A famigerada Mansão Infernal havia tido um dia mais que especial: naquela data, Ternura havia completado seis anos de uma vida plena e feliz. Houve uma festa muito bonita, com direito a um incêndio de artifício providenciado por Diablair, para o deleite da pequenina aniversariante e toda a sua familía. O Soberano Iníquo até chegou a usar o chapéu de caubói de Ternura e gritar um "irrá" quando ganhou seu pedaço da guloseima, o que fez até mesmo a Tristeza gargalhar com tão inusitado fato. Ele inclusive surpreendeu a todos quando executou com perfeição a Valsa das Dez Lâminas com Tortura e a Imperatriz, algo totalmente inesperado já que ele literalmente adentrou na coreografia tão logo ela foi iniciada.
E após o fim da festa, arrumação da casa e todos irem para seus devidos aposentos (exceto Imperatriz e Tortura, que saíram "escondidas" para uma missão secreta de assassinato), Sarah e Diablair consumaram sua união de um modo ainda mais afetuoso e intenso por cerca de cinco horas, em uma entrega plena um ao outro. Agora, a bela mulher estava adormecida sobre o peitoral um tanto massivo de seu amado, com um suave sorriso nos lábios. O homem afagava a cabeleira púrpura dela, aspirando levemente o delicado perfume que ela exalava. Com cuidado, ele moveu o corpo de modo a sair da cama sem despertá-la, porém ouviu a frase "fica comigo" sussurrada por sua ainda adormecida, porém desejosa esposa.
- É tudo o que mais quero, minha Sacerdotiza Sombria... - sussurrou Diablair em resposta, tocando de leve os lábios de Sarah e acariciando seu rosto. - Mas, preciso fazer algo antes.
- Hmm...? Tá bom... Mas volta logo... - respondeu com um misto gracioso de manha e malícia enquanto se ajeitava nos lençóis de seda Infenalli.
Diablair ficou parado por alguns momentos, observando e admirando sua esposa... Ela era simplesmente perfeita para ele em tantos aspectos que muitas vezes ele sequer acreditava que ela existisse. Tantas lembranças e emoções permeavam seu íntimo que um grato sorriso surgiu nos seus lábios grossos dele. E, ainda assim, agora ele tinha que tomar uma decisão que poderia por toda aquela felicidade a perder. Tomar, não: manter. E ele decidiu seguir em frente, após fechar os olhos e dizer em um tom quase inaudível "Creio que você esqueceu que dia é hoje, Sarah... E quero acreditar que foi melhor assim".
Dito isso, Diablair emitiu um feitiço simples e instantâneo de higienização corporal, colocou suas roupas e se dirigiu à saída do quarto sem olhar para trás. A lentos passos, rumou para o quarto de Ternura, que de longe era o ambiente mais fofo e delicado de toda a residência. Ele avançou com cuidado para não pisar ou esbarrar em algum brinquedos, puffs e toda sorte de itens que invocavam a essência da garotinha que ali dormia em sua enorme cama feita de um material macio e gelatinoso que assumia a forma que ela quisesse. Ternura estava de barriga para cima, com seus braços e pernas esticados e havia dormido de pijama e com chapéu de caubói cobrindo o rostinho lindo que ela tinha. Chegava até a roncar de leve.
Diablair a observou por um tempo com um brilho estranho nos olhos, algo como carinho e pesar permeando suas íris conforme a encarava. Quando se virou para sair do quarto, Diablair ouviu um "irrá!" e se viu laçado por uma corda cor-de-rosa. Ele voltou o corpo para a cama da menina e a viu lutando para manter o equilíbrio enquanto manuseava a corda de maneira a puxá-la, tentando arrastar o tio para junto de si.
- Perdeu, caubói do Inferno! Perdeu! - brincou a infante, rindo enquanto ajeitava o chapéu e fazia força para puxar o homem, que se deixou levar embora fingisse certa resistência.
- Você devia estar dormindo, mocinha... - disse Diablair com tom de voz baixo, sentando-se na "beirada" da cama, ainda amarrado e sacudindo o corpo de leve para mostrar que estava lutando contra o aprisionamento.
A menina foi parando de sorrir, largou a corda e passou a mãozinha na face de seu tio. Fitou os olhos dele, como fez tantas vezes desde a mais tenra idade e, depois de cerca de um minuto, enfim perguntou:
- Tio Diab, se hoje é um dos dias mais felizes da minha vida... Por quê sua alma está magoada desse jeito? Eu fiz ou disse alguma coisa errada? - havia uma genuína preocupação tanto nas palavras quanto no olhar da menina conforme ela se sentava ao lado daquele homem peculiar.
- Não, Ternura! Claro que não! - respondeu Diablair de imediato, removendo a corda rósea que o impedia de mover os braços. - Mas, aproveitando o ensejo, tenho uma coisa para te dizer. Algo que a própria Divina Brina mandou que eu falasse para você.
- Hã? Como assim, tio? O que quer dizer com isso? - inquiriu a pequenina, visivelmente surpreendida e curiosa enquanto se aproximava mais do ouvinte.
- Slaap, Teerheid, slaap. Vir die toekoms om hoop te hê, môre moet wreed wees.* - proferiu o homem negro enquanto observava Ternura ser tomada por uma letargia crescente e inexorável até que seu diminuto corpo voltasse a jazer adormecido na cama. - E, respondendo a sua pergunta... Quem vai fazer coisas erradas... Serei eu, Ternura. Serei eu.
Após deixar o chapéu de caubói sobre o rosto da menina tal qual estava quando adentrou o quarto, Diablair olhou uma última vez para sua protegida e saiu do recinto em total silêncio, com ainda mais pesar no olhar. O que ele não esperava era ver Tristeza parada no corredor tomado pela penumbra, com a cabeça baixa. Ele se aproximou dela em silêncio, constatando que a linda garotinha estava chorando sangue, mas seu pranto era extremamente contido, apenas um singelo filete rubro que escorria como que em câmera lenta pelo seu rosto. Diablair então se ajoelhou, de modo a ficar na mesma altura que sua sobrinha e se limitou a erguer delicadamente o queixo da criança com a falange de seu dedo indicador.
- Você sempre soube o que viria a partir de agora, não é mesmo? - perguntou baixinho o homem com um tom de voz triste, porém determinado.
- Eu te perdôo pelo que você vai fazer conosco, tio Diab... - respondeu a infante, incapaz de encarar o adulto de pele escura diante dela enquanto fungava o nariz e sacolejava os ombrinhos segurando o choro. - Mas, estou chorando por você... Com você...
Ele sentiu uma vontade imensa de abraçar aquela menina que sempre fora tão forte ao carregar um fardo como o da profecia com tão pouca idade, mas não podia ceder. Então Diablair se limitou a levantar, dar dois tapinhas no ombro da sobrinha e seguir seu caminho rumo ao fim de um extenso corredor localizado no subsolo da Mansão Infernal, onde estava a entrada do único cômodo cujo acesso era proibido para qualquer um exceto Sarah e o próprio Soberano Iníquo. Era uma porta enorme, feita de um metal escuro como ébano e entalhada com inúmeras runas ancestrais de proteção que formavam uma carranca demoníaca em meio à chamas.
- Divina Brina, dai-me forças... - exclamou Diablair ao gesticular de modo a cancelar as diversas magias que permeavam a superfície metálica e destravavam o mecanismo de tranca. - Dai-me todas as forças!
E então ele adentrou o recinto e trancou o local atrás de si, sendo imediatamente engulfado pela imensurável escuridão que ali existia: seria o início de um dos maiores pesadelos que aquela família jamais vivera até então.