Tinha esquecido da visita de Milena, a entrevista de emprego ainda fresca na memória. Aos poucos conseguiu construir o castelo imaginário de fatos que culminaram naquela noite, algumas lacunas que seriam preenchidas somente na semana seguinte, aceitou resignada.
Naquela manhã tinha ido comprar alguns legumes para preparar uma salada na hora do almoço, enquanto observava os preços alguém tocou seu braço e puxou conversa de forma educada. Ao saírem do mercado, Milena se convidou para uma visita no final da tarde, não se viam há muito tempo, a nostalgia dos velhos tempos de colégio fez com que convite fosse natural. No colégio tinham sido boas amigas, compartilhavam gostos e vícios, as notas um pouco acima da média.
Ficou aliviada por não ter um gatinho de estimação, sempre quis. Dessa vez o instinto assassino, riu sozinha, do bichano poderia representar uma ameaça para a pequena periquita que subia com sua dona. Começou a pintar uma tela trágica da cena, penas voando por todo o apartamento e o gatinho assustado pela histeria assustadora de sua dona, após o estranhamento inicial veriam que o gatinho e a periquita tinham ficado amigos e passeavam descontraídos pelo apartamento, as donas contando histórias antigas que surgem nesses momentos para nunca mais serem lembradas. A tinta do quadro imaginário estava quase seca quando a campainha tocou.
- Achei que você não vinha! – Beatriz deu as boas-vindas da forma mais calorosa que conseguiu.
- Você tinha esquecido que eu sei. – Milena respondeu num tom maroto enquanto ajeitava a gaiola nos braços.
- Tinha sim, e essa periquita?
- Eu sabia. – Milena disse enquanto caminhava alegre em direção à sala.
Conteve a vontade de contar detalhadamente como tinha sido a entrevista, ou suas ideias para nomes de gatinhos, tinha uma lista na última folha da agenda de telefones, foi para a cozinha buscar duas xícaras e a garrafa térmica, ela deve gostar de um bom chá nesse friozinho, respondeu a própria pergunta ao abrir a porta do armário em busca da caixinha de chá.
Pela janela observaram a noite que se espalhava por todos os espaços, as luzes dos postes refletiam nas poças de água formadas depois da chuva, o vento frio passeava despreocupado pelas ruas. Com as xícaras nas mãos sentaram no sofá, pensou em colocar alguma música para ter um som ambiente, a gaiola no chão entre o corredor e a sala, a periquita em silêncio, quase perguntou se ela tinha nome, mas achou uma pergunta desnecessária.
Conversaram sobre o período entre o fim do ensino médio e o presente, faculdades trancadas, empregos que pagavam mal, qualquer interesse romântico que terminara da mesma forma que havia começado: sem grandes expectativas, ainda tinham muito em comum. Talvez continuassem sendo amigas por muito tempo, mesmo que não se vissem com frequência, divagou esperando pelo momento adequado para falar de ÓVNIS e ufologia.
O silêncio da noite foi interrompido por um ruído da gaiola. Numa sequência grotesca, uma criatura sem forma despertou de dentro da gaiola e a destruiu sem muito esforço.
- Droga. – Milena disse ao se aproximar de Beatriz, ainda com a xícara nas mãos trêmulas.