Tudo começou com a celebração de um casamento. A jovem Maira, de dezoito anos, com mais dois irmãos mais novos, via que não tinha mais lugar para si e nem para seu filho naquela casa em que já se espremiam oito pessoas.
Era ela, os dois irmãos mais novos de treze e quinze anos, os pais, os avós maternos e sua tia Bernadete. Todos dividindo três pequenos quartos e se apertando nos sofás da pequena sala de estar durante as refeições enquanto assistiam a RBS TV.
Aceitara a chegada do filho com normalidade. Afinal de contas, já era de maior, trabalhava durante a tarde atendendo na padaria do maior supermercado da cidade, estava prestes a se formar no ensino médio e namorava com João já faziam quatro meses. Ele, que já tinha 24 anos, também trabalhava - numa fábrica de peças automotivas - e possuía o próprio carro e também uma moto.
Não era um homem realmente bonito, mas também não chegava a ser feio. E ele era, como seu pai gostava de frisar, alguém que lhe daria um futuro. Para isso não precisava de um nariz menor ou um abdome sem barriga de cerveja. E ele recebera muito bem a notícia da gravidez: ficara muito feliz, já dizendo que seria um guri, que o ensinaria a pegar mulher, jogar bola, truco, tudo.
Casaram-se apenas no cartório, numa mera formalidade, porque João disse que igreja e festa sairia muito caro por ora, dinheiro que ele não tinha. Mas o mesmo fez questão de convidar a família da esposa e todos os seus parentes e amigos para um churrasco na casa nova (alugada), com direito a várias caixas de Polar e muito costelão. Os homens contavam causos enquanto bebiam sem parar, as mulheres conversavam baixo enquanto tomavam um ou outro copo de cerveja, intercalando com Coca-Cola - pois teriam que dirigir.
Todos jantaram, comeram bastante e riram muito. Um espeto inteiro de salsichão inclusive foi parar nas cinzas, em uma gracinha de João, já bêbado.
Maira resignava-se a dar sorrisos amenos e tentar com gentileza, conter o marido, que desgarrava-se de seu toque como um gato chucro.
Já era meia-noite quando os homens se dedicavam a cantar os modão e as mulheres ainda estavam na metade da louça na cozinha. Já com sono, Laura, sobrinha de João e filha de sua irmã Isabel, chorava aos berros que queria ir embora enquanto a mãe não sabia o que fazer: acalmar a filha, secar a louça, pedir pro filho parar de brincar com a bola dentro da casa ou implorar ao marido que bebesse um pouco mais devagar.
Maira tentava acalmar os ânimos da cunhada, que inclusive era depressiva, dizendo para ela mesma curtir e ignorar a bebedeira. Sem entender o porquê daquele olhar assombrado, já que para ela isso era absolutamente normal em sua família.
Mas naquela noite, ela percebeu como a bebida podia afetar negativamente as pessoas. De alguma forma, todos os presentes conseguiram ir embora dirigindo. Maira estava praticamente sóbria, havia bebido apenas dois copos de cerveja, sob insistência do marido, de que não faria mal algum ao bebê. Só que ele estava muito bêbado, e quando foram para a cama, ela não estava no clima.
João ignorou seus pedidos de pare até que ela ficasse quieta e aceitasse aquilo. E ela sentiu cada segundo e em cada célula do seu corpo aquele toque forçado e desagradável. Ele detestava quando ela não queria fazer, mas com insistência costumava parar.
Só que agora ele era seu marido, não mudaria nada, se não fosse ela, seria uma da rua.
Na manhã seguinte ela acordou mais cedo que ele, arrumou o café da manhã para os dois e ele a encheu de beijos quando levantou. Não tocaram no assunto. E essa rotina de carinhos diurnos perpetuou-se, assim como o que ocorria a noite, ele a comunicava, se ela negava ele insistia, até que ela parasse de reclamar.
Depois de três semanas ela não reclamava mais, já que ele a tratava bem e começara até mesmo a fazer horas extras no serviço para ela não precisar trabalhar e poder cuidar só da casa. Maira ficou aliviada, agora apenas estudaria e cuidaria dos afazeres domésticos, muito mais tranquilo. Havia inclusive ganhado sua cozinha dos sonhos, sob-medida, que João parcelara em vinte e quatro vezes no nome da mãe.
Maira estava feliz. Agora morando com o marido há três meses e grávida de cinco. Vez ou outra agora, os dois discutiam, quando ele chegava duas horas mais tarde que o normal em casa e com bafo de cachaça. A bebida parecia mexer muito com ele e ela não dava muita importância se ele a chacoalhasse pelos ombros ou apertasse seu pulso. Não era violência, era uma reação passional normal de raiva, talvez um pouco exagerada pela bebida, mas que ela já vira seu pai fazendo quando a mãe não tinha feito alguma coisa e ele ficava irritado.
