— Estou cega. — A Imperatriz me confessa em voz alta, enquanto esbarrava em algum móvel da sala.
A escuridão diante de meus olhos era profunda, mas a cegueira em si não me incomodou. O maior problema era que nós estávamos na caçada de uma vítima naquele exato momento.
A pequena cabana não era tão grande, havia somente dois cômodos: uma cozinha e uma sala (que servia de quarto, pois era onde a cama estava) e que já haviam sido minuciosamente investigadas por nós duas antes da cegueira cair sobre nós, enquanto a vítima dormia algumas horas atrás. O banheiro ficava do lado de fora (onde a noite sombria deixaria qualquer um que tentasse sair, mais cego do que eu e Imperatriz) e nós tínhamos certeza de que a vítima não havia saído, porque a única porta de acesso estava trancada (e foi a última coisa que vimos antes de ficarmos cegas), sendo que a chave estava comigo. Todas as janelas estavam bloqueadas pelas travas de segurança. Caso ele tentasse abri-las, nós ouviríamos o suave clic como se fosse um grito no perturbador silêncio no qual estávamos. O local era revestido de madeira da cabeça aos pés, então qualquer ruído que não fosse o nosso, denunciaria a localização da vítima.
Dentro ou fora da casa, aquele homem narcisista não poderia se apoiar em nada, além de seu desespero.
— Flávia — A chamo da cozinha. — Eu também estou cega. Talvez devêssemos ir embora. Provavelmente ele já fugiu sem que percebêssemos.
Minha companheira, percebendo rapidamente que se tratava de blefe, me respondeu:
— Concordo. Até porque nós não vamos conseguir matá-lo nesse estado.
A única vantagem da vítima era a sua visão e, caindo em nossa armadilha como um coelho, ela passou a se mover juntamente conosco, enquanto andávamos em direção a saída. Com um dos nossos sentidos em desuso, os demais ficaram aguçados, por isso, Flávia, ao ouvir um passo a mais fora da nossa sincronia de movimento, lançou sua faca em direção ao barulho, no mesmo instante que eu lancei minha adaga.
Um baque surdo foi ouvido caindo no chão segundos após o lançamento. Dou um longo suspiro e digo:
— Finalmente! Essa venda estava machucando meus olhos.
— Queria ajustar o ângulo para acertar a testa dele, desculpe se demorei. Estava contando a que distância ele estava de mim por meio da contagem dos passos. — A Imperatriz me responde, enquanto tira sua venda.
Concordo fazendo um leve aceno de cabeça e guardo no bolso a máscara escura que Ternura carinhosamente costurou para mim e Flávia, quando ela ouviu a Imperatriz dizer que gostaria de brincar de Assassina Cega¹.
— Acertei bem no centro da cabeça. A morte foi instantânea. — Minha parceira comenta com a mão no queixo, contemplando a sua obra.
— Diabo… — Praguejo em voz baixa.
— O que foi?
— Não encontro minha adaga.
— E eu não encontro a orelha dele.
Nós duas arqueamos as sobrancelhas e passamos procurar a arma e orelha perdidas. Quando começamos a nos locomover para a cozinha, senti alguém puxar a barra de meu vestido. Meu primeiro impulso foi virar-me rapidamente e impulsionar a perna com força para trás, para que o dispositivo da lâmina na ponta da minha bota fosse ativado, mas, por algum motivo, lembrei-me que Tristeza certa vez me disse:
— Nunca chute antes de verificar quem ou o que é. Pode ser algum ser mágico tentando te ajudar... ou te matar.
Em respeito aos Deuses Ocultos e todas as suas mágicas criações, principalmente à minha própria vida, abaixo lentamente os olhos e me deparo com uma criatura muito pequena, que possuía mãos enormes penduradas em seus finos braços. Em seu rosto, a falta de seus olhos era o destaque, pois estavam sem os globos oculares e somente um profundo vazio me encarava. Olho para Flavia e ela rapidamente levanta as mãos em forma de rendição ao dizer:
— Juro que não fui eu que arranquei os olhos.
Contenho o riso e, abaixando-me para tentar ficar na mesma altura do Duende², sorrio nervosamente ao dizer:
— Você sabe onde está a minha adaga, pequenino? Ela é muito preciosa para mim. Foi a minha Mestra que me deu.
Ele balança a cabeça positivamente e de repente some, mas um segundo depois retorna, como se tivesse se teletransportado, entregando a mim a adaga negra com a orelha presa na ponta. Pego minha arma e retiro a orelha, dando-a para o meu novo amigo.
— Um presente para você. — Digo e o Duende tenta abrir um sorriso de agradecimento, mas sua boca está costurada.
Antes que eu pudesse falar mais alguma coisa, ele subitamente desaparece, deixando para trás o som de uma risadinha abafada sombria e um papel dobrado. Pego com a ponta dos dedos o minúsculo bilhete e ouço a Imperatriz dizer:
— Qual o nome dele?
— Rumpelstiltskin. — Respondo, após ler com certa dificuldade o pequeno papel.
— Ele gostou de você. — Minha amiga comenta.
Com um suspiro aliviado, revelo:
— É melhor tê-lo ao nosso lado do que contra nós.