“O guerreiro não deve morrer sem antes ter usado suas armas.”
Miyamoto Musashi
As ondulações artificiais da água envolviam seu corpo numa temperatura agradavelmente calorosa. Vapores perfumados subiam até suas narinas causando um efeito relaxante. Depois de um dia cheio, estar naquela casa de banho particular era um alívio. Ali, Kotaro não tinha mais preocupações. Sem compra de ações, reuniões online e nem a imprensa lhe fazendo perguntas idiotas. Era CEO da Mugen (無限/ Infinito) e em breve seria o homem mais rico do planeta, se já não o era.Todos queriam comprar sua tecnologia. Um monopólio construído cuidadosamente ao longo de sua carreira. Rivais que pouco a pouco foram superados e comprados até que ele estivesse no topo. O mundo tornou-se tão dependente de sintéticos quanto um dia fora do petróleo e o Japão estava na ali na linha de frente. Hoje, a terra do sol nascente era o que a América jamais sonhou, e isso colocava um sorriso em seu rosto. No entanto, algo tirou o asiático de quarenta anos de seus devaneios. Em seu pulso, o relógio projetou um holograma.
Espantou-se com o que acabara de ver. Seu sócio e investidor, Hideo Sawamura, fora assassinado em sua própria casa. Enquanto ainda processava a informação, sua pele notou que a temperatura da água se intensificava. Tentou o comando de voz para normalizar o aquecimento. Não funcionou. Pelo contrário, a água ficou ainda mais quente. Soltou um palavrão enquanto a fumaça dos vapores subia cobrindo o ambiente. Ainda que não fosse tão atlético, subiu o mais rápido que pôde na amurada da piscina, sentindo tudo arder do tronco para baixo. Gritou enfurecido:
— RYUKA! Que merda aconteceu aqui?! — Chamou pela sintética, mas não houve resposta. Chamou uma segunda vez e o resultado foi o mesmo. Sato viu uma silhueta feminina tomar forma enquanto esta caminhava por entre a névoa.
— Finalmente sua máquina idiota! Quer me fritar vivo?! — A raiva em seus olhos logo tornou-se medo ao ver que não era a sintética que estava diante dele. Uma jovem de cabelos castanhos com uma katana na mão direita vinha em sua direção. Não houve tempo de reação. A última coisa que Kotaro viu foi o sorriso daquela mulher estranha, pouco antes da lâmina negra dela beijar seu pescoço. Ela retornou seus passos para a saída. Enquanto caminhava, três sintéticos caídos adornavam o chão. Buracos na cabeça e no peito os destruíram. Acionou o relógio em seu pulso com um toque e os portões automáticos da casa tornaram a se abrir. Jogou um pequeno disco preto e pouco depois uma moto escura cercada de um brio azulado se materializou diante de seus olhos.
∞
A alta frequência de decibéis marcava presença nos seus ouvidos. Sons eletrônicos e sintetizados envolviam as pessoas que seguiam religiosamente as batidas oriundas dos novos amplificadores virtuais FakeSound. Luzes multicoloridas, corpos suados, sorrisos de êxtase, línguas trocando saliva e uma bebida azulada de alto teor neuro estimulante descendo goela a baixo. A boêmia juventude de Shibuya em seu auge. Este era um estabelecimento muito rentável cercado por um gigantesco monopólio e cada vez mais comum em Tóquio.
Uma loira com um decote generoso lhe tocou o ombro por cima do moletom preto. Virou-se e ela sorriu enquanto aqueles olhos verdes percorriam o rosto do homem abaixo do capuz. O pequeno e luminescente ∞ no seio esquerdo a denunciava. Uma sintética da luxúria, um modelo fabricado exclusivamente para o prazer de quem estivesse disposto a pagar. Suas lentes de contato detectaram o símbolo e o preço foi exibido diante de seus olhos. 500 IC. Ele tinha bem mais que essa quantia, mas seguiu andando enquanto a sintética abordava uma mulher. Sintéticos masculinos e femininos davam as boas vindas calorosas á Neo Tokyo, a casa noturna mais famosa da região. No entanto, ao contrário da maioria, ele não estava lá para se divertir.
