As pernas tremiam em frente à grande mansão que ela foi obrigada a ir. Seu gato odiado ronronava aos seus pés. Era uma mentira.
Ele era mais um cúmplice.
Os sussurros convidativos imploravam para que ela desse mais um passo à frente, em direção a grande escadaria que marcaria o seu fim e a felicidade do maldito gato e das vozes.
Foram dezoito anos de tortura e aliciação, onde ela não sabia se eram alucinações, se o gato realmente existia ou se a brisa sobrenatural realmente a empurrava sempre que pisava em direção contrária à maldita mansão.
O orfanato não permitiria que ela morasse mais lá, era muito estranha. Muito "peculiar". As famílias que vinham vê-la, pareciam que viam cobras no lugar do cabelo preto escorrido, tal o horror. As crianças que moravam lá, tinham medo dela e ela sabia que não era infundado. Sussurros corriam por suas costas, implorando para que ela parasse algo que não estava fazendo.
"Por favor, pare. Você está me assustando"
Os sussurros de promessas e a brisa quase gentil a empurraram para a grande mansão. Seu primeiro passo nos degraus degradados, rangeu. O arrependimento pesava em seus ombros.
Seu gato miou, o desgraçado.
A voz prometia uma fortuna, longe de ser ouro. Prometia um lugar para pertencer. Foram dezoito anos de promessas que ela não deveria acatar, mas quando se viu completamente só, apenas com seu gato, as vozes e a brisa...
Ela não resistiu.
A porta rangeu alto quando foi aberta e o falso pertencer a atingiu como uma marreta. Seu gato já não estava mais ao seu lado, só a brisa que a empurrava para pisar através da soleira. Sabia que seria um caminho sem volta, mas que escolha havia mais? Eles arruinaram tudo desde o começo.
Os corredores escuros abrigavam os fantasmas - reais ou alucinações, ela não sabia. As sombras se mexiam incontrolavelmente, os monstros moravam com ela há muitos anos.
Ela não sentia vontade de explorar a mansão e as vozes a comandavam em direção a um único quarto, onde ela sabia que o desgraçado de seu gato esperava.
Escrito na porta entreaberta, com grandes garranchos, estava seu nome.
"Briena"
E como esperado, seu gato estava sentado na cama, aparentemente preparada para ela. O único quarto da mansão que estava limpo.
Deitou-se na cama entorpecida, arrependida de ter cedido às vozes, a brisa e ao gato que se aconchegava na curva de sua cintura.
- Eles estão vindo para mim, não é?
As lágrimas escorriam por seus olhos e os olhos dourados de seu gato a encaravam, com um brilho perigoso de conhecimento.
- Isso tudo só pode ser imaginação, não existe brisa, não existem vozes, você não deveria existir. Eu sou apenas alguém que deveria estar passando por um tratamento, certo?
O gato continuava a olha-la fixamente. Apoiou sua pata no peito esquerdo dela e uma chama abrasadora corroeu seu coração.
Seus olhos se fecharam e as costas arquearam, quase impossivelmente. Envolta de seu coração, as chamas consumiam e as extremidades de seu corpo estavam azuis devido a falta de calor.
Seu gato cravou as unhas mais profundamente e sibilou um cântico profano que apenas ela podia ouvir.
Seus ossos apertavam e expandiam de forma esporádica e a cada movimentação ela sentia que estava cedendo mais de sua sanidade e consciência para as vozes e o vazio que se aproximava.
Quando abriu os olhos, não conseguiu ver nada. O cântico do gato era ouvido ao fundo, junto com as vozes que cantavam em outra harmonia. Tudo estava fora de ritmo, apenas seu coração seguia as batidas dos dois cânticos.
Ela sentia, em seus ossos, que tudo mudaria. Eles foram reformados, ela sabia. Seu coração também não era mais o mesmo.
Um espelho apareceu em sua frente, apenas para a confirmação. Os cabelos pretos e escorridos continham manchas cinzas e se eletrizavam toda vez que ela mexia a cabeça. Sobre o peito esquerdo havia uma tatuagem que ela nem conseguia começar a entender o significado.
Seu punho foi direto para o espelho e o grito que ecoou pelo vazio parou todos os cânticos.
- Eu não sei que porra é essa, mas eu nunca quis isso. Eu odeio todos vocês!
Quando ela abriu os olhos novamente, para o quarto, o gato deitado em seu peito falou:
- Você não deveria ter medo, te oferecemos o que muitos desejam, você entenderá o que provem de ter-nos.
- Acha que me engana!? Vocês me controlam há dezoito anos, nada vai mudar.
- Briena, você está e sempre esteve no controle. Nós somos você... - o gato abaixou a cabeça, para olhar diretamente para ela. - Você é seu próprio monstro.
X
Briena sentiu as amarras apertarem seus pulsos. Sua cabeça se mexia de forma esporádica, as mechas cinzas se levantavam, como se quisessem atacar o próximo enfermeiro que entrasse.
O gato estava deitado no canto da sala e a encarava com uma mistura de nojo e paciência.
- Não aceitar o que vocês me oferecem não vai adiantar, não é? Você disse que fazia parte de mim.
- Você está certa, não aceitar algo que é parte de você só a fará se encaixar nos moldes que eles querem que você acredite. Nós somos você, Briena. Não aceitar isso é quebrar, para sempre, algo que não poderá ser concertado.
Seus olhos se fecharam e as amarras se soltaram.
X
Briena escreveu tudo o que seu gato ofereceu como seu grimório. Os monstros dormiam com ela, mas ela era seu próprio monstro pessoal.
- Como é seu nome?
O gato a olhou de forma desdenhosa e soltou um miado de nojo (ela ainda não conseguia entender como sabia diferenciar)
- Meu nome? Garota tola... Meu nome é Fortuna.