Cecília, em seus 20 anos recente, tem uma rotina peculiar. Como qualquer jovem adulto, acorda cedo – mesmo tendo desligado o soneca do alarme 6 vezes mais do que deveria – levanta correndo e se arruma para ir a faculdade. Pega o trem lotado e quando de bom humor, dorme enquanto se pendura nada elegantemente no corrimão para não cair.
Por ser bem atrapalhada, em sua pressa para chegar no andar a tempo, deixa sua garrafa de água cair no vão entre o trem e a plataforma, mesmo tendo escutado a moça do trem avisar inúmeras vezes que se deveria ter cuidado ao sair do mesmo.
Mas nada disso a abala. Nem mesmo quando chega na sala toda suada e recebe um olhar reprovador da turma, nem quando o professor discretamente a encara como se questionasse o que ela estava fazendo ali. Nem quando recebe mais um trabalho de 12 páginas para a semana que vem junto a um seminário.
Nada disso abala a feliz Cecília, que nos intervalos, desce 3 andares só para comer um brigadeiro, um salgado integral de queijo minas com cebolinha e o suco do dia. Não tem como Cecília ficar triste quando come no bandejão ao lado das suas amigas e faz palhaçadas sem parar.
Nem mesmo quando ela volta para casa no calor desgraçado do Rio de Janeiro colada a estranhos no trem. Ou quando precisa andar a pé da estação a sua casa, numa distância considerável. Quando tem tempo, até visita sua avó que mora no caminho. Troca umas ideias, zoa plantão com a doce velha e depois volta para casa.
Cecília não se abala quando tem que encarar vários trabalhos acadêmicos de madrugada, nem mesmo se estressa quando seu pai vem dar bronca por dormir tarde, ou quando sua mãe quer desabafar justamente quando ela está tentando se concentrar no texto que já releu 3 vezes e não entendeu nada. Muito menos quando seus irmãos colocam o som da TV no máximo e decidem se gladiar.
Nada disso abala a sempre sorridente Cecília, que coloca seus fones de ouvido, bota para tocar sua playlist que vai de SOD até PVRIS e feliz continua o seu trabalho. Às vezes se levanta para oxigenar o cérebro e quando tem coragem faz uns exercícios. Alonga e massageia seus ombros, pois passar muito tempo sentada a deixa com as costas e ombros travados. Seu maior medo é ficar corcunda ou precisar de um corretor de postura.
E o ápice de suas noites, quando não está morta de sono – difícil, mas existem esses dias – Cecília abre o seu site favorito, Academia de Contos. Lá, onde seus maiores pensamentos são expressados, ela é conhecida por suas obras tristes. Até pensou em compartilhar seus contos de terror, mas teve receio de ser taxada como insanamente depressiva ou potencialmente surtada. Também tinha receio de não serem bons o suficiente, então apenas se dedicava ao lírico. No entanto, quando Cecília estava em seu ápice de inspiração, abria uma aba no LibreOffice (que seria equivalente ao Word, mas como sua licença tinha expirado e ela não tinha dinheiro para pagar uma no momento) continuava sua história.
A história dos seus sonhos. Nela, uma personagem chamada Ana Beatriz estava prestes a ter um colapso nervoso. A personagem tinha um histórico conturbado, uma família extremamente complicada e sua vida foi recheada de tristeza desde o seu nascer. Ana Beatriz é extremamente o contrário de Cecília, que era feliz, tinha uma família tranquila e sua vida sempre foi tranquila.
Em seu ato, Ana Beatriz já estava a postos, seus pulsos inchados, seus olhos vermelhos e sua boca rachada eram prenúncio de seu fim. Depois de 9 comprimidos de passiflora, que não surtiram efeito nenhum, Ana Beatriz decidiu que precisaria de um efeito mais forte e talvez seja por isso que estava ela pendurada no parapeito da janela.
Cecília tinha certeza de que se fosse ela no lugar, teria uma plateia a impedindo, mas em sua história, Ana Beatriz não tinha ninguém, nem a si mesma, já que sua alma já estava morta a muito tempo. Então, apenas terminou com seu corpo. Um coro de estalos, um corpo deformado e nenhum silêncio de luto.
Cecília terminou de digitar, alongou novamente os ombros, salvou o arquivo e sorriu. Finalmente tinha terminado a história de Ana Beatriz. Ela precisava de um fim.
Cecília, uma menina feliz, ficou mais feliz por ter terminado mais uma história. Ana Beatriz não era a primeira, muito menos seria a última. A próxima se chamava Malva.
Cecília irá escrever outra história de uma menina triste.
Mas não se enganem, Cecília não era uma menina triste.