No bambual, quase colado à piscina, morava um enorme lagarto teiú, verde, com detalhes amarelos, talvez nem fosse tão grande assim, (crianças de 10 anos tem tendências ao exagero mesmo) sei que a lembrança que tenho dele é d'um enorme e ameaçador, animal pré-histórico.
Às vezes, ele aparecia na parte da estrada, que subia para o SENAI ou subia por trás do teatro, no barranco do 15 ou subia a estrada do 14, se escondia no milharal ou ia pro bananal do 12, mas ele morava mesmo, no bambual que descia pro campão.
Eu, o Viana, o Téquinha e o Chumbinho o perseguiam, quando ele aparecia nos limites do nosso pavilhão, corríamos como caçadores, ágeis e silenciosos... Agilidade e silêncio que não bastavam, nunca chegávamos perto dele e, já ia o danado, sumindo entre o mato e o bambu.
Sempre que estávamos na perseguição do bicho, encontrávamos o Cidão, o Valdeci, o Dalcides e o Ronaldo, que moravam no pavilhão 13, que geograficamente, era mais próximo do bambual e, quando a busca se dava nos limites do 12, apareciam o Zé Almir, o Fabiano e
o Valdevino, a certa altura, isso virou uma disputa territorial, cada turma queria a honra de capturar o lagarto, para o seu pavilhão, ninguém anunciou, mas estava no ar.
Um dia, quando nós, do 14, carregávamos a padiola com a comida para o lar, ao lado do SENAI, escutamos gritos, descemos a padiola, fomos até o barranco da piscina e vimos os meninos do 13 correndo, não vimos o teiú, mas, sabíamos do que se tratava, poucos instantes depois, a turma do 12 desceu, sem perder tempo, escondemos a padiola nos arbustos e nos lançamos à empreitada.
É claro que, mais uma vez, o bicho nos deixou a ver navios e desapareceu na vegetação... Nesse dia o pessoal do lar 14 achou estranho, entre o frango com batatas, havia a companhia de formigas catiçeiras, perguntado desse fenômeno gastronômico, dei de ombros e disse:
_O pessoal da cozinha central vai de mal à pior na maior cara de pau.
No recreio da escola, tínhamos o habito de fazer hora ao redor do lago, uns iam namorar, outros iam jogar bola e outros se sentavam nas sombras gigantes que as árvores proporcionavam, coincidentemente estávamos todos, as três turmas juntas, olhando a mansidão das águas do lago, ouvimos um barulho no mato, ficamos atentos, entre os mourões da cerca, ele saiu, à margem da água, sob os nossos olhares incrédulos, bebeu a água e voltou para o mato.
Aquilo era muito mais que um desaforo, a revolta nos dominou e foi assim que se firmou o pacto de união, naquele momento a caça passou a ser nossa obsessão, em todos os fins de semana, nos juntávamos na empreitada, em todos os fins de semanas, terminávamos do mesmo modo, de línguas pra fora e mãos abanando, capturar o réptil valia para nós, o que valia, pra os exploradores, a tumba de Cleópatra e, nesse meio tempo, tornamo-nos inseparáveis.
Domingo, a missa era celebrada no teatro, as enormes portas laterais ficavam abertas, o padre Graciano, sempre com seu sotaque italiano de aldeões, se não fosse o folheto, com o seguimento das etapas, ninguém entenderia nada, quando terminava, o padre Paulo, (que era cearense) vinha com os seus intermináveis discursos sobre a caridade cristã e os procedimentos e convivência no colégio, dali a pouco aquilo terminava, as portas laterais eram fechadas, as luzes se apagavam e a igreja virava cinema, assim, da angustia ao prazer, em poucos minutos.
O alarido ia se abrandando aos poucos, até virar silencio total, os meninos se sentavam na ordem de seus respectivos pavilhões, por ordem de chegada, nós ficamos atrás do 12 e do 13, ainda nos perguntávamos qual seria o filme da vez... Mazzaropi. Charles Chaplin ou Bruce Lee?
