Observo eles marcharem do meu apartamento. São mais feios do que nos filmes. Mais nojentos. Mais mortos do que vivos. Não parecem se incomodar com o próprio cheiro – que eu consigo sentir daqui –, e nem com o sol que atinge suas cabeças cheias de feridas abertas. As moscas acompanham suas marchas, pousando, sugando o sangue vil e apodrecido. São lentos, burros. Mas de vez em quando, em sua marcha, voltam carregando braços e pernas, que devoram lentamente, mastigando como uma criança que usa os dentes pela primeira vez.
Passam por esta minha rua por volta das nove da manhã, e mais tarde, por volta das dezoito horas, retornam por esta mesma rua. Eles marcham, e toda vez que eles passam por aqui eu fecho as janelas, reforço-as com as tábuas de madeira que costumavam compor uma estante, reforço as portas também. Eles marcham, e eu filtro a água antes de beber – não sei se o suprimento de água está contaminado, mas se precaver nunca é algo ruim, não é?
Eles marcham e eu atendo o telefone. Luís, ou Marcela, ou meu irmão mais novo, ou minha ex-namorada, ou aquele meu velho amigo de infância… todos ligam, o tempo todo, querendo saber como estou, se tem muitos zumbis aqui, se estou conseguindo comida, se estou precisando de ajuda, se eu ouvi alguma coisa sobre outros sobreviventes, quem morreu esta semana, quem matou algum dos mortos-vivos… falam de muita coisa. Desabafam, falam sobre quem perdeu, falam sobre quem não está atendendo o telefone, falam sobre como o futuro é incerto, como sentem saudades da antiga vida simples que costumavam levar, quando não eram zumbis que marchavam nas ruas, e sim, seres humanos. Eu não ouso deixar de atender o telefone, não quero que pensem que morri, não quero que se preocupem comigo, não quero deixar de ser o ombro amigo de ninguém… Fulano se suicidou, quando chegou em casa e viu a esposa e a filha mortas, mas caminhando, grunhindo aquele grunhido típico dos zumbis da ficção. Talvez, se eu parar de atender o telefone, se eu parar de ouvir os desabafos, alguém se suicide também… Não quero isso, e por isso eu atendo, escuto, enquanto lá fora os mortos-vivos fazem sua patrulha ao redor da cidade. Seus números crescem a cada dia, o que significa que nossos números diminuem a cada dia. E toda vez que, ao telefone, alguém me fala sobre tentar lutar contra eles, ou tentar achar alguma cura (nenhum é médico ou cientista, bom que se diga), ou se juntar em algum lugar seguro e sobreviver juntos…
Toda vez que algum deles fala nisso, me lembro de Odin, da mitologia nórdica. Ele, que sabia que as forças do bem seriam derrotadas pelo mal ao final do Ragnarok, e que não podia compartilhar desta sabedoria com ninguém. Ele, que ficou tão triste ao saber disso que, a partir daí, deixou de comer, dando sua comida para os dois lobos que se ajoelham aos seus pés. Ele, que podia apenas adiar o destino, mas nunca mudá-lo.
Eles marcham, e eu espero que eles terminem sua marcha para entrar numa das casas agora abandonadas. Pego comida, bebida, remédios e mais tudo o que eu conseguir, pego seus celulares; um dos meus passatempos do apocalipse é ler as últimas conversas das pessoas. Algumas permaneceram até o final conversando com seus amigos, amantes, familiares… alguns enviaram fotos das mãos mortas quebrando suas portas, alguns enviaram fotos de uma marcha que ia em direção a eles mesmos. Muitas fotos de rostos chorando. Geralmente esta é a última. E me parece incrível a honestidade das pessoas que sabem que morrerão em breve. O primeiro “eu te amo” de muitos potenciais casais foi dito momentos antes de um dos pombinhos ser devorado.
Eles marcham, e eu presto muita atenção no horário, para não me bater com um deles no caminho de volta para meu apartamento, ou para não chegar atrasado para uma das ligações diárias de Luís, ou Marcela, ou meu irmão mais novo, ou minha ex-namorada, ou aquele meu velho amigo de infância… Hoje minha ex-namorada não ligou. Ontem, ela me prometeu que enquanto estivesse viva, me ligaria todos os dias, no mesmo horário, e eu não tive a coragem de educadamente recusar esta promessa, de dizer que não precisava… Hoje, ela não ligou, e eu não consigo deixar de me sentir aliviado. Me senti culpado quando, pensando sobre como não precisaria mais ouvir seus desabafos, esbocei um sorriso involuntário, de canto de boca.