E, dado os estudos, o pó do rack não era tirado diariamente. E no dia anterior ela havia servido o almoço atrasado e o ponto da carne não o havia agradado, fazendo o mesmo largar o prato parcialmente comido e ir almoçar na mãe. Maira havia ficado triste com aquilo, porque havia realmente se distraído estudando para uma prova de português, mas tinha tentado dar o seu melhor, cozinhado rapidinho, mas com muito carinho.
Só que agora ela pensava, para quê prova de português? Para que escola? Ela já tinha uma vida em casa e podia concluir os estudos quando quisesse que não mudaria nada.
Foi na escola naquele mesmo dia e trancou a matrícula. Contou para o marido a noite, quando ele chegou e ele gostou da ideia: porque agora ela não andaria tanto com aquela tal de Thalita que ele não gostava, ou com Fernando, de quem ele morria de ciúmes e dizia que ele só podia ser uma bicha se não tinha mesmo interesse em Maira.
Ela não se conteu e revirou os olhos, enquanto o mesmo arqueava as sobrancelhas. De noite, ele chegou três horas mais tarde, baforando cachaça, fedendo a cigarro e cheirando perfume de mulher. Aquilo já estava ficando demais. Maira, aos prantos, começou a questioná-lo de onde ele estava, enquanto o apoiava no chuveiro, num banho frio. Ele não aguentou a encheção de saco e a pegou pelos cabelos e empurrou para fora do box. Como estava molhado, ela resvalou e caiu feio no piso.
Maira começara a ter sangramento, mas o marido não queria saber. Ela também sentia que seria humilhante demais ligar para alguém levá-la no hospital enquanto tinha um marido. E quando a água fria finalmente fez algum efeito e João voltara parcialmente a realidade, ela já havia perdido muito sangue.
Maira sofreu um aborto e João sofreu com o guincho do carro, já que após largar Maira no hospital, havia acelerado em direção a casa da mãe e pego numa blitz. Bafômetro mais documentos vencidos.
Uma semana depois, já saindo do hospital, ele mostrou-se arrependido e prometeu que fariam outro filho. Deu cem reais nas mãos de Maira para que ela fizesse as unhas, a sobrancelha e o cabelo para ficar feliz.
Maira agora sorria um pouco menos. Ainda não tinha muitas expectativas com o bebê, nada além de um par de sapatinhos brancos que sua Tia Bete lhe dera, mas havia ficado triste. Sua sogra, a vendo daquele jeito desanimado e fazendo o serviço sem vontade, perguntou-lhe por que ela não ia na igreja. Que rezasse para a Virgem Maria e que pedisse a Deus um filho, que ele lhe daria um, até mais, se ela tivesse fé.
Ela então começou a frequentar as missas com João e relevar os defeitos dele, perdoá-los. E passou-se mais de um mês do acontecido. Era uma coisa ruim, um tabu, e eles não conversavam sobre aquilo. Falavam das despesas do lar, da família, de Deus e de como o trabalho de João era pesado. Tinha dias que depois das horas extras, ele chegava em casa ainda todo suado, ofegante.
E naquela noite de quinta-feira, ele chegou em casa bêbado novamente. E ao contrário das últimas vezes, Maira não o deixou ir reto para cama, porque além do bafo de bebida, do fedor de cigarro e do cheiro de perfume feminino, havia uma marca de batom na camisa dele. Ela começou a questioná-lo e ele logo se encheu o saco, dando um tapa na cara dela.
E dessa vez ela não se conteve, gritou de volta, o chamando de covarde. Ele se enfureceu de vez e a pegou pelos cabelos.
E bateu sua cara com força na parede enquanto ela gritava de dor e se debatia.
Fora de si, ele bateu de novo.
E de novo.
E de novo.
E de novo.
Quando o grito de socorro finalmente escapou pelos lábios de Maira, de forma desesperada, já era tarde.
Ainda pelos cabelos, ele a jogou no chão da sala. Ao cair, ela bateu a cabeça no rack e morreu.
Com o rosto todo ensanguentado e desfigurado.
Então me diga por que eu lido com seu lado ruim
Eu lido com a sua mente perigosa
Nunca com você
Quem vai te salvar agora?
Quem vai te salvar?
Quem vai te salvar agora?
Quem vai te salvar?
Quem vai te salvar agora?
Quem vai te salvar agora que eu fui embora?
("Devil Side" Foxes)