Na tela, já começavam a aparecer os crédito: Bud Spencer and. Terence Hill... Gritos unanimes no salão TRINITY.
Percebi que algumas pessoas saíam, pela lateral esquerda, entre a parede e as cadeiras, meio apertadas, como se não quisessem ser percebidos, já acostumado com a escuridão, meus olhos puderam perceber que se tratava do Cidão e o Dalcides, poucos segundos depois, veio o Ronaldo, cutuquei o Viana, que cutucou o Chumbinho, que cutucou o Téquinha e saímos também, sem chamar a atenção de ninguém, ao passar pela turma do 12, o Zé Almir percebeu a movimentação suspeita e se levantou também, é claro que o Fabiano e o Valdevino fizeram o mesmo.
O filme já começava lá dentro, cá fora o clima era de suspense, o Cidão correu na direção do fundo do prédio e gritou:
_Ele correu pra lá.
Ao lado do teatro, havia um pequeno córrego de alvenaria, feito para conter as que desciam do bananal do 14 em época de chuvas, entramos nele e nada, entramos no bananal e o avistamos bem abaixo do abacateiro, quando percebeu a nossa presença parou, o Zé não
correra conosco, ele e os outros do 12, haviam feito a volta e, num circulo, encurralamos o lagarto, à medida que fechávamos, ele virava a cabeça em todas as direções, quando o circulo fora reduzido a uns 2 metro de diâmetros, deu uma corrida, pra seu azar, escolheu o lado errado, foi pra cima do Valdeci, com a habilidade de um goleiro, dobrou os joelhos, esperou que o réptil passasse ao seu lado e se jogou uma mão no pescoço e outra nos quadris, o danado se bateu, o Valdeci se levantou sem impulso e o ergueu ao céu, como se fosse um troféu.
Pulávamos de alegria e cantávamos a vitória e com muito cuidado, passávamos o bicho de mão em mão, o danado era muito grande e brilhava no pouco sol, que os galhos do abacateiro permitiam passar, seu tamanho dava a extensão exata do meu braço, nem me atrevi a segurá-lo.
Dava pra ouvir as risadas que vinham do cinema e então nos acalmamos, sentamo-nos em círculo, entre as folhas secas do abacateiro e outras, da mangueira vizinha, o silêncio tomou conta.
Foi o Viana, quem quebrou o silêncio:
_E agora?
Surgiram ideias desencontradas de prender, de criar, de tirar o couro, todas sem fundamentos, todas eram seguidas de prós e contras, até que Fabiano disse que seria melhor que o comêssemos, disse que o gosto lembrava a carne de peixe.
Paramos nessa ideia, íamos comer, agora mesmo, lá no teatro, as crianças riam.
O Fabiano seguiu, vamos fazer uma fogueira aqui mesmo e asar o bicho... Primeiro, temos que matar.
O silêncio que se seguiu, logo após a palavra matar, foi, durante toda a minha vida, o mais pesado.
O Valdeci, que era o mais velho, devia ter uns 13 anos, ao ouvir a palavra, passou o lagarto para o Viana, o Viana o segurou por uns breves segundos, ao sentir o peso da palavra, tentou se livrar do bicho, ninguém quis ficar com a função, uma tristeza tomou-lhe, com o dedo indicador principiava um carinho, vimos à cena e entendemos o amigo.
E, não éramos grandes caçadores como nos intitulávamos, éramos 11 crianças e como, só às crianças, cabe o dom da vida, nos abaixamos com o Viana, quando ele soltou o lagarto no chão, ele não foi embora, ficou ali uns instantes, depois sumiu na vegetação, quando voltávamos para o teatro, ali onde havia começado a aventura, pudemos ver na folhagem um ninho, nele havia quatro ovos, tivemos todo o cuidado para cobri-lo e fomos assistir ao filme.
Sempre que sobravam umas frutas eu o Viana, depositávamos no bambual, os caras do 12 e do 13 faziam a mesma coisa.