M. atirou o seu chapéu mexicano por sobre a mesa em que estavam depostas cartas de Tarô.
- Vamos V., leia-me as cartas.
- Está bem. Eu não tenho ideia, mas vou tentar.
- Aqui está. Que quer dizer esta?
- O Louco - disse V. - Vê o cão? O que o cão vê?
- Me passe o cigarro. Eu não sei, seu batata. Deixe-me pensar. E daí que tem o cão? Ele está latindo?
- Não, M. Ei-lo. O que o cão lhe transparece?
- Que acompanha o Louco. Mas quem é o cão, de que substância é composto?
- Escute, M. Trata-se menos da substância que o compõe, do que da substância que ele persegue: a bunda do Louco.
- Em que gênero de substância se encontra a bunda do Louco?
- Na categoria que poderíamos chamar de formas dotadas de flacidez por cuja fenda expelem-se excrementos.
- Aí está a charada, na categoria?
- É possível. Pense nas formas de pensamento ou de desejos que se constituem como semelhantes a bundas. Pense no que passa através dessas formas: cocô. Ora, o que é o cocô? O cocô é valor digerido. Em outras palavras, o cocô é o produto da relação dialética entre os tratos intestinais e o ambiente no qual é liberado (condutos de esgoto). Traduzindo isso para os pensamentos, o nosso discurso é o cocô expelido pela relação dialética entre os tratos estruturais e o ambiente no qual é liberado (o útero virtual das câmaras de reverberação infomacional). O que me diz disso?
- Essa analogia não me satisfaz. Parece-me um reducionismo postular a bunda como um mero mecanismo acessório através do qual transitam excrescências. Eu pensei que você fosse passear pelas especulações numerológicas que associam o ânus a Malkuth e ao número zero que também é o dez que é a coroa. Espere, é Malkuth que é dez e a coroa que é zero. Isso me veio à mente após cagar durante décadas. De qualquer maneira, aonde você quer chegar tentando traçar uma equivalência metafórica do discurso com o cocô? O cocô não tem nada que ver com o Logos. Tenha em vista o Logos e isso não tem nada que ver com as bulas de remédio que leio enquanto cago.
- Espere, M. Não se precipite. Não quis ser reducionista, mas ao contrário, elevei a bunda ao nível do contato com o Logos. Essa metafóra pensei fosse servir ao meu propósito de lhe perguntar acerca do que é que lhe parece se assemelhar ao processo que entendemos por excreção. Não é o discurso uma excreção? Não é algo que sai, que depois se transforma em água, que se perde na imensidão das coisas, que é produzido por uma série de alimentos que digerimos (mentalmente)?
- Estou quase convencido, V. Mas serei mais facilmente convencido se você me passar a garrafa de cachaça.
- Aqui está.
M. deu um longo gole e exclamou:
- O louco, hein?! E essa sacola que ele carrega? Não vá me dizer que é uma sacola de cocôs?
- Bem, M… Espero não lhe desapontar ao dizer que possivelmente poderíamos considerar essa interpretação como válida…
- Mas como! Explique-me isso!
- A sacola, M., como você vê, que o Louco carrega por sobre os ombros, representaria as vivências do Louco. Ora, eu não sei você, mas quando penso em vivências, imediatamente penso em cocô. Não me olhe com essa cara, M. Vou lhe explicar. O que fazemos ao nascer? Choramos, certo? Como poderíamos traduzir esse choro? Eu lhe digo: “Que cocô! Eu nasci!” Depois, nas primeiras fases do desenvolvimento do bebê, seu ego não estando ainda estruturado, o bebê não consegue distinguir o seio da mãe e o mundo. Ora, se para o bebê o seio da mãe e o mundo são uma mesma substância, não poderíamos dizer o mesmo do cocô, que o cocô e o mundo seriam uma mesma coisa? Com efeito, um bebê necessita de fraudas, não é mesmo? Note que as fraudas são utilizadas e, nesse manuseio, elas ficam cheias. Qualquer um que observasse uma frauda cheia a uma distância não muito próxima, sem sentir o cheiro, pensaria que se tratasse de uma sacola (igual a do Louco). Eu sei, M., isso soa uma estranha coincidência, mas não se trata de uma mera conspiração fecal. Continuando, depois que o bebê aprende a andar, tornando-se criança, o que lhe ocorre? Ele se põe a correr como um demônio zombeteiro. Ora, há uma correspondência entre a correria da criança e o passeio despreocupado do Louco. Em seguida, ele é enviado para uma creche ou algo do tipo. Se você notar, muitas crianças carregam sacolas (de merenda). Na adolescência, por sua vez, a sacola reaparece repetidas vezes: se há educação física na escola, geralmente quem leva roupa para praticar atividades, as leva numa sacola à parte, junto à mochila. Tanto no caso das sacolas de merenda, quanto no caso das sacolas de roupas de educação física, somos imediatamente remetidos à possibilidade de constatar o cocô. No primeiro caso, a merenda, sendo consumida, vai para o estômago, é digerida, e por fim evacuada. Mesmo se não fosse digerida (se a criança passasse mal e vomitasse, onde é que, eu lhe pergunto, a criança iria vomitar? Na sacola, certo? Ora, o vômito é um cocô ao reverso!). No segundo caso, a sacola de roupas, depois que se praticam todos os esportes, e com sorte (ou azar) não se morre de infarto nessas quadras medonhas, a roupa volta para a sacola. Note bem M.: a roupa suada! Ora, o que é o suor? Urina e fezes transpiradas! Está me acompanhando? --- bradou V., dando longo gole na cachaça. --- Muito bem! Ainda na adolescência, com o afloramento da puberdade, notamos que os jovens são afligidos por uma série de preocupações com relação a uma série de problemáticas da ordem do desenvolvimento psíquico. Basta pensar em todos os infortúnios aí implicados para ficarmos um tanto quanto abalados, quando não profundamente irritados. O que correntemente se diz a respeito de uma situação que nos abala ou que nos irrita? “Que saco! Que merda!” Não é isso? Não é isso que o sistema límbico produz? Com efeito, meu amigo! Basta ligar os pontos e nem precisa de muita imaginação para se dar conta de como isso irá se aplicar ao contexto de uma vida adulta. A vida adulta é o saco de merda por excelência. Coloque nesse saco tudo quanto couber. Coloque muito mais do que o saco suportar, até que o saco rasgue e tenhamos todos os surtos neuróticos e tantos outros transtornos e cataclismas mentais, tão frequentemente disparados no ser humano envolvido nessa teia de tramóias tenebrosas. Por fim, considere a velhice: o saco ainda está lá; mas cada vez mais leve ou mais pesado, conforme a resolução espiritual de cada um; poderíamos associar o saco ao coração: é o saco que será pesado no tribunal de Anubis. O saco deverá ser leve como uma pena; mas o que ocorre, meu camarada? Ele está cheio de cocôs! Está completamente cheio de merda e arrependimentos. Se fôssemos crer no milagre, o único milagre consistiria que um tal saco cheio de merda se convertesse numa pena, num sopro em suma, pela simples graça de um espírito santo! Agora é com você, M. Eu não sei você, mas eu não levo muito a sério todas essas ideias, apenas as expresso da maneira como as coloquei, a fim de que possamos exercitar um pouco de nossas faculdades imaginativas neste nosso encontro de celebração do acaso.
Os dois permaneceram em silêncio, pois M. estava refletindo sobre tudo o que fora dito resumidamente acerca de um esboço do que seriam as fases capitais do desenvolvimento humano em relação a sacolas, cocô e ao Louco.
- Está bem, V. Você me convenceu. Mas devo lhe dizer: nem tudo na sacola é cocô. Devo acrescentar à sua narrativa que também há arco-íris ali dentro, amores e momentos de gozo. Não me venha querer estabelecer uma ponte entre arco-íris e amores e gozo e sacolas e cocô. Um arco-íris é um arco-íris. Amores são amores. Gozo é gozo.
- Parece-me justo, meu caro M. Todavia, não estará o arco-íris no horizonte para o qual se dirigem os olhos do Louco? Não estarão no arco-íris os amores e o gozo?
- E como você pode ter tanta certeza de que o Louco fita um arco-íris? Não estará ele fitando um dragão? Ou um furacão? Ou as nuvens? Ou o nada? Ou o Sol? Ou a Lua?
- Fica a seu critério escolher. Não duvide da possiblidade – disse V., embaralhando as cartas. - De o Louco estar simples e debilmente fitando um odioso anúncio do Youtube interrompendo a música que o excita em sua aventura…