O olhar do homem, subiu em direção à parte esquerda do quarto, ainda estava sonzo, seus ouvidos apitavam, não reconheceu o teto, nem as cortinas, nem a cama em que estava, percebeu-se coberto de fios e bip-bips, vindo das máquinas que o mantinham vivo. Sentiu-se elevar, subir como um balão de gás hélio, bateu com a cabeça no teto, pôde então, ter a visão do quarto todo, mas ainda não sabia o que sentir, já vira esta cena antes em filmes e séries. Não sentia seu corpo, ou, aquilo que era seu corpo agora... Alma? Espírito...? Qual era a diferença?
Seus olhos então fitaram a mim, a figura negra, redonda e lustrosa como uma verruga, que repousava aos pés da maca, admirando o corpo em coma. Ele me achou bem familiar, até surpreendeu-se, mas não teve coragem de olhar para o corpo na maca, no entanto, infelizmente já sabia de quem era.
Aproximou-se mais de mim, voando como fumaça de cigarro, para me ver melhor.
"Eu te conheço..." - ele teve a coragem de dizer.
"Eu sei, olá de novo". - disse com minha voz grave e seca.
"Esse aí na maca, é quem eu estou pensando que é...?" - o fantasma quis chorar.
Assenti.
"Oh não... Eu... Eu...." - à medida que o fantasma do homem na maca se exasperava, as luzes do quarto tremiam e falhavam.
Olhei para ele, com todo meu corpo que nem ao menos cabeça possui, e ele pôde entender que eu sorri.
"Por qual razão, isto é motivo para felicidade???" - ele agora chorava e todas as máquinas do hospital começaram a apitar.
"Você é patético, não está morto... Um espírito deveria saber quando morre ou não." - eu apontei para o óbvio.
"O que houve comigo então?" - ele repousou ao lado de seu corpo que estava roxo e todo entubado.
"Acidente de trânsito, bateu com a cabeça e agora está aí, roubando o lugar de pessoas mais doentes no hospital". - dei de ombros.
"Você que é patético, eu provavelmente estou em coma... Eu estou bem doente, cara!" - o fantasma soltou um grito ardido.
Fiz um único olho brotar do topo do meu corpo, e olhei diretamente para ele, que se contorceu de disgosto. Fiz então brotar uma boca cheinha de dentes, todos à mostra, prontos para falar.
O fantasma me encarou, depois encarou o corpo, depois o quarto novamente, então, voltou-se para mim.
"Oh não... - ele lamentou - Não!!! - sua tempestuosidade fez com que uma janela trincasse - Não pode ser você...' - ele tapou os olhos - Você é... Isto aqui é..."
"Prazer, já nos conhecíamos antes, eu estive nos seus piores e melhores momentos e com certeza estou aqui agora, neste momento em que você está bem no meio da ponte entre a vida e a morte, você quer saber meu nome...?" - eu sorri deixando uma saliva ácida escorrer de minha língua.
O homem-fantasma estava completamente transtornado, assim que se lembrou de que eu teci cada pesadelo em sua vida e que agora, seu pior trauma, o pesadelo mais temido, o medo mais cadavérico, agora era simplesmente realidade.
Ele congelou, não subia, nem descia, apenas pairava sobre a cama, como uma neblina.
Me arrestei então para mais perto dele, deixando um rastro limoso e marrom, aproximei minha enorme boca do fantasma e disse as palavras que ele já esperava ouvir:
"Eu sou o Assalto-Pesadelo".
"NÃAAAAAAAO! Não!!!!! Saia de perto de mim, me deixe em paz, por favor, por favor, por favor! Não se aproxime, deixe-me em paz, por favor!!!" - o fantasma repetia sem cessar, falava tão rápido e gritava tanto que os batimentos cardíacos do corpo estavam quase colapsando. Ele teria um ataque.
"Quer mesmo ter um ataque e a última coisa que seu espírito verá, serei eu?" - fiz ele pensar um pouco mais.
Mas ele não cessava de gritar, sobre-voar o quarto de um lado pro outro, cada vez que se virava para mim, eu ainda estava lá, apenas aguardando o ataque-cardíaco eminente.
Se passaram horas? Não sei por qual razão os humanos gostam de contar o tempo em horas. Enfim, um tempo se passou e o fantasma aos poucos se acalmou, depois de vários paramédicos entrarem para conferir o motivo dos batimentos cardíacos do paciente estarem tão elevados, por fim, sedando-o e trancando-o ainda mais.
...
Eu me mantive ali, na mesma posição, com meu olho e com meus dentes, aguardando a próxima fala.
"Você vai mesmo me deixar preso aqui, não é senhor... Eu não vou dizer seu nome, minha cabeça doí muito, só de lembrar o que já me fez ver em sonhos".
"Querido, a Fada dos Dentes deixa moedas, o Coelho da Páscoa, chocolates, o Papai-Noel deixa presentes, O Senhor Homem de Areia, te faz dormir, o Anjo da Guarda te protege e eu... Bom, eu torno os pesadelos reais. Não há outra forma de existir. O ar não escolhe ser ar, o fogo não escolhe queimar, apenas acontece... E eu aconteço. Terei de fazer isso". - fui sincero e fiquei com pena, pela primeira vez em toda minha gloriosa existência.
Ele não era mau como os outros, havia sido apenas um acidente de carro, na verdade, este homem era o ser mais comum de toda a criação, tinha seu trabalho comum, nascera de uma família comum, vestia roupas comuns, era parte dos bilhões de pessoas comuns que existem por aí, figurantes com quem as pessoas trombam no ônibus, pedem esmolas, ultrapassam no trânsito e batem na traseira.
Mas eu sou diferente do Papai-Noel, que só aparece para crianças boas, eu apareço para todos os seres pensantes que existem na face da Terra... Sou inevitável, como Thanos.
"Me responda... O medo de ficar para sempre em coma foi eu que criei ou foi você? - ele indagou, tremendo, quase desaparecendo de medo - Como faço para você ir embora?"
"Não há uma separação entre eu e você, ou eu e qualquer pessoa viva ou morta. Eu estou aqui, assim como você." - respondi.
"Então... Você é apenas uma criação minha...?" - ele fez que ia sorrir, mas desistiu.
"Ou... Você é uma criação minha... - rebati - "Não há escapatória, sinto muito".
O fantasma ficou em silêncio, observando a janela, eu podia sentir sua alma morrendo aos poucos.
"Sabe, agora você tem ciência do que todos os humanos desconfiam... É possível realmente sair do corpo, olhe só para você, está ali deitado e ao mesmo tempo, está aí em cima... Você se dividiu em dois! Tem um super-poder agora." - tentei fazê-lo não levar para o lado pessoal.
"Qual é a parte do pesadelo? Aonde começou? Começou no acidente, começou hoje de manhã quando saí de casa ou começou aqui no hospital?" - ele ignorou meu discurso e apenas perguntou essas coisas tão óbvias.
Eu gargalhei, foda-se humaninho, você me ignorou? Eu sou o Assalto-Pesadelo!
"Já parou para pensar se, nunca houve vida fora disto...? E se sua casa, seus amigos, seu trabalho, seu carro parcelado em setenta e oito mensais, e tudo o que você conhece... Fosse apenas parte do pesadelo? E se você só acordou agora?" -olhei para eles, com os olhos rubros por dizer a verdade.
O coração do homem começou a titumbear novamente, como tambores de guerra, dentro do peito. O corpo começou a transpirar.
"Não pode ser..." - o espírito caiu no chão como uma pedra e se esparramou por todo o piso.
"Já pensou... Se por vinte e sete anos você viveu nesta cama, cresceu aqui, comeu por sonda, e nem filhos você teve...? E vai morrer aqui, assim como viveu, assim como veio ao mundo... Você é apenas uma imagem de fundo, um adesivo, quando quiserem, vão te desligar e de nada valeu, acordar agora e me conhecer...' - gargalhei profanamente enquanto os gritos do espírito se solidificavam entre as paredes do hospital.
Ele estava em pânico, não sabia mais o que era real, não sabia nem ao menos se algum dia ele fora real.
Criei pernas e fui andando até a maca, então de meus bolsos gigantes, tirei uma algema e o prendi ás grades da maca.
O fantasma velozmente saiu do piso e se materializou na minha frente.
"Não... Isso não... Por favor... Eu imploro, eu rogo!" - o fantasma beijou meus pés.
Mal sabe ele que, ele que decidia o que era o pior pesadelo ou não, á esta altura, todas as possibilidades eram horripilantes e totalmente possíveis, tudo o que acontecia, parecia ser seu mais puro caos, seu inferno cíclico.
"Já pensou então, se você na verdade é um criminoso e logo logo algum enfermeiro calmamente virá pôr fim em sua existência com a mais dolorosa dose de ácido e você vai sofrer por HORAS doloridas e infernais, sendo esmagado por dentro, até que finalmente... Se vá...?" - eu gargalhei verdadeiramente, após plantar essa semente em seu coração.
O espírito congelou.
"Ninguém tem medo da morte, e sim medo de doer, não?" - sussurrei tornando a aura do lugar ainda mais densa.
Atrás de nós, a sombra de um enfermeiro com uma seringa enorme, surgiu na porta.
Logo as luzes se apagaram, e todas as máquinas do hospital eclodiram, alerta geral.
"Não... Não.... Eu imploro!!! Não!!! NÃÃÃÃÃÃÃÃÃO!!!" - ele implorava enquanto a porta ia sendo lentamente aberta...
"Você terá muuuuito tempo, para pensar sobre todas as possibilidades... Foi um imenso prazer, te fazer esta visita." - fiz brotar de mim um chapéu, vesti-o em meu único olho e deixei o fantasma ali, apavorado, causando pequenas explosões de ecto-plasma pelo prédio.
Respirei o ar do puro caos, que dia lindo!