite, como sobreviver à vida de cada dia?