— Akira Katsuo... — Acima do balcão de vidro, uma mulher de mechas rosas no cabelo curto e escuro lhe falou pouco antes de tragar um cigarro eletrônico. A fumaça saiu lentamente daqueles lábios vermelhos e foi até o rosto dele. — O que o ilustre capitão do Keikan faz num lugar como esse? Ah, adorei a barba a propósito.
— Meu trabalho. — Akira levou uma mão ao bolso e deslizou o pequeno disco sobre o balcão. O holograma de uma jovem asiática se formou. Longos cabelos negros acompanhados de um rosto afilado e inexpressivo ergueram-se do disco.
"Sayuri Kimura, 25 anos. Coeficiente criminal nível S: Dois homicídios e danos ao patrimônio particular."
Logo depois um registro de vídeo foi reproduzido, a jovem portava nas mãos uma espada. Estava na cobertura de um prédio e um sintético correu na sua direção. Era um modelo de segurança, estava armado e disparava contra ela usando um blaster. Ela desviou dos tiros girando a lâmina e quando ele ficou perto o suficiente, foi partido ao meio num corte vertical. Após dar alguns passos, percebeu a presença da câmera e após outro golpe, a gravação chegou ao fim.
— Uau! Garota problema... seu fetiche favorito. Todo mundo só fala dela agora. Não é pra menos, matou os grandões da corporação mais importante do Japão. — A mulher apertou o disco com a ponta do cigarro e o holograma se desfez. Sorriu. — Suponho que seu departamento está sob uma pressão daquelas. Ah, adorei a barba a propósito...
— Agradeço o elogio e a sinceridade Kyouka, então me deixe devolver o favor: O que ela queria aqui?
— Qual é Akira? São muitos clientes, não dá pra prestar atenção em todo mundo. Quem sabe ela só quisesse um pouco dos prazeres noturnos... — Ela sorriu ao indagar.
— Bom, talvez isso ajude. — Ele pôs outro disco sobre o balcão. Kyouka se viu de frente para o documento que tirou o sorriso zombeteiro de seu rosto. Este por sua vez, tinha a sua foto de identificação.
"Mandado de Prisão: Kyouka Inoue. Narcotráfico e sonegação de impostos."
— Sabe... este lugar dá bastante lucro, mas parece que algumas contas não batem. — Desta vez, foi Akira que sorriu ao erguer o polegar direito. — Só falta uma certa assinatura.
As luzes em neon de prédios e veículos pulsantes preenchiam sua vista. Shibuya, um dos bairros mais importantes de Tóquio, famoso pelo comércio e sua agitada vida noturna. Embora toda aquela luz mascarasse a escuridão que pairava em cada esquina. Havia algo estranho, uma latente anomalia emanava daquele lugar. Mesmo com todo o polo econômico e metade dos sintéticos na polícia, os níveis de criminalidade eram os mais altos de todo o Japão. Tal fato se intensificava sobretudo na periferia, dominada por traficantes e cafetões. No fundo, Akira sabia que este era o motivo pelo qual escolhera aquele distrito. Uma análise de veículos corria em suas lentes. Variadas placas e rostos invadiam seu campo de visão até que finalmente a encontrou. Ele se erguia acima dum viaduto e no alto, as nuvens espessas logo se transformaram em chuva.
Baixou o capuz revelando um coque discreto nos longos cabelos negros. Levou a mão direita ao bolso retirando um pequeno disco vermelho. Suspirou sentindo as gotas caírem sobre sua cabeça, correu e então saltou. Acionou o disco e o holograma oriundo dele começava a se materializar enquanto Akira caia deitado. Uma moto feita de nanopartículas o envolveu antes mesmo que chegasse ao chão. Mais rápida que um trem-bala e mais compacta que um carro, uma Namikaze GXZ estava sob seu comando. Por vezes ouviu de seus superiores que dirigir aquela moto era como se homem e máquina se tornassem um. Tais veículos de alta potência eram o símbolo dos policiais federais de Tóquio. A moto escarlate cortava as ruas deixando um feixe de luz em sua aceleração. Passando por entre os carros com propulsores elétricos que os faziam planar, ele tinha uma estrada livre ao percorrer o asfalto poroso que absorvia água evitando enchentes e luz solar que gerava energia para as numerosas vias do Japão.