Eles marcham, e eu me pergunto se, amanhã, minha ex-namorada marchará com eles, também. Se ela morderá alguém como morderam ela, ou arranhando, ou devorando, ou sendo morta por um sobrevivente. Eles marcham e eu me alegro de ter achado uma carteira de cigarros fechada.
E falando em cigarros, consigo identificar no meio da marcha o rosto de um velho fumante aqui do bairro. Costumava morar em frente ao meu apartamento, e não era raro que alguém batesse à sua porta, insistindo e implorando para que ele parasse de fumar dentro do apartamento, porque havia um bebê lá em cima, e ele não podia ficar respirando isto… Agora, o velho fumante não é mais um velho fumante. Apenas um velho zumbi, e ele não parece sentir saudades do cigarro, nem da bebida, nem sequer da linda vista para o parque que a janela de seu apartamento lhe proporcionava. Ele marcha, e eu me pergunto se ele pensa em algo mais além disso. Nos últimos anos, ele estava preocupado com a possibilidade de ter câncer, certa vez me confessou que queria parar de fumar, para poder ao menos ver a neta se formar, mas que talvez já fosse tarde demais… Era uma das poucas pessoas que sabiam o quão incerto o futuro realmente é, mas olhando para ele agora, marchando… me pergunto se ele não se sente aliviado, sabendo que seu futuro é tão certo quanto o nascer do Sol; marchará e comerá e marchará e comerá e marchará e fará seja lá o que for que os zumbis fazem à noite.
Sinto falta de sexo.
Será que zumbis transam?
Será que é isto que eles fazem à noite?
Se transam, penso que transam como fazem os animais. Indiscriminadamente, no momento que se quer, sem precisar de conversa, sem precisar pagar um drinque, sem flerte, sem piadas, sem gracejos, sem elogios…
Eles marcham, e eu comecei a usar uma máscara para sair na rua, e comecei a tomar banho toda vez que chego em casa, e higienizar as mãos com álcool, e lavar sempre as roupas depois que as uso. E eu vi um cão na rua e lembrei logo daquele filme com o Will Smith e pensei como seria bom ter um pouco de companhia e ajuda mas depois pensei em o quão fodido seria ter que cuidar do cachorro e achar ração para ele e botar água e fazer com que ele parasse de latir para não chamar atenção. Pensei no quão doloroso seria sua morte se os zumbis pegassem ele, pensei neles arrancando suas patas à força, comendo, enfiando a mão dentro dele, comendo…
E eu comecei a afagar o cão que estava deitado e assustado e ele começou a se abrir todo pra mim e assim que eu pus a mão no seu coração eu enfiei uma faca lá e encerrei a vida dele. Seu ganido de sofrimento foi curto, não chamou a atenção de nada. Penso que é melhor assim… enterrei ele num vaso de plantas que minha vizinha da frente cultivava… estou feliz que a morte dele não foi dolorosa mas queria ter a coragem de enfiar uma faca no meu peito também, assim como fiz com ele. Ás vezes flerto com a ideia, meu peito já está cheio de cortes desta tentativa, mas nunca consegui ter a determinação de enfiar uma faca lá.
Volto para meu apartamento e lá fora eles continuam marchando.
Atendo o telefone, escuto os desabafos, como, durmo, filtro a água, bebo café, reforço as janelas, reforço as portas, me assusto com qualquer barulho, penso no cachorro, penso no velho fumante, penso em sexo, penso em transar com uma zumbi mas isso é nojento demais mesmo quando não existem mais leis nem nada do gênero. Imagine o cheiro de uma boceta zumbi. Eu me masturbo e me pergunto se o cheiro do esperma poderia atrair algum deles e faço o máximo possível para limpar a porra e tirar o cheiro e penso que eu deveria procurar saber mais sobre os zumbis porque no momento não sei nada além do fato de que eles marcham e comem gente, não sei como eles transformam ou se são eles que transformam outras pessoas em zumbis e também não sei se eles morrem mesmo quando a gente esmaga a cabeça deles ou enfia uma faca no peito deles e eu fico tão ansioso para caralho e eu penso em tanta porra e eu fico com raiva de mim mesmo por não conseguir enfiar uma faca na porra do meu peito e eu fico pensando:
Eles marcham, e eu invejo eles como o pobre inveja o rico. A vida do rico e do zumbi é certamente mais fácil que a do pobre e a do vivo, respectivamente, mas a diferença é que é difícil virar rico. Hoje atendo o telefone e pergunto para Luís se ele já viu alguém se transformar em zumbi e ele diz que não e pergunto para Marcela e para meu irmão e para aquele meu velho amigo de infância e eles também não fazem a mínima ideia sobre porra nenhuma mas eles também estão preocupados sobre coisa para caralho. Hoje me encontrei com Luís e mostrei meu diário no celular para ele e Luís, que é estudante de linguística, lê isso aí que eu escrevi nos últimos dias e me pergunta se eu quero ouvir uma coisa engraçada e bizarra e eu, educado como eu sou, digo que sim, claro, Luís, por favor, me conte uma coisa engraçada e bizarra isto é tudo o que eu quero ouvir num apocalipse zumbi.
