Eu não gosto de espelhos, não gosto de olhar para o fundo do copo quando tem água, não gosto de piscinas e muitas vezes odeio a tela do meu celular apagada, deixo ele sempre ligado. Odeio vidros claros, vidros escuros, vidros espelhados. Odeio o brilho no meu guarda-roupas quando a janela está aberta, por isso nunca movo as cortinas de lugar. Odeio o piso da minha sala, branco com detalhes cinzas que refletem o brilho que vem da janela, passo por esse cômodo de nariz empinado para não ter que ver nada. Odeio a parte frontal do microondas que reflete a cozinha, preciso consertar isso de alguma forma, nem que seja colando jornal.
Mas tem uma parte em específico que eu odeio mais que tudo o que já citei, e o mais "engraçado" é que eu me torturo diariamente com esse reflexo. No meu banheiro cinza de imundice há uma janela entreaberta, não consigo ver nada, felizmente pois está coberta em lodo, mojo e sujeira. O piso também não reflete nada, pois está cercado de vômito, sangue e fezes. Há um ralo enorme que está aberto, o odor de esgoto amargura até alma. Logo a frente dele há uma banheira, completamente limpa, tão branca como algodão, seu cheiro é a única coisa agradável. Tem cheiro de produto de limpeza de lavanda... Os pés da banheira são dourados e brilham forte como se o objeto tivesse sido comprado e instalado ontem.
Por que é uma tortura diária? Simples, todos os dias às exatas cinco e meia da tarde eu caminho lentamente em direção a esse recinto, sem me importar com meus pés tocando aquela lama repugnante - não como se isso fizesse diferença, meus pés já tem crostas de sujeira mesmo. Quando eu me aproximo da banheira lentamente, como que se estivesse sincrozinado eu vejo mãos saindo daquela água límpida. As mãos cinzentas tateiam o objeto e só ouço o barulho da água a ser movimentada pelos membros sombrios. Eu vou andando e chegando perto e as mãos vão se levantando em minha direção até que uma agarra meu pescoço, outra meu pulso esquerdo, outra minha camisa, outra meu ombro...
Quando todas as mãos conseguem me imobilizar elas me puxam abruptamente para todo o terror que eu vivo diariamente, todo o terror que eu evito encarar em todos os objetos com superfícies reflexivas: elas me forçam encarar a mim mesmo, todas as minhas ações, todos os meus pensamentos impuros, atitudes egoístas...
Eu vejo no reflexo a mim mesmo...
Eu sinto culpa no que vejo.