“Kawasaki FX em 60 km, alvo localizado.”
A moto preta adornada pelo azul fluorescente que surgira em seu visor era um modelo inferior que antecedeu a Namikaze. Fabricada pouco antes que a Kawasaki fosse comprada pela Mitsubishi Motors gerando uma competição insuperável com todas as fábricas de veículos do país. Quando chegou em Shibuya, Akira soube que gangues modificavam essas motos para aumentar seu desempenho. Ele logo a alcançou, acompanhando de perto o veloz feixe de luz azul deixado pela Kawasawi. A perseguição intensa decorria em meio a chuva e a água que não era absorvida pelo asfalto espalhava-se pelo ar com a velocidade dos dois veículos. Vermelho e azul alumiavam as ruas de Tóquio num jogo de gato e rato a cada curva. A área nobre do bairro ficou alguns quilômetros atrás e o feixe de luz azulado desapareceu ao adentrar na escuridão de um antigo prédio.
Ela poderia pensar que estava segura ao usar as trevas para se esconder, no entanto, Akira podia ver claramente através das lentes. Estacionou a Namikaze na entrada e tal como foi ativada ela tornou-se apenas um pequeno disco novamente. O moletom preto deu lugar a um colete balístico escarlate no qual um dragão negro emergia no centro. Akira acionou outro disco, este, branco e conectado ao seu cinto. Uma bainha rapidamente tomou forma assim como a katana dentro dela. E então, Akira a desembainhou. Getsuryū (月竜/Dragão da Lua), uma lâmina branca de fio único com um cabo preto cujo nome estava gravado nela.
Ergueu-a com as duas mãos e caminhou pelo solo não pavimentado marcando a lama com a sola das botas até entrar no sucateado edifício. O portão enferrujado fora derrubado pela moto de Sayuri, embora não fosse tão difícil que aquele mísero resto de metal caísse com a força do vento. Akira olhou brevemente para as rachaduras e o mofo que adornavam as paredes, além das janelas quebradas. Provavelmente o lugar era usado como um recanto para drogados ou mesmo um ponto de venda, julgando pelo odor pútrido de urina e restos de cigarros chineses espalhados no chão.
Mesmo um pouco distante, ele podia vê-la esperando. Estava um pouco diferente da imagem de identificação, os cabelos agora eram castanhos e não pretos. Mas os olhos não mentiam e o reconhecimento facial confirmou as suspeitas. Sayuri Kimura estava a trinta metros de Akira. Ela portava um traje tático e preto revestido da antiga tecnologia Kevlar. Geralmente usada em rachas de gangues, aquele traje podia ser útil contra projéteis comuns de décadas atrás, mas hoje era obsoleto diante das armas de nanotecnologia. Pouco depois o primeiro disparo veio, e a lâmina branca resplandeceu. Akira repeliu a energia escura do nano sword ao girar a katana para a direita. Aquela arma foi a razão das visitas de Sayuri na boate. Seu uso era exclusivo da polícia e nas mãos erradas era sinônimo de tragédia. Ele sorriu ao dizer:
— É... acho que não preciso ler seu mandado. — Ao contrário dele, Sayuri manteve o mesmo senso de humor e continuou atirando enquanto corria. Três disparos desta vez, e a lâmina branca recebeu as investidas indo para cima, para baixo e por último à esquerda. No momento que ela se aproximou de Akira, a pistola se materializou em katana. Faíscas emergiram do atrito quando as duas espadas se cruzaram. A Getsuryū se viu diante de uma lâmina negra, a Kage no Hebi (影の蛇/Serpente da Sombra). Havia fúria nos olhos castanhos que o encaravam, estes foram acompanhados de dentes cerrados e uma respiração ofegante enquanto o suor lhe descia pelo rosto.