Ele me diz que, nos manifestos de assassinos em massa, quando eles estão escrevendo sobre matar alguém, eles começam a usar palavras com mais sílabas e a usar menos vírgulas e diz que estou fazendo isso nos meus últimos parágrafos. E eu não consigo deixar de rir disso porque mesmo que eu quisesse ser um assassino em massa quem eu mataria? Luís? Não. Eu não mataria ninguém. Mesmo agora, que nada mais importa…
Eles marcham e eu fico me perguntando como Luís sendo o idiota que ele é conseguiu casar com aquela maravilha de mulher. Eles marcham e eu estou tão cansado da voz desse filho da puta que eu nem espero eles terminarem de marchar pela rua de Luís antes de ir para casa; eu marcho junto com eles.
Eles marcham rumo à minha rua e não me notam, pensam que sou um deles, eles marcham e simplesmente marcham e quando a perna de um deles quebra e ele cai eles não param para dar socorro e nem sequer olham para trás; simplesmente o abandonam e nem parecem ter culpa no olhar e eu penso no quão privilegiados eles são por não sentirem remorso nem empatia nem nada além de fome.
Eles marcham e eu decido que quero marchar com eles então eu os provoco. Mas eles não reagem e acho que eles não estão com fome e por isso eu marcho com eles o dia todo até de noite e vejo eles invadirem a casa de alguém e comer alguém e é um cara todo bem armado que provavelmente se preparou para o apocalipse desde muito antes de tudo ir à merda. Ele provavelmente tem centenas de latas de comida no seu porão e água potável e acesso à internet e séries e filmes baixados e algum jogo e tudo mais que estava escrito naquele artigo “O QUE COMPRAR PARA SE PREPARAR PARA O APOCALIPSE ZUMBI IMINENTE:” E depois que um zumbi morde o braço dele e ele derruba seu rifle de assalto ele pega sua faca e enfia no peito dele e depois ele briga com eles e ele está desesperado para não morrer e ele chuta e soca e resiste resiste resiste até que por fim não tem mais forças para isso e é comido. Eis o filho da puta mais bem preparado para isto que eu já vi na vida, estirado morto no chão. E eu, que tenho uma mísera faca que provavelmente já está cega, estou aqui vivinho da silva e eu não consigo deixar de achar a situação irônica.
À noite, os zumbis não transam e nem marcham, eles param e dormem em pé. E eu volto para a casa do cara que morreu hoje mais cedo e, bem como desconfiava, ele está bem preparado para tudo. Quebro a estante onde ele guarda as latas de comida e uso a madeira para reforçar as portas e janelas, de modo que ninguém vai entrar. E eu ligo para Luís e para Marcela e para meu irmão mais novo e para aquele meu velho amigo de infância e digo que mudei de casa e peço perdão por não ter ligado antes. Estou mais calmo, mas mesmo assim queria estar marchando junto com eles.
Paro de sair nas ruas, o que tem aqui dá para sobreviver por um bom tempo. Acordo, tomo café, faço questão de confirmar se as portas e janelas estão mesmo reforçadas, passo um bom tempo no computador do sujeito. Fico triste por ele, e com o tempo deixo de achar que a morte dele foi irônica, passo a achar que sua morte foi apenas triste, trágica, fodida, injusta. Durmo bem, ás vezes durmo o dia todo. Leio uns livros no computador.
Com alguns meses, algum outro sobrevivente bate à minha porta. Me fala sobre como tem outros sobreviventes tentando reconstruir a humanidade, me chama para participar. Levamos tudo da casa, inclusive o telefone. E ando com ele em silêncio, sem fazer perguntas sobre estes tais sobreviventes. Sei que pode ser uma armadilha, sei que ele pode simplesmente me dar um tiro na cabeça e roubar tudo que tenho e sei que isto provavelmente já deve ter acontecido com outra pessoa, mas não consigo me importar com minha possível morte.
