O vento estava frio, mas aquilo não era novidade para os marinheiros que já estavam há muito tempo em mar aberto. O oceano cantava em seu tom grave enquanto as ondas choravam ao se chocar com a superfície. O jovem William se debruçara na proa do grande navio de madeira, a fé era testada em todas as viagens que o marujo fazia, rezava para que Calipso não se zangasse enquanto navegavam e pedia por marés tranquilas e silenciosas; muitas vezes traiçoeiras que o lugar mais misterioso do mundo poderia trazer.
Todos os marujos dormiam tranquilamente, ninados pelas assustadoras cantigas do oceano, com exceção do capitão que bebia de sua garrafa de rum enquanto observava o que seria o horizonte quando houvesse luz e do jovem William. Em meio do tamanho silêncio, os dois homens puderam um breve balançar da água, como se a mesma se movesse de forma suave e sútil, com um som quase relaxante. O mais novo caminhou até a lateral do barco, com passos ariscos e preparados, olhando para a escuridão abaixo de si e vendo apenas o reflexo do céu estrelado. Não sabia dizer sua localidade por mais que houvesse estudado constelações e zodíacos por toda sua adolescência. Virou-se rapidamente ao ouvir o barulho da garrafa companheira do capitão se chocar com o chão de madeira e caminhou até a cabine do mesmo, encontrando o homem com ambas as mãos no timão, segurando-o com tamanha pressão que os dedos estavam brancos.
– Capitão! O que houve? – perguntou olhando para onde os olhos azuis do velho homem estavam fixados, enxergando apenas a imensa escuridão de todas as noites.
– Quieto, marujo. Não consegue ouvir? – disse fechando os olhos e soltando o timão, levando as mãos para seus próprios braços, se abraçando e sendo envolvido em sua memória. – Soa como um abraço afetuoso de minha falecida esposa a cada metro que navegamos ao oeste, nada vejo, mas sei que está lá.
William se concentrou no silêncio costumeiro, tão quieto que conseguia ouvir o próprio coração bater rapidamente em seu peito. O som veio como um sopro de verão infinito, levando todo o grave do oceano para longe e dando espaço para uma suave melodia; acolhedora como o abraço de sua amada, Maria.
– Mantenha o curso ao oeste, capitão – disse sorrindo e desceu até a proa novamente, se debruçou na mesma, ouvindo os movimentos de nado na água e o suave canto.
– William – o sussurro o atingiu junto com a leve brisa marítima, junto com o perfume cítrico que não sentia há semanas.
De suave a brisa passou a tomar força e proporção, guiando não mais o capitão e sim as velas vermelhas do grande navio. Mas, inebriado pelo momento, o jovem mal notou o navio se aproximar do conjunto de corais e só notou quando sentiu o impacto, tendo seu corpo jogado brutalmente na água gelada. Ao emergir, pôde ver a grande estrutura começar a afundar lentamente, mas não ouvira nenhum dos marujos. Ofegante, se esforçou para subir a bordo e caminhou com passos pesados até a cabine do capitão, o encontrando preso ao timão com cordas ao redor dos pulsos, roxo, frio e sem vida; com os olhos cheios de lágrimas sangrentas que também lhe escorriam pelos ouvidos.
Correu apressado à procura dos marujos enquanto o navio afundava. As botas molhadas escorregaram quando chegou na parte debaixo do barco, onde um dos buracos se encontrava, e sentiu novamente a água gelada contra seu corpo mas tudo veio junto com a sensação de perfuração em suas costas, havia sido atingido por uma estaca de madeira quebrada. Um grito sôfrego surgiu de sua garganta, conseguiu ver mesmo em meio de toda a escuridão seu sangue colorir a água e tingir o tecido branco de sua camisa. E então, viu surgir em meio às grandes poças que afundavam o navio uma criatura. Era bela, sua beleza era semelhante a de Maria. Primeiro, emergiu apenas metade da cabeça, com cabelos negros como aquela noite e olhos estranhamente verdes, raras pedras preciosas de esmeralda; depois emergiu mais da metade de seu corpo e William pôde enxergar o quão bela era a pele dourada e escamosa semelhante à de uma serpente, que se unia com a água, como se fossem somente um ser.
– Ouvi seus contos. Belas e cruéis como as fortes marés, por que fez isso? – perguntou com a voz fraca, sentindo os olhos negros como carvão lagrimejarem. – Matou meu capitão e causará minha morte, a morte te toda a tripulação – lamentou tentando se mover.
– Ele se amarrou ao timão, achou que se seguisse rumo ao oeste encontraria sua esposa –falou a criatura com sua suave voz, que ele reconheceu ser a mesma que cantava anteriormente. – Ela morreu em auto mar, estão juntos agora, por toda a eternidade, como ele sempre sonhou.
– Que belo final acredita tê-lo presenteado. O que preparou para mim além de morrer só? – disse com fúria.
– Algo além das frias paredes de Wapping, você sempre foi alegre demais para aquelas terras frias, jovem marujo – disse a criatura se aproximando sorrateiramente, tocando a fria palma do rapaz que pressionava o ferimento numa tentativa de afastar a dor. – Belos cachos dourados como a pele de Apolo não pertencem ao cinza de sua terra, não imagina o quanto eu sofri para que voltasse para este lado dos oceanos.
O toque da criatura era quente como o sopro de seu canto, William já não possuía mais forças para impedir a aproximação, tentava respirar com tranquilidade para impedir a dor de lhe consumir a consciência. O calor do toque se espalhou por todo seu corpo e quando viu, havia se perdido na imensidão do verde escuro que o encarava tão próximo que podia sentir sua respiração bater contra o rosto de sua ceifeira.
– Dizem que os ceifeiros vêm em várias formas, que podem conceder desejos. Peço que cante para mim novamente, por favor. Não deixe que minha morte seja fria – pediu sentindo seu corpo afundar junto do navio.
– Cantarei para você por toda a eternidade – respondeu com um puro sorriso.
– O que acontecerá com os outros?
– Afundarão junto à você, junto ao navio. Dormirão para sempre junto aos que repousam no fundo deste oceano, suas almas navegarão por toda a eternidade contando as histórias que fantasiam em suas cabeças, perdidos.
– Poderia me conceder um último beijo? – pediu com a voz fraca, sentindo a água alcançar seu pescoço. A criatura sorriu e uniu seus lábios quentes com os gélidos do marinheiro, que sorriu ao ser abraçado pelos longos fios negros da criatura. – Sentirei felicidade?
– Não, sentirá sua ruína.
E então o corpo quase sem vida do rapaz afundou e encontrou a fria correnteza, afundou ao som grave do oceano enquanto sua energia vital brilhava agora no corpo da criatura que nadava, contenta com o barulho do navio traçando seu caminho rumo ao fim. De relance, William enxergou a criatura em sua real forma, os belos e longos cabelos já não existiam mais, a pele que brilhava como ouro agora era cinza e escura, e os olhos cor de esmeralda haviam se tornado buracos negros e opacos, quase vazios. Ainda assim, sorriu ao ver que, ao encará-lo de volta, a criatura lhe cantou por mais alguns momentos, até que suas mortalhas boiassem já sem propósito. Roxo, frio e com lágrimas sangrentas que se uniam a água salgada.
Aquele fora o fim do jovem e alegre marujo William. A última vez que ouvira uma canção ou que tivera os lábios beijados, mesmo que tudo fosse apenas uma ilusão da criatura, que nadava para longe em busca de sua próxima fonte de vitalidade. O que os pobres marujos poderiam fazer, nunca sobrara nem mesmo uma carcaça que lhes dissesse para não navegar por aquelas águas, tão escuras que refletiam o céu e faziam com que as estrelas os guiassem para direções contrárias, levando-os para sua ruína ao invés de seu glorioso destino.