— Como tem coragem de proteger aquela escória?! — A mulher disparou a indagação enquanto Akira ainda segurava o cabo com uma mão, embora sentisse a forte pressão que ela colocava contra sua lâmina.
— Você os matou a sangue frio... A escória dessa cidade é gente igual a você! — A empurrou, criando uma pequena distância. Sayuri saltou para trás girando o corpo em resposta enquanto sua katana materializou-se em pistola novamente. Mais tiros vieram. Ataque e defesa fundiram-se nas mãos de Akira. Deslocou-se veloz ao passo que sua espada rodopiava ricocheteando os tiros até que o espaço entre eles diminuiu perigosamente.
As lâminas voltaram a se encontrar numa dança mortal. Giros e estocadas ditavam o compasso da frenética melodia dos metais em colisão. No entanto, tal sinfonia era dissonante, tocada em distintos estilos com o mesmo instrumento. Akira era semelhante a uma explosão controlada, seus golpes ressaltavam o equilíbrio perfeito entre força e leveza. Sayuri por outro lado, ardia em força bruta e velocidade como as chamas inquietas dum incêndio. No entanto, a luta findou com único golpe e um grito. Akira o fez assim que teve oportunidade, um corte horizontal rápido e limpo. A mão direita dela veio ao chão e a perigosa lâmina tornou-se um pequeno disco. Sayuri grunhiu de dor enquanto o sangue vertia de seu antebraço, tingindo o concreto com um vermelho escurecido.
— Não me deixou escolha... — Akira embainhou a Getsuryū. Suspirou e prosseguiu: — Você tem energia e talento Sayuri, mas isso não te torna digna de empunhar esta espada. Raiva e ódio são a cegueira dos que pensam ser fortes, daqueles que acham que tem o direito de matar. — Mesmo com dor, ela riu daquilo. — Palavras bonitas para alguém que se esconde atrás de um uniforme... Por acaso você não mata quando é necessário? — Apoiou um dos joelhos no chão e ergueu-se franzindo o cenho. Podia ter perdido a luta, embora seu olhar ardesse com a mesma raiva impetuosa de antes. Prosseguiu: — Aqueles homens... Acabaram com a vida de muitas pessoas com aquela corporação de merda! Encheram as cidades de sintéticos para substituir o trabalho humano e não fizeram nada sobre isso. — Cuspiu no chão. — Metade da polícia é deles agora, não é? Quanto tempo acha que vai demorar até você ser chutado de lá, Akira Katsuo? Se acha herói, mas é só um fantoche.
— Sou um fantoche por cumprir meu dever e prender uma assassina?
— Já andou por esse lado de Shibuya, Akira? Vê o que acontece todo dia com as pessoas famintas que perderam seus empregos para máquinas e foram abandonadas por aqueles que juraram protegê-los? As mortes por gangues, as drogas e a infância perdida das garotinhas que se prostituem... Essa parte suja e feia que não aparece naqueles telões em neon é a realidade de muitos aqui!
— Acha que um discurso vai me fazer te deixar ir? Injustiça sempre vai existir de um jeito ou de outro. Lutar contra ela ou ao menos tentar reduzi-la... É o meu trabalho. Luto do meu jeito contra isso.
— Então sabe que está lutando do jeito errado. — A jovem encarou Akira por alguns segundos. O olhar convicto dela ainda o intrigava, lembrou-se do velho homem que o treinara na arte das lâminas. “O espírito de um guerreiro não está na força de sua espada, mas em seus olhos.” Subitamente, ela fechou o punho esquerdo ativando uma adaga em seu pulso. Cravou-a contra o próprio ventre. Gritou ao cair sobre os joelhos e baixou a cabeça. Sayuri selou seu destino como os antigos samurais diante da derrota. Ele a venceu, embora não tenha se sentido vitorioso no fim. Akira fitou novamente aqueles olhos castanhos. Desembainhou a katana enquanto Sayuri ainda o observava, e por fim, a lâmina branca cintilou uma última vez.