Ele estava falando a verdade. Tem um médico, uma equipe de enfermeiros e enfermeiras, alguns policiais, professores, crianças… consigo chamar Luís e Marcela e meu irmão mais novo e aquele meu velho amigo de infância. Eles estão aqui. Todos se ajudam, ás vezes eu e o sobrevivente que me convidou (se chama Paulo) passeamos pela cidade em busca de outros sobreviventes, ás vezes achamos, ás vezes não. Faço questão de sempre me voluntariar para estas buscas.
Para falar a verdade, tenho uma certa vontade de morrer, e talvez por isso eu me voluntarie tanto para as missões fora do acampamento. Numa ocasião em específico, eu e Paulo entramos no porão de uma casa abandonada. Estávamos procurando por suprimentos, e quando saímos do porão, vimos pelas janelas que estávamos cercados. Eles estavam marchando em nossa direção. Lenta e inevitavelmente, chegariam na casa. Nos pegariam, resistiríamos um pouco, conseguiríamos levar um bom número deles conosco.
Eu sugeri à Paulo que ele escapasse, enquanto eu distraía os zumbis. Ele hesitou por um instante.
– E deixar que você morra? – Ele disse.
– Eu consigo me virar. – Respondi.
Mas ele conseguiu ver que, detrás da minha nobre sugestão de sacrifício, eu tinha segundas intenções. Ele sabia (eu já havia confessado para ele antes) que na primeira oportunidade que eu tivesse de morrer, eu morreria. E sabia que esta era a ocasião em questão.
Mas ele negou. Eu insisti. Brigamos e ele me acertou na cabeça com a coronha de sua pistola. Eu desmaiei e, quando acordei, estava de volta no acampamento, na tenda do médico, onde uma enfermeira cuidava de mim. De alguma forma, Paulo havia conseguido nos tirar dali. Logo depois que acordei, fiz de tudo para voltar a dormir – da mesma forma que fazemos quando acordamos cedo demais. Mas não consegui.
A enfermeira me disse que Paulo, quando estava fugindo dos zumbis, me deixou cair no chão e, não querendo me deixar para trás, me arrastou com ele por boa parte do caminho, até que os zumbis sumissem de vista. Por isso, ela me disse, eu estava com as pernas muito feridas e não deveria andar por alguns dias. Com um suspiro, aceitei.
Estes dias, passei conversando com a enfermeira que cuidava de mim e com Paulo, que me visitava todos os dias, sem exceção, além do médico, que vez ou outra me visitava durante a noite para conversar comigo e checar minha situação. Fiquei muito próximo destes três, em decorrência dessas conversas.
Depois de alguns dias eu voltei a andar, mas ainda de uma maneira muito frágil, de modo que não me permitiram – apesar de minha insistência – sair do acampamento para qualquer coisa. Quando protestei que eu não podia ficar ali simplesmente sem fazer nada, o médico me disse que eu poderia ajudar a equipe de enfermeiros e, além disso, poderia ensinar algumas coisas às crianças e ao outro sobrevivente que tomaria meu lugar nas missões. Não pude recusar.
Com os enfermeiros, eu era mais um assistente do que qualquer coisa. Me pediam para visitar fulano e ver como ele estava, para pegar remédios e instrumentos dentro de gavetas e armários, e mais outras tarefas banais. Mas, ainda assim, eu sentia que estava ajudando, e a enfermeira me disse, em certa ocasião, que minha ajuda estava sendo muitíssimo valiosa, e que não fosse por mim, a vida do médico e de sua equipe seriam muito mais difíceis.
As crianças gostaram de mim, por algum motivo, e eu também, por algum motivo, gostava dela. Por mais cliché que seja toda a frase de que “A esperança está nas crianças”, eu conseguia sentir um pingo de verdade nestas afirmações. Um garoto em específico, Carlos, ainda não sabia ler, e num fim de tarde ele visitou a minha tenda e me pediu para que eu o ensinasse – ele me chamava de Tio.
