CENA ÚNICA: INT. DELEGACIA – TARDE.
Há duas cadeiras separadas por uma mesa. Em uma extremidade se encontra Maria, com os olhos roxos, o lábio cortado e hematomas espalhados pelo corpo; ante ela se encontra O delegado.
DELEGADO: Sei o quanto é difícil e traumatizante, mas precisamos pegar o seu depoimento. Independente de tudo o que for dito nessa sala, saiba que estamos do seu lado e que você está segura, tudo bem?
Pausa. Maria coloca suas mãos em cima da mesa, apertando-as, acenando positivamente para o delegado.
DELEGADO: Ok, vamos começar. Pode nos contar como tudo começou?
MARIA: Bom, digamos que novamente eu virei uma estatística. As primeiras vezes ocorreram de forma tão delicada que não percebi o abismo que havia se instalado. Ele começou com as manipulações psicológicas, induzindo-me a acreditar que o meu trabalho não geraria credibilidade alguma por ser mulher. “Ninguém irá te apoiar. Quantas mulheres você viu frente a um projeto? Não existe engenheiras, e sim engenheiros”, era o que eu sempre ouvia. E eu acreditei, tornei isso como uma verdade absoluta. E sem perceber fui abdicando dos meus sonhos, da minha profissão. Depois vieram as desconfianças, o modo como eu me divertia com meus amigos tornou-se um incômodo crucial. “Você gostaria de me ver cercada de amigas? O que os outros pensariam em te ver, noiva, cercada de tantos homens? Estou te protegendo”, e foi assim que gradativamente comecei a me afastar, mal sabendo quais eram suas reais intenções.
Silêncio. Maria começou a respirar mais forte enquanto fecha os olhos fortemente por 5 segundos, abrindo-os ao ouvir a voz do delegado.
DELEGADO: Acalma-se, está tudo bem. Por favor, continue.
MARIA: A primeira vez que fui violentada ocorreu na nossa primeira briga séria. Eu estava me sentindo sufocada, não podia mais sair de casa sem lhe dar satisfação a cada 5 minutos, tampouco sair com as roupas que gostava. E quando citei que já não havia mais liberdade em nosso relacionamento, vieram os primeiros xingamentos e o primeiro soco. Eu pensei em ir embora, arrumar minhas malas e sair de casa. Mas no dia seguinte ele me acordou com um buquê de flores e um café da manhã completo. Eu o perdoei, e esse foi meu erro: acreditar que ele só estava estressado e que se tratava de um ato isolado. Havia me tornando prisioneira do meu próprio marido, inconscientemente.
DELEGADO: Após esse episódio, quanto tempo demorou para ocorrer a próxima violência?
MARIA: Apenas uma semana. Eu me neguei a transar com ele e tive como resposta um estupro. Mais do que tudo, me sentia vulnerável perante toda essa situação, enquanto ele dizia que a culpa era minha. E eu acreditei. Acreditei que por não estar cumprindo meus deveres como esposa tornei nosso lar mais estressante e inconstante, acreditei que por fazê-lo infeliz ele havia perdido a cabeça. Eu o perdoei novamente, entretanto, as agressões continuaram, frequentes e piores.
Segunda pausa. Maria toma um copo d’água.
MARIA: Dois anos havia se passado até eu admitir que estava em uma relação tóxica e abusiva. Eu o amava, e acreditava que poderia ajudá-lo a combater seus demônios, porque a culpa era minha. Mas quando tentei pedir ajuda, ele me ameaçou de morte, me humilhou da pior forma possível e me fez acreditar que não receberia ajuda de ninguém, foi por isso que ele me afastou aos poucos dos meus amigos e familiares. Eu me sentia sozinha. E agora com medo.
Silêncio.
DELEGADO: Por favor, continue. Sei que começa a se tornar doloroso e cruel, mas estamos acabando. Confie em mim.
MARIA: Os abusos psicológicos e sexuais, assim como as agressões e as torturas que incitavam a ilusão de que eu merecia sofrer toda essa violência, se tornaram cada vez mais constantes, ocorrendo em um intervalo de 3 a 4 dias. Eu não estava mais suportando viver desse jeito, mas não havia com quem conversar ou para quem pedir ajuda. As ameaças de morte eram constantes, e a cada agressão ele se tornava mais forte. Eu sentia que tudo estava desmoronando e queria desistir, estava cansada de ter esperanças em um futuro melhor, inclusive já havia me conformado com a morte. Até essa última violência.
Pausa. Maria bebe um copo d’água.
MARIA: Nessa última agressão fiquei desacordada por dois dias, e algo dentro de mim se rompeu. Não fui criada para ser submetida à violência, não está no meu sangue desistir. Então, em um momento de coragem – ou loucura, eu consegui fugir. Corri o mais rápido que conseguia, mesmo com o corpo fraco e a mente conturbada, até uma alma caridosa me ajudar.
DELEGADO: E vocês foram direto ao hospital, correto? Lá fizeram todos os exames cabíveis e o resultado já está nas mãos dos responsáveis. Com esse seu depoimento, garanto que seu marido não sairá impune. Sei que nada do que eu dizer irá amenizar ou te confortar, mas eu prometo para você: acabou. Você é forte, e juntos iremos superar essa página. Iremos encaminhá-la para um acompanhamento psicológico, e durante essa semana haverá uma escolta em seu bairro. Ao menos podemos fazer isso para que se sinta um pouco mais segura.
MARIA: Essa é a primeira vez que eu rompo o silêncio, e só Deus sabe o medo que carrego em meu âmago. Eu não quero morrer, delegado! Por mais que eu esteja em uma posição vulnerável, há uma voz em minha mente dizendo que a culpa é minha. Anos sendo forçada a acreditar nisso, e a dor, a raiva e a impotência também não me deixam só. O mundo é um lugar horrível para ser mulher, delegado.
Maria cessa seu depoimento, enquanto chora de alívio e medo. O delegado se levanta da cadeira, se ajoelha em frente a Maria e a abraça, na tentativa de confortá-la. As luzes vão se apagando aos poucos, centralizando as duas pessoas.
VOZ DE FUNDO: A violência não é determinada pela idade, cor, estatuto social e/ou profissional. Qualquer pessoa pode ser vítima. Mas lembrem-se: vocês não estão sozinhos. Procurem ajuda. E caso percebam sinais de abuso, intercedam. Salvem uma vida.
Escuridão total. Fim de cena.