CENA ÚNICA: INT. CONSULTÓRIO – TARDE.
Uma jovem entra no consultório e se senta no sofá. De frente a ela há um senhor de meia idade, sentado em uma poltrona com as pernas cruzadas e com um bloco de anotações apoiado na perna.
HOMEM: Boa tarde, Júlia. Quer me contar como foram essas últimas semanas?
JÚLIA: Um pouco estressante, confesso. Foi um pouco difícil concluir a lição de casa, mas acredito que fui bem. Nada de novo aconteceu, a mesma rotina desgastante de sempre.
HOMEM: E como foi lidar com eles durante o jantar?
Pausa. Júlia cruza suas pernas com os joelhos à frente do corpo, em posição de índio.
JÚLIA: Para ser sincera, eu acabei fugindo. Inventei uma desculpa qualquer para os meus pais e fiquei a noite inteira fora; não é como se eles não estivessem esperando por isso.
HOMEM: E por que fez isso? Pelo que me contou em nosso último encontro, essa reunião era importante e todos precisariam estar presentes.
JÚLIA: Mas quem ligaria para mim? Quer dizer, não faria muita diferença estar presente ou não.
HOMEM: E por que pensa assim?
JÚLIA: Eu não sou tão criativa como o meu irmão para criar propostas instigantes e desafiadoras, tampouco inteligente como meus pais para pensar em estratégias financeiras e marketing empresarial. Mal consigo raciocinar ou achar uma saída para os meus problemas, então para que passar essa vergonha quando posso poupar a todos da personificação do desastre que me tornei?
Silêncio. O homem de meia idade se levanta da poltrona indo em direção à mesa e pegando uma foto de uma menina sorridente. Ele entre à Júlia que pende a cabeça levemente para o lado, enquanto observa a foto com um semblante confuso.
HOMEM: Está vendo essa menina no balanço, sozinha? Sabe por que ela está isolada?
JÚLIA: Não.
HOMEM: É porque ela é estranhada e feia. Quero que a mentalize em sua frente, e a chame de feia, de gorda.
JÚLIA: O quê? Não!
HOMEM: Vamos, diga que ela é uma vergonha, que não possui nenhum valor e que é totalmente inútil. Olhe diretamente para os seus olhos, e diga que ela é um erro.
JÚLIA: Não, pare com isso!
Pausa. Júlia permanece sentada, porém coloca os pés no sofá para abraçar os joelhos, enquanto ainda observa a foto.
HOMEM: Se ela realmente estivesse aqui em sua frente, o que diria?
JÚLIA: Essa menina, eu não a conheço, mas ela é linda. Diria para não se importar com a opinião negativa dos outros, e que ela não é estranha. Diria que ela tem uma luz única dentro de si que jamais será apagada, algo que a torna única, especial. Eu diria que ela é linda, que nunca seria um erro, e que ainda há um futuro lindo pela qual vale à pena ela lutar.
HOMEM: Certo. Você acha que ela é feia e gorda?
JÚLIA: Não.
HOMEM: Acha que ela é um ser humano sem valor, inútil... Simplesmente um erro existencial?
JÚLIA: Não! Eu não acho! Por favor, pare...
HOMEM: Então por que faz isso consigo? Pois é isso que você diz toda manhã a você mesma quando se olha no refletida no espelho.
Silêncio. O homem pega a foto das mãos de Júlia, recolocando-a novamente em cima da mesa. Senta-se na quina da mesa, cruzando os braços.
HOMEM: Você é extraordinária, Júlia. Talvez agora não consiga enxergar o tamanho da sua capacidade, mas espero que quando finalmente conseguir olhar para si sem nenhum resquício de inferioridade, compreenda todo o seu potencial escondido nessa muralha que você criou em sua mente. Mas eu sei que ainda há muito o que ser trabalhado, então para começarmos, que tal você enumerar em uma folha de papel todas as suas conquistas? Sejam elas pequenas ou não. Traga para a próxima consulta, por gentileza.
JÚLIA: Eu... Tudo bem. Obrigada.
Júlia solta os joelhos e se levanta, com uma expressão pensativa.
HOMEM: E, Júlia? Gostaria que refletisse um pouco sobre o que falamos hoje. Principalmente sobre como você se vê no espelho. Muitas vezes a nossa mente tende a criar situações ilusórios e achismos infundados na tentativa de nos aprisionar, quando a realidade pode ser muito diferente do que pensa.
JÚLIA: Farei isso, obrigada.
Júlia vai em direção à porta, porém para antes de abri-la, com a mão ainda envolta da maçaneta.
JÚLIA: Posso te perguntar algo? Uma pergunta meio antiprofissional, eu acho. Vou entender se não quiser responder.
HOMEM: Pergunte.
JÚLIA: Quem era a menina da foto que me mostrou?
Silêncio. Júlia ainda se encontra de frente à porta. O homem suspira, pegando a foto da menina e observando-a, com um sorriso triste no rosto, ainda sentado na quina da mesa.
HOMEM: Era a minha filha. Nessa foto ela tinha por volta de sete anos. Era linda, com uma alma bondosa demais para esse mundo, mas a sociedade é cruel demais para quem não se encaixa nos estereótipos que ela impõe. Apesar de estar bem acima do peso ela era saudável, e todo dia dizíamos o quanto ela era linda e única. Mas as coisas foram piorando, o bullying que sofria era incessante e cada vez mais intenso, não importando quantas vezes interferíssemos ou mudássemos de lugar. Até o momento que ela parou de contar as coisas, e esse foi o meu pior erro: acreditar que tudo tinha se resolvido. Ela faria 22 anos mês que vem, mas infelizmente há seis anos nós a perdemos... Eu a perdi, para sempre.
JÚLIA: Eu sinto muito, eu só...
A voz de Júlia vai sumindo, enquanto ela vira a cabeça para o homem, com os olhos marejados na tentativa de segurar o choro.
HOMEM: Tudo bem, Júlia. Ainda dói e sempre vai doer, mas falar dela me traz uma sensação de conforto. É por isso que eu quero que você viva. Viva intensamente, sem se preocupar com a opinião dos outros. Trace um sonho e lute por ele. Você é muito mais do que a sua mente questiona. Leve o tempo que for para se reerguer, porém nunca desista. Nunca desista de quem você quer ser, de quem você é, e principalmente, nunca desista da sua vida. Porque quando você desiste do mundo, da vida, as piores consequências ficam para aqueles que sobreviveram para vivenciar o luto.
O homem vai em direção a Júlia, colocando uma mão no ombro dela, em sinal de conforto.
HOMEM: Você é perfeita do seu jeito, Júlia. Nunca deixe alguém te dizer o contrário, principalmente você mesma.