Aprendeu rápido, o garoto, e tinha uma certa sede de conhecimento. Pedi a Paulo que me trouxesse livros didáticos, e combinei com os professores do acampamento que montássemos uma pequena escolinha. E assim que, numa missão, Paulo retornou com um bom número de quadros brancos, a escola dos sobreviventes foi fundada (não com este nome, claro). E então eu tinha algo para fazer todas as manhãs; ensinar as crianças a ler e a escrever, além de matemática básica, mas o que eu ensinava mais para eles eram lições de vida (ou, ao menos, penso que são lições de vida), conto histórias que já ouvi e peço para eles pensarem no que pode ser aprendido com estas histórias. São lições básicas, como “sempre se deve ajudar os amigos” ou “devemos sempre respeitar os mais velhos”, mas creio eu que elas são valiosas.
Às tardes, passo no hospital, ajudando a equipe. A proximidade que eu tinha com a enfermeira que cuidou de mim quando eu estava convalescido aumentou, e, com o tempo, começamos a ter encontros amorosos em certas noites da semana. Nas outras noites, eu conversava com Paulo, lembrávamos de situações que aconteceram quando estávamos nas buscas fora do acampamento. Ríamos destas memórias.
Na primeira vez que isto aconteceu, disse-lhe que estava ansioso para voltar às buscas, que logo que eu estivesse pronto, a primeira coisa a fazer seria buscar um presente para o médico e a enfermeira que cuidaram de mim. Recentemente, numa conversa banhada à álcool, disse-lhe isso novamente; que estava ansioso para voltar as buscas, mas desta vez eu não estava tão certo assim disso, e até cheguei a gaguejar ao falar “ansioso”.
De todo modo, com uma certa frequência me lembrava de quando eu estava sozinho. Eu e Paulo falávamos disso também e, numa noite ele, que era cristão, me sugeriu que rezasse à Deus, agradecendo por tudo. E isto eu fiz. Devo dizer que nunca acreditei em Deus, mas que na minha reza senti uma presença poderosa e benevolente. E assim, recontando histórias para Paulo, me lembrei dos pensamentos que eu tinha quando estava sozinho. Contei a ele sobre como marchei com os zumbis e eles nada me fizeram e ele me disse que, certamente, isto havia sido a vontade de Deus. Não sabia se acreditava ou não mas, isto fazia muito sentido.
E então, numa manhã, quando eu estava saindo da “escolinha”, o médico contou-me que, recentemente, alguns sobreviventes haviam trazido uma máquina de raio x, e que se eu quisesse, poderia ser o primeiro à usá-la, para determinar a situação da minha perna. Aceitei de prontidão. Minha perna estava completamente saudável; se haviam ossos quebrados, eles se concertaram.
– Sinto muito lhe dizer isto, “Tio” – Era de Tio que a maioria dos sobreviventes me chamava. – Mas você está curado e – suspirou – pronto para voltar á fazer suas buscas. – Ele então me olhou com aquela expressão de tristeza, como se a notícia não fosse boa, mas trágica.
Mas nunca mais me voluntariei para as buscas. Dei a desculpa de que agora eu estava dando aulas pela manhã e ajudando no hospital pela tarde, mas a realidade é que aquela atração pela morte que eu sentia já não estava mais presente. Ela havia sido invertida; agora eu sentia uma extrema repulsão pela morte, e os zumbis começaram a parecer cada vez mais nojentos e medonhos para mim.
Ademais… eu começava a me sentir cada vez mais atraído pela “vida”.
Vida. Uma palavra tão simples e um conceito tão fácil de ser compreendido, mas, ainda assim, muito mais profunda do que parece. O mesmo vale para a Morte.
Por muito tempo, eu quis estar dentro do abraço caloroso da Morte. É como o adolescente que, ao acordar e descobrir que tem visita em casa, decide dormir mais, e mais, e mais… Passa o dia inteiro numa cama quente, confortável, mas a que custo?
Ao custo de não viver… ao custo de não ser esmagado pela vida até o ponto de se perceber minúsculo e impotente frente a tudo o que a vida é e tem a oferecer. Pois se o amanhã dos vivos é sempre incerto, e se nosso destino é decidido por um cósmico rolar de dados, o amanhã dos mortos é fixo, o mesmo. Por muito tempo eles apenas deitaram debaixo da terra, e agora eles marcham, e marcharam ainda por muito mais tempo. Mas nós, os vivos, bem… não pode-se dizer que somos repetitivos, não é?
E por isto eles marcham, e eu vivo. Vivo a incerteza diária. Vivo a alegria dos dias e o jubilo nas noites. Vivo a dureza dos dias e o álcool purificador das noites. E isto eles, que marcham, nunca farão.
Pois eles apenas marcham.