"Quem sonha de dia tem consciência de muitas coisas que escapam a quem sonha só de noite."
- Edgar Allan Poe
Os meus olhos se abrem lentamente. Sinto o meu corpo cansado e suado como se eu tivesse participado de uma maratona, mas a verdade é que eu dormi cedo. Os remédios receitados pela doutora fazem o efeito quase que de imediato. Arrasto as minhas pernas pesadas e cansadas da cama, porém antes de levantar, observo algo: a porta está entreaberta, mas isso é impossível, era o que eu achava antes, afinal de contas não vive ninguém nessa casa além de mim.
13/09/2006
As luzes do andar inferior da casa estão ligadas. Os meus olhos percorrem até a sala de estar, no lugar onde ficava o telefone fixo, mas lembro de que pedi para retirarem a linha na semana passada. Fico estática. Um frio percorre os meus pés e chegam até a minha nuca, sinto os meus pelos se eriçarem.
Talvez não seja adequado correr para o quarto, mas eu não penso sobre isso. A adrenalina invade o meu corpo e corro em disparada até o quarto, bato a porta e tranco, retiro a chave da fechadura e arrasto a pequena mesa ao lado da minha cama e a coloco em frente à porta. No pequeno banheiro, retiro os frascos de remédios da gaveta, leio o rótulo e a bula, relembro os efeitos colaterais recitados pela doutora repetidamente, então respiro. Ninguém entrou em casa. Há apenas uma pessoa aqui. Eu.
20/03/2008
Saio para o longo e estreito corredor da minha casa. O frio emana pelo lugar, esqueci-me de ligar o aquecedor e o inverno castiga a minha casa. Olho para cima e vejo algumas câmeras instaladas. Nunca foram ligadas, a não ser para teste. Elas deveriam ficar ligadas de noite e gravar, quando eu supostamente tenho os ataques de sonambulismo ou faço algo e esqueço-me do ato, contudo a verdade é que não me sinto a vontade para fazer isso.
Desço os degraus da escada enlaçando os meus braços sobre o meu corpo, como um abraço. A casa toda está gélida. No andar inferior, olho atentamente para cada canto e nada parece estar fora do lugar. Respiro aliviada, talvez eu apenas tenha esquecido a porta aberta.
20/03/2008
20:30
A constatação óbvia de que sumiu uma faca deixa a minha mente em alerta. Reconto todas. Uma, duas, três e... Deveria haver uma quarta faca na gaveta inferior do armário da cozinha, mas não está aqui.
O desespero toma conta da minha mente e corpo. Começo a transpirar e a minha cabeça lateja, o prenúncio da dor lancinante de cabeça que está prestes a começar. Ando rapidamente até o banheiro do meu quarto e engulo duas pílulas do frasco do meu remédio, ligo a torneira e com a mão em forma de concha, coloco a água que desce em cascata e bebo. Lavo o meu rosto também e tento fazer o exercício de respiração. Contudo falho. Desço novamente e caminho até a cozinha, a gaveta aberta ainda mostra apenas três das quatro facas que eu tenho. Um pensamento vem em mente, mas não penso que isso seria possível. É possível que tenha alguém entrando na minha casa enquanto durmo?
21/03/2008
00:00
Ligo o sistema das câmeras noturnas de segurança que estão instaladas em alguns pontos da minha casa, a luz vermelha sinaliza que estão funcionando perfeitamente bem. Há uma na extremidade do meu quarto, dela é possível ver todo o espaço do cômodo. Duas nos corredores e duas câmeras na sala de estar, posicionada de forma estratégica que me permite a filmagem também da porta principal. Volto para o quarto e ligo o notebook, no qual o sistema de segurança está conectado, as gravações ficarão salvas nele e pela manhã poderei analisar o que acontece enquanto durmo. Uma chuva forte se inicia. Hoje a noite será longa.
Coloco o notebook sobre mesa e volto para cama, já deitada, estico o braço até o abajur e tento desliga-lo, mas antes que isso aconteça, a luminária pisca e desliga. Vejo a luz vermelha da câmera também desligar, talvez tenha faltado energia. Tateio em busca do meu celular e ligo a lanterna do aparelho, caminho até o interruptor da luz, mas quando aperto para ligar, tudo continua imerso na escuridão.
Encaminho-me para a janela que dá acesso à rua, ao longe vejo uma luz que logo é apagada. Foi desligada ou a energia também faltou nela? Antes de sair do quarto penso se há alguém na minha casa, alguém que possa ter desligado o interruptor principal da casa instalado no porão, e decido que não é uma boa ideia sair e ir ao porão, sozinha e no escuro. Decido retornar para a cama e sentada, posiciono a lanterna do celular em direção à porta.
22/03/2008
Eu não sei exatamente quantas horas eu dormi, mas foi tempo suficiente para o meu celular estar jogado no chão, desligado, e a janela do quarto estar semiaberta. Uma corrente de ar sopra em minha direção, sinto todos os meus pelos se eriçarem. Uma sensação estranha se apossa do meu corpo e da minha mente.
Tento afastar tal sensação com o uso do remédio, dirijo-me ao banheiro e tomo três pílulas, isso deve resolver. São apenas os efeitos colaterais. Efeitos Colaterais. Repito a mim mesma. Efeitos Colaterais.
XX/03/2008
Assim como na noite… eu não lembro se foi na noite anterior, porém, a luz vermelha da câmera do corredor que sinaliza que a mesma está funcionando já está ligada, desligo a luz e entro no quarto, tranco a porta e retiro a chave da fechadura. O meu notebook já está ligado e registrando tudo o que acontece na casa, claro, que nada vai acontecer, tento me tranquilizar. Respiro e Inspiro.
O frasco de remédio está sobre a pequena mesa ao lado da cama, engulo quatro, as pílulas passam rasgando pela minha garganta, mas sei que isso me ajudará a ter uma noite de sonho sem interrupções.
XX/XX/XX
Acordo sobressaltada, um estrondo forte me faz acordar assustada, a respiração falhando, sinto o suor ensopar a minha camiseta, não me lembro de nada, mas devo ter tido um pesadelo. Olho para o relógio 06:00.
Olho para o notebook e lembro sobre como a minha imaginação me faz crer em coisas ínfimas, mas ainda sim, irei verificar, mas antes, preciso dos meus remédios. Apenas mais quatro pílulas e já é o suficiente para fazer eu me sentir bem melhor! Retorno às gravações da noite anterior e me vejo entrando no quarto e pegando o frasco de remédio da mesa, depois aparece uma imagem minha já deitada. Nada aconteceu, até agora. Mais outra imagem, estou novamente em pé e engolindo mais pílulas, a gravação deve ter voltado.
Começo a partir da hora em que estava entrando no quarto, verifico o horário, mas quando chega na minha outra imagem em que estou com o frasco de remédio novamente na mão, percebo que o vídeo não voltou. Eu realmente fiz isso?
Com o corpo tremendo e sentindo uma sensação de desespero eminente continuo a olhar a gravação, quadro por quadro, hora por hora.
01:00 - No corredor, a imagem de uma pessoa com longos cabelos aparece, não consigo ver o seu rosto, é como se a pessoa soubesse da existência das câmeras e tentasse se ocultar. Mas eu sei que não sou eu. Em nenhum momento, as câmeras me filmaram sair do quarto. Com as mãos trêmulas e suadas retorno o vídeo. Tudo é real. A minha respiração falha, olho para trás, mas não tem nada. O que era aquilo e por que entrou na minha casa?
01:10 - A pessoa para em frente a porta do meu quarto, vejo a sua mão se levantar e bater na porta, se eu pudesse ouvir, diria que o barulho era muito alto. Mas como não acordei. A pessoa continua a bater na porta, mas desiste após 20 minutos.
Olho para o relógio digital no notebook. 06:30. Pulo a gravação para 06:00, contudo, nada anormal aparece no corredor ou no quarto. Dou uma risada de alívio e desespero. São os efeitos colaterais.
06:32 - A gravação começa sem eu iniciar. Olho para a imagem que aparece no notebook e percebo que aquela pessoa continua lá fora, na porta, mas agora ela abriu e tem uma faca empunhada na mão. Meu corpo paralisa, sem conseguir virar para olhar o que está acontecendo, a imagem do notebook retorna para 06:00 e a tela apaga. Tudo fica escuro e os meus olhos se fecham.