CENA ÚNICA: EXT. GARAGEM DA CASA - NOITE
Em uma festa de aniversário, escorada no portão da garagem, uma menina de cabelos compridos está de frente para um homem de cabelos grisalhos. Era quase o fim da festa e ela havia chamado o homem para uma conversa mais reservada.
ANA: Hique, você leu aquilo que eu te entreguei no natal do ano passado?
HENRIQUE: Eu li sim, Aninha.
ANA: Você entendeu do que se tratava?
HENRIQUE: Com toda certeza.
ANA: Eu me baseei na música da Céline Dion que você falou. Na verdade, eu não queria ter te mostrado. Eu não sabia se você ia gostar. É algo bem pessoal e poderia ser que você ficasse com raiva, mas eu mostrei para a minha mãe e ela acabou me convencendo a te mostrar.
Pausa. O dois se olham e, por alguns instantes, o silêncio impera.
ANA: O plano era eu ter entregue antes, mas aí o meu avô faleceu e as coisas ficaram bem complicadas lá em casa.
HENRIQUE: Tudo bem, eu entendo. Na verdade, eu não li assim que você me entregou. Decidi guardar, pois eu sabia que a hora certa iria chegar. E realmente chegou. Eu li recentemente, quando eu mais precisava daquelas palavras. Tenho intensão de colocar em uma moldura, para conservar.
ANA: Eu não gosto muito de mostrar aos outros o que eu escrevo, sabe? Mas o que eu fiz foi pensando em você e em tudo que me contou. Não achei justo esconder dos seus olhos.
HENRIQUE: Por qual motivo você não gosta?
ANA: Ah, não sei. Eu sinto que nunca é bom o suficiente. Acho que cobro muito de mim.
HENRIQUE: Aninha, eu fiquei realmente ruim com tudo que aconteceu durante o início da pandemia. Perdi meu melhor amigo e me senti responsável pelas vidas perdidas no município.
ANA: Você deveria pensar nas vidas que salvou, Henrique. Os que se foram, já estavam destinados a ir. Quer dizer, você, na posição de secretário de saúde, fez o que pode e salvou muitas vidas. Pense assim.
HENRIQUE: Eu tento, Aninha. Eu realmente tento, mas é muito difícil não se cobrar, principalmente quando existem muitos esperando grandes coisas de você.
ANA: Mas você fez e faz grandes coisas. Você é uma ótima pessoa e sempre ajuda os que precisam. É só que, às vezes, não existe muito o que se possa fazer. Não é culpa sua. Não é culpa de ninguém.
Ela aperta forte as barras de ferro do portão. Ele permanece em silêncio, pensativo e, após alguns instantes, quebra o silêncio.
HENRIQUE: Você disse que não gosta de mostrar o que faz, mas me diga: Você faz por gostar, certo?
ANA: Sim. Com toda certeza. Eu amo escrever.
HENRIQUE: E já parou para ler o que escreveu para mim? Faça isso. Analise com calma e vai entender que não deve ter vergonha ou qualquer coisa do tipo. Depois de um tempo, eu percebi que não posso agradar a todos e que não devo deixar de fazer o que gosto por medo e o seu poema só fez a minha visão disso se intensificar.
ANA: Acho que você tem razão.
HENRIQUE: A conversa está muito boa, mas eu preciso ir arrumar minha mala. Viajo logo cedo amanhã e ainda não separei nada. Muito obrigado, Aninha. Acho que eu estava precisando disso. Boa noite.
ANA: Eu que agradeço, Hique. Faça uma boa viagem e até a volta.
Os dois se despedem com um abraço. O homem começa a caminhar em direção a sua casa, enquanto a menina volta para o aconchego de seus parentes.
FIM DA CENA