In My Blood
Sorelly
Tipo: Roteiro (Cena)
Postado: 27/09/20 10:42
Editado: 25/10/20 15:24
Avaliação: 10
Tempo de Leitura: 6min a 8min
Apreciadores: 5
Comentários: 4
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Usuários que Visualizaram: 8
Palavras: 1014
Não recomendado para menores de dezesseis anos
Notas de Cabeçalho

Help me

It's like the walls are caving in

Sometimes I feel like giving up

But, I just can't

It isn't in my blood

( In My Blood – Shawn Mendes )

Capítulo Único In My Blood

CENA ÚNICA: INT. DELEGACIA – TARDE.

Há duas cadeiras separadas por uma mesa. Em uma extremidade se encontra Maria, com os olhos roxos, o lábio cortado e hematomas espalhados pelo corpo; ante ela se encontra O delegado.

DELEGADO: Sei o quanto é difícil e traumatizante, mas precisamos pegar o seu depoimento. Independente de tudo o que for dito nessa sala, saiba que estamos do seu lado e que você está segura, tudo bem?

Pausa. Maria coloca suas mãos em cima da mesa, apertando-as, acenando positivamente para o delegado.

DELEGADO: Ok, vamos começar. Pode nos contar como tudo começou?

MARIA: Bom, digamos que novamente eu virei uma estatística. As primeiras vezes ocorreram de forma tão delicada que não percebi o abismo que havia se instalado. Ele começou com as manipulações psicológicas, induzindo-me a acreditar que o meu trabalho não geraria credibilidade alguma por ser mulher. “Ninguém irá te apoiar. Quantas mulheres você viu frente a um projeto? Não existe engenheiras, e sim engenheiros”, era o que eu sempre ouvia. E eu acreditei, tornei isso como uma verdade absoluta. E sem perceber fui abdicando dos meus sonhos, da minha profissão. Depois vieram as desconfianças, o modo como eu me divertia com meus amigos tornou-se um incômodo crucial. “Você gostaria de me ver cercada de amigas? O que os outros pensariam em te ver, noiva, cercada de tantos homens? Estou te protegendo”, e foi assim que gradativamente comecei a me afastar, mal sabendo quais eram suas reais intenções.

Silêncio. Maria começou a respirar mais forte enquanto fecha os olhos fortemente por 5 segundos, abrindo-os ao ouvir a voz do delegado.

DELEGADO: Acalma-se, está tudo bem. Por favor, continue.

MARIA: A primeira vez que fui violentada ocorreu na nossa primeira briga séria. Eu estava me sentindo sufocada, não podia mais sair de casa sem lhe dar satisfação a cada 5 minutos, tampouco sair com as roupas que gostava. E quando citei que já não havia mais liberdade em nosso relacionamento, vieram os primeiros xingamentos e o primeiro soco. Eu pensei em ir embora, arrumar minhas malas e sair de casa. Mas no dia seguinte ele me acordou com um buquê de flores e um café da manhã completo. Eu o perdoei, e esse foi meu erro: acreditar que ele só estava estressado e que se tratava de um ato isolado. Havia me tornando prisioneira do meu próprio marido, inconscientemente.

DELEGADO: Após esse episódio, quanto tempo demorou para ocorrer a próxima violência?

MARIA: Apenas uma semana. Eu me neguei a transar com ele e tive como resposta um estupro. Mais do que tudo, me sentia vulnerável perante toda essa situação, enquanto ele dizia que a culpa era minha. E eu acreditei. Acreditei que por não estar cumprindo meus deveres como esposa tornei nosso lar mais estressante e inconstante, acreditei que por fazê-lo infeliz ele havia perdido a cabeça. Eu o perdoei novamente, entretanto, as agressões continuaram, frequentes e piores.

Segunda pausa. Maria toma um copo d’água.

MARIA: Dois anos havia se passado até eu admitir que estava em uma relação tóxica e abusiva. Eu o amava, e acreditava que poderia ajudá-lo a combater seus demônios, porque a culpa era minha. Mas quando tentei pedir ajuda, ele me ameaçou de morte, me humilhou da pior forma possível e me fez acreditar que não receberia ajuda de ninguém, foi por isso que ele me afastou aos poucos dos meus amigos e familiares. Eu me sentia sozinha. E agora com medo.

Silêncio.

DELEGADO: Por favor, continue. Sei que começa a se tornar doloroso e cruel, mas estamos acabando. Confie em mim.

MARIA: Os abusos psicológicos e sexuais, assim como as agressões e as torturas que incitavam a ilusão de que eu merecia sofrer toda essa violência, se tornaram cada vez mais constantes, ocorrendo em um intervalo de 3 a 4 dias. Eu não estava mais suportando viver desse jeito, mas não havia com quem conversar ou para quem pedir ajuda. As ameaças de morte eram constantes, e a cada agressão ele se tornava mais forte. Eu sentia que tudo estava desmoronando e queria desistir, estava cansada de ter esperanças em um futuro melhor, inclusive já havia me conformado com a morte. Até essa última violência.

Pausa. Maria bebe um copo d’água.

MARIA: Nessa última agressão fiquei desacordada por dois dias, e algo dentro de mim se rompeu. Não fui criada para ser submetida à violência, não está no meu sangue desistir. Então, em um momento de coragem – ou loucura, eu consegui fugir. Corri o mais rápido que conseguia, mesmo com o corpo fraco e a mente conturbada, até uma alma caridosa me ajudar.

DELEGADO: E vocês foram direto ao hospital, correto? Lá fizeram todos os exames cabíveis e o resultado já está nas mãos dos responsáveis. Com esse seu depoimento, garanto que seu marido não sairá impune. Sei que nada do que eu dizer irá amenizar ou te confortar, mas eu prometo para você: acabou. Você é forte, e juntos iremos superar essa página. Iremos encaminhá-la para um acompanhamento psicológico, e durante essa semana haverá uma escolta em seu bairro. Ao menos podemos fazer isso para que se sinta um pouco mais segura.

MARIA: Essa é a primeira vez que eu rompo o silêncio, e só Deus sabe o medo que carrego em meu âmago. Eu não quero morrer, delegado! Por mais que eu esteja em uma posição vulnerável, há uma voz em minha mente dizendo que a culpa é minha. Anos sendo forçada a acreditar nisso, e a dor, a raiva e a impotência também não me deixam só. O mundo é um lugar horrível para ser mulher, delegado.

Maria cessa seu depoimento, enquanto chora de alívio e medo. O delegado se levanta da cadeira, se ajoelha em frente a Maria e a abraça, na tentativa de confortá-la. As luzes vão se apagando aos poucos, centralizando as duas pessoas.

VOZ DE FUNDO: A violência não é determinada pela idade, cor, estatuto social e/ou profissional. Qualquer pessoa pode ser vítima. Mas lembrem-se: vocês não estão sozinhos. Procurem ajuda. E caso percebam sinais de abuso, intercedam. Salvem uma vida.

Escuridão total. Fim de cena.

❖❖❖
Notas de Rodapé

Agressão a mulher, denuncie 180

Apreciadores (5)
Comentários (4)
Comentário Favorito
Postado 27/09/20 13:58

Misericórdia, que texto necessário!

Confesso que é díficil terminar de ler por se tratar de um assunto extremamente delicado, mas justamente por isso ele merece ser lido até o final.

Quantas Marias ( e eu fico me perguntando se a escolha do nome foi proposital por se tratar de um nome comum) o mundo possuí? Quantas não conseguem se desvencilhar e quantas não conseguem uma efetiva mudança mesmo após denunciar?

Eu fiquei tão receosa, que nem no delegado eu quis acreditar por completo. Uma parte minha tinha medo de que o delegado fizesse algo pior ou apenas ignorasse o sofrimento da moça (como muitos fazem, tentando amenizar algo que não deve ser amenizado de jeito nenhum). Enfim, uma parte minha é descrente.

Mas a outra parte, acredita que esse texto pode e deve ser lido para que muitas e muitos que sofrem desse mal possam se sentir motivados a fazer como nossa amiga Maria fez. Pedir ajuda, buscar socorro, fugir com toda a força que tem, buscar justiça.

Ninguém foi criado para sofrer, para ser machucado, cuspido, chutado, violentado. Ninguém foi criado para morrer sem que seja da vontade da própria natureza (ou de cada crença pessoal).

Todos nós merecemos uma vida plena e é isso que desejo a todos <3

Meus parabéns por compartilhar essa obra conosco!

Postado 27/09/20 22:42

Menina, na pressa eu esqueci de informar sobre um possível gatilho. Perdão.

Mas realmente, apesar de ser um texto pesado para se ler, é muito necessário, pois é uma realidade para muitas, infelizmente.

Muito obrigada pelo seu comentário ♡

Postado 27/09/20 23:09

Não peça desculpas a mim. Apesar de me sentir mal, eu entendo que se queremos mesmo mudar uma situação, devemos estar dispostas a abordar sobre ela, seja em forma de texto, cartaz, conversa.

Quanto mais falarmos, mais mudança ocorre e assim caminha a humanidade.

Muito obrigada por compartilhar conosco. Sério <3

Postado 28/09/20 01:03

O tanto que esse texto é necessário não está escrito... Um dia, eu já estive dentro dessa estátistica e dessa pressão podre e abusiva que diz que nosso silêncio não vale a pena ser ouvido. Foi muito doloroso conhecer as minúcias da vida dessa mulher, mas posso garantir que a satisfação de ver que a justiça sendo feita me deixou muito feliz. Meu coração está quentinho e meus olhos cheios de lágrimas.

A violência contra a mulher é real e o combate à ela se faz a cada dia mais necessário, principalmente em nosso país. Não estamos seguras em lugar algum, mas textos como esse vem para nos lembrar que nem tudo está perdido.

Obrigada por compartilhar conosco!

​Parabéns, Pãozinho ♥

Postado 29/09/20 16:17

Senhorita Pam...

Estou chocada com o poder desse roteiro incrível...

Infelizmente tantas mulheres sofrem igual a sua protagonista...

Infelizmente o aqui retratado é tão real e tão cruel...

Mas nos mostra uma esprança. Sim. Pois ela conseguiu fugir, e conseguiu recuperar sua dignidade, sua voz. Conseguiu pedir socorro, e o mais importe, conseguiu ser ouvida!

Fiquei feliz que o delegado tenha sido compreensivo com ela, em vez de ficar do lado do marido...

Parabéns pelo roteiro tão incrível e necessário <3

Grande abraço <3

Postado 02/10/20 22:40

Existem tantas Marias no mundo, tantas estatísticas que se esquecem, apagam ou apenas permanecem existindo, sobrevivendo.

Infelizmente, o roteiro retrata a realidade de muitas e é o que torna ele ainda mais pesado. Escrever o real, por si só, já é difícil.

A sua Maria conseguiu acordar e lutar pela vida, ela acreditou e conseguiu pular de uma estatística feia, para uma sofrida, porém, esperançosa.

Amei o que você fez aqui, Pami! Parabéns!

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