Uma vez por mês, a senhorita Prince cuidava dos gêmeos Clinfford. Os dois garotos eram quietos e obedientes, iam para cama no horário certo e só saíam ao amanhecer, quando os pais já estavam em casa. Naquela noite em específico o jovem Finn acordou assustado após um pesadelo, havia enfrentado um grande lobisomem em seus sonhos e ficou triste ao lembrar que sua mãe não estava em casa naquela noite para lhe consolar e levar o medo embora. Ele olhou para cama onde o irmão dormia tranquilamente, Steve tinha o sono pesado e não acordava por nada.
Quando noites como aquela aconteciam, mamãe sempre preparava um copo de leite quente para ajudá-lo a dormir novamente, dessa vez teria que fazê-lo sozinho. Assim que o liquido ferveu, o colocou em um copo e andou silenciosamente até as escadas, parando ao ouvir os estranhos passos que vinham do lugar proibido. Finn era o irmão curioso, o que sempre estava em encrencas, então honrou seu título e foi como um gato sorrateiro até o local, se escondendo atrás da grande porta de aço que dividia os cômodos.
Papai sempre lhe disse para passar longe dali, era um lugar que crianças não podiam ver e nem chegar perto, Steve disse que muitos fantasmas dormiam ali. Sua visão estava embaçada pois havia esquecido os óculos em seu quarto, mas conseguiu distinguir a silhueta da senhorita Prince abrindo um estranho quadrado metálico na parede, assustado, pôde ver a sombra de um corpo deitado, coberto com algum tipo de tecido branco. Sabia que papai trabalhava ajudando pessoas que perdiam membros da família, mas porque ele tinha um estoque de mortos no lugar proibido?
A babá, que não havia notado sua presença, retirou a parte superior do crânio do defunto com facilidade, fazendo um barulho que Finn julgou ser um riso, e pegou o cérebro gelatinoso com ambas as mãos, o levando até a boca e comendo como alguém que não comia há dias. O menino fez uma expressão de desgosto ao entender o que estava acontecendo, ficou ali até a moça terminar sua refeição – seu pai sempre disse que a hora da refeição era uma hora sagrada – e deixar o corpo do jeito que o havia encontrado, ela lambeu os dedos sujos de sangue espeço.
– Senhorita Prince, o que está fazendo aqui? Papai disse que esse lugar é proibido – disse ele ao ver que ela já havia terminado. – Tem comida na nossa geladeira se ainda estiver com fome.
– Ah, querido! O que está fazendo fora da cama? – perguntou ela pegando uma flanela e um vidro de álcool. – Sabe que não pode sair do quarto depois das dez! – disse com tranquilidade.
– Tive um pesadelo, só consigo dormir em noites de pesadelo depois de um copo de leite quente, é o que a mamãe sempre faz – disse coçando os olhos, a visão turva já estava o incomodando. – O que estava fazendo com aquele fantasma?
– Estava ajudando o pobre homem, sabe que eles ficam sozinhos depois que morrem – disse ela terminando de limpar e jogando a flanela no lixo. – Seu pai pediu para que eu o ajudasse, mas não pode contar para ele se não ele saberá que entrou no lugar proibido!
– Mas isso faz bem para o bebê? – perguntou apontando para a barriga de alguns meses da moça.
– Claro, querido! O cérebro é a parte mais cheia de nutrientes de qualquer ser vivo, vai ajudá-lo a nascer forte e saudável como você e seu irmão!
Ela o levou até o quarto e o colocou para dormir de novo, cantou pela milésima vez a canção que era sua válvula de escape. Riu enquanto descia as escadas, crianças sempre tinham as melhores e mais inesperadas reações. Quando Steve a descobriu, teve que correr e tampar-lhe a boca pois ele começou a gritar assustado, quando conseguiu o imobilizar, cantou-lhe a canção e o levou para cama. Eles eram a família perfeita para ela, além dos corpos no necrotério, não possuíam medo dos mortos pois haviam crescido na realidade mórbida da funerária Clinfford.
Tudo o que ela precisava era de uma grande refeição periodicamente, logo estava renovada e pronta para procriar. Toda manhã, antes dos pais chegarem, cantava novamente para se certificar que as crianças haviam se esquecido dos acontecidos e, quando os acordava e via nos pequenos rostos a felicidade de encontrarem a senhorita Prince, sorria e ia embora, pensando em como seria o flagra do próximo mês.
Ela então correu para o meio da floresta, sentindo os ossos começarem a se torcer e rasgarem-lhe a pele das costas, a transformação era sempre dolorosa. Os cabelos escuros caíram de sua cabeça revelando a pele estranhamente rosa, os braços ficaram mais longos e magros, com as unhas longas e pontudas; depois da dor ela rastejou lentamente com as asas doloridas demais para voar até a toca no grande carvalho, onde se escondia todo mês enquanto aguardava o chamado do senhor